Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Usar o sapato alheio diante da dor do outro

Foi montada em Londres uma instalação à beira do rio Tâmisa chamada Museu da Empatia. O funcionamento do museu é simples. Ao chegar ao local, solicita-se o número do sapato do visitante, o qual pode escolher algumas opções de sapato e, ao calçá-lo, percorre a região enquanto ouve a história do dono ou dona do calçado.

A proposta é desenvolver a empatia, entendida como a capacidade de se por no lugar do outro. Daí a ideia da instalação usar a expressão put yourself in someone’s shoes de forma literal, pois a expressão significa colocar-se no lugar do outro, ou, “colocar-se no sapato do outro”. Proposta parecida tem o Museu da Pessoa em São Paulo, que conta a história de pessoas anônimas, mostrando a riqueza da vida de pessoas comuns. Também o projeto Seven Billion Others (Sete Bilhões de Outros) nos apresenta a diversidade de experiências de vida. Se o fio condutor destas narrativas é a construção da empatia, o que nos faz falhar em sermos solidários?

Segundo o filósofo Emmanuel Lévinas, o outro somente pode ser entendido como o absolutamente Outro, aquele que eu não poderia jamais apreender, pois isso significaria reduzi-lo a um objeto. Seguindo essa lógica, o Outro me interpela, demanda meu acolhimento, mas mesmo sendo eticamente desafiada a recebê-lo, eu não poderia jamais “saber como ele se sente”. A experiência com o Outro ocorreria no espaço em que não posso entendê-lo, e mais, não posso nem pretender entendê-lo.

Há poucos dias a triste imagem de uma criança morta na praia, que depois soubemos que se chamava Aylan e morreu em uma travessia fugindo da Síria, correu o mundo e gerou uma onda de comoção e também de questionamento sobre a moralidade ou imoralidade de publicação da foto da criança na imprensa mundial, tornando a questão da empatia também a questão de (e como) mostrar a dor alheia.

As crianças invisíveis, as outras, as sem voz

Assim sendo, é impossível escapar das provocações plantadas por Susan Sontag no livro Diante da Dor dos Outros, cujo objeto é a reflexão sobre o uso de fotografias para mostrar o horror da guerra. Para Sontag, inicialmente a imagem não oferece uma explicação imediata, podendo ser usada por todos os lados do conflito para pleitear sua narrativa de tragédia. E ainda que se saiba o contexto em que a imagem ocorreu, é impossível que os leitores dos jornais e das revistas sintam o que significa estar em uma guerra, no que podemos fazer uma relação apressada com Lévinas e sua impossibilidade de entender a dor alheia.

Voltando à foto de Aylan, a resposta dada pelos meios de comunicação em geral foi no sentido da necessidade de publicar a imagem forte para informar e tornar possível que cenas como essa não se repitam. É esta percepção que faz com que tantos repórteres fotográficos arrisquem suas vidas para fazer cobertura em catástrofes e conflitos armados, pois mostrar o que ocorre seria o primeiro passo para mudar a situação. Entretanto, se assumirmos que Sontag esteja correta, a questão complexifica-se, pois para além do aspecto chocante da imagem, teremos que pensar por que, das diversas imagens tristes que vemos com frequência assustadora, poucas conseguem promover uma comoção nessas proporções.

E aqui é impossível não citar o magistral artigo escrito por Gabriel Zacarias que analisa que o impacto da foto de Aylan é justamente porque não o vemos. Ao menos não o vemos como Aylan, um menino nascido em um conflito que começou antes de sua tão breve vida, mas que obrigou e obriga diversas famílias a procurar um local seguro longe de casa. Vemos uma criança que parece dormir (e parece ser nosso filho, irmão, sobrinho, primo etc.). Ou seja, a foto não mostra nossa empatia com o cruel destino de uma família destruída; mostra somente nosso sofrimento conosco mesmo. Não pretendo desqualificar as manifestações de repúdio da situação a que os migrantes são submetidos, e tampouco a comoção que veio após a divulgação da fotografia – efetivamente, é bom que tenhamos saído do imobilismo. Mas por quê não esboçamos nenhuma (nenhuma!) reação aos genocídios atuais que ocorrem com crianças negras e índias no nosso país? Por que não gritamos quando meninos negros são mortos pela polícia enquanto brincam na rua? E aqui a questão não é a falta de uma imagem. Não vemos porque não as reconhecemos e não as reconhecemos porque não calçamos os sapatos delas. Não temos empatia, e elas são apenas as outras, as invisíveis, as sem voz. Sem verdadeiramente reconhecê-las eticamente, ou ao menos nos reconhecermos nelas, a nossa inação perpetua-se, e não somente testemunha, mas nos torna cúmplices da destruição dessas vidas.

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Heloisa Fernandes Câmara é doutoranda em Direito na UFPR e professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos