Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Conduzindo a reportagem

Janeiro de 1974. Manhã de domingo. O estagiário da reportagem geral do Jornal do Brasil, 19 anos, recebe a pauta do chefe de plantão: acompanhar os preparativos para o desfile das escolas de samba no mês seguinte. No pátio, o motorista Marcelino, requisição de carro na mão, olha com desdém para o repórter e sentencia: “Meu filho, a essa hora tá todo mundo dormindo. A gente não vai encontrar ninguém”. Frequentadores da sala de concertos Cecília Meireles, estagiário e chefe entendiam tanto de samba quanto o motorista de física quântica.

Duas horas depois e diversas quadras de escolas percorridas, como Portela, Mangueira e Império Serrano, a profecia de Marcelino se cumprira. Todas estavam às moscas, com aquele cheiro azedo no ar, próprio da cerveja consumida na noite anterior. Para não voltar de mãos vazias, algo inconcebível a um repórter iniciante, Marcelino sugere ao estagiário: “Olha, se você quiser, eu te levo na casa do presidente da Em Cima da Hora. Ele é meu amigo, mas acho que a gente vai ter que acordar ele (sic)”.

Bingo. O pijama com que nos recebe na varanda da casa prova que Marcelino acertara mais uma vez. A saída foi mudar a pauta e fazer a matéria sobre os preparativos de uma escola pequena mas tradicional, que naquele ano ascendera ao primeiro grupo. O texto ganhou um alto de página na edição de segunda-feira.

A história verídica, que gosto de contar aos alunos de jornalismo da Universidade Federal Fluminense, serve para mostrar que o trabalho jornalístico costuma ser coletivo, resultado da conjugação de esforços do repórter fotográfico, do motorista, pauteiro, editor, copidesque, do diagramador e, é claro, do repórter. Nada mais arrogante do que aquele sujeito que se refere ao próprio trabalho usando o pronome possessivo na primeira pessoa do singular: minha apuração, minha matéria, meu ego.

O pulo do gato

O livro Repórter no volante – o papel dos motoristas de jornal na produção da notícia, de Sylvia Debossan Moretzsohn, reúne depoimentos de 13 desses trabalhadores – muitos já aposentados, outros ainda na ativa –, além do perfil de um motorista já falecido mas muito querido por jornalistas que atuaram no Jornal do Brasil entre os anos 1960 e 1980, e ajuda a corrigir a falsa ideia do trabalho individual do repórter. As entrevistas revelam o esforço, a dedicação, a criatividade e os “pulos do gato” dessa gente anônima, que não ganha prêmios nem tem seu nome impresso nos créditos.

Gente como Francisco Carlos Aleixo, do Extra, que passou anos pilotando o Baixada Móvel, na sucursal de Nova Iguaçu, e que ajudou a localizar testemunhas do assassinato do banqueiro de bicho Paulo Andrade, filho de Castor de Andrade, na Barra da Tijuca. Aposentado por problemas de coluna, Aleixo tem como um de seus maiores prazeres reunir repórteres e fotógrafos da antiga em sua casa confortável em Bangu, na Zona Oeste carioca, para recordar histórias como a do dia em que, na ausência do repórter, ele mesmo gravou o depoimento do prefeito de Nova Iguaçu negligenciando a morte de 18 pessoas vítimas de uma epidemia de meningite no município da Baixada Fluminense. A gravação ganhou destaque no RJTV.

Gente como Jorge Toledo, hoje com 68 anos, ex-motorista de redação do Jornal do Brasil, morador em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Foi Jorge que ajudou o repórter Humberto Borges a localizar, nos anos 1980, o vencedor do maior prêmio pago até então pela Loteria Esportiva. O recém-milionário trabalhava num posto de gasolina em Bonsucesso, na Zona da Leopoldina. Enquanto Humberto não conseguiu arrancar nenhuma informação da gerente do posto, Toledo foi conversar com os frentistas. Durante o papo despretensioso, ofereceu um maço aberto de cigarro a um deles e ganhou em troca o endereço do ganhador do prêmio.

Com origem em bairros da periferia ou do interior, esses profissionais anônimos trazem um olhar sobre aspectos sociais que muitas vezes escapam ao repórter. A grande maioria reside em ambientes que os jornais voltados a um público de escolaridade mais alta pouco frequentam. Lembro que nos anos 1980 um dos motoristas de O Globo, o Manga Rosa, que morava no morro do Juramento, sabia quando o traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, visitava o lugar onde nascera. Não que ele tivesse algum envolvimento com a quadrilha, mas porque viu crescer vários dos seguranças do traficante, criados com ele no morro. E assim o Manga Rosa acabava virando pauteiro da reportagem policial.

Mais do que histórias curiosas

Os depoimentos colhidos por Sylvia Moretzsohn – repórter do Jornal do Brasil e de O Globo na década de 1980 – revelam muito mais do que aventuras e curiosidades. Evidenciam as rotinas de produção e as consequências das transformações administrativas e tecnológicas na atividade jornalística. Trazem também à superfície um certo sentimento de frustração pela falta de reconhecimento do trabalho do motorista de Redação no cotidiano da reportagem. Isso ocorre justamente no momento em que muitas empresas jornalísticas, seguindo a moda da terceirização, dispensam profissionais do volante especializados na cobertura jornalística e contratam os serviços de companhias de transportes. Outras demitem o motorista e o recontratam em seguida como pessoa jurídica, para fugir aos encargos sociais.

Alexander Padilha, 38 anos, morador em Nova Iguaçu, é um dos que estão na ativa. Hoje presta serviços para os diretores de O Dia, mas trabalhou 10 anos na reportagem do jornal. Ele se lembra de um tiroteio em que o motorista Mário Marinho parou o carro em plena pista central da Avenida Brasil, na altura de Guadalupe. O fotógrafo Alexandre Vieira desceu e fez a foto que lhe rendeu o Prêmio Esso de Fotografia de 2010. Alex, quase xará do fotógrafo premiado, emenda, entre triste e resignado: “Só conseguiram essa matéria por causa do motorista, mas ele nem foi citado na premiação. Não dizem que somos uma equipe?”

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Saindo da sombra – Sylvia Debossan Moretzsohn

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João Batista de Abreu é jornalista e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense