Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Lotte & Zweig, a vida e a morte

No livro Lotte & Zweig, o escritor Deonísio da Silva faz uma reconstrução poética da vida e morte de Stefan Zweig, um dos escritores mais lidos na Alemanha, e de sua mulher, Charlotte Altmann.

Rico, pacifista radical, Zweig trocou cartas com Gorki e Freud, biografou Dostoievski, Napoleão e Maria Antonieta. Opositor de Hitler, deixou a Alemanha com a mulher em 1934 depois que a casa foi invadida pelo exército do ditador. Fugiram para a Inglaterra. Sete anos depois desembarcaram no Brasil para morrer. O suposto suicídio do casal na noite de 22 de fevereiro de 1942, em Petrópolis (RJ), até hoje é um mistério. No ano em que se completam 70 anos da morte, Deonísio recupera os últimos dias do casal e faz um desenho delicado de Charlotte que, pela primeira vez, ganha voz na tragédia. O autor joga luz sobre uma história que jamais deve ser esquecida.

A apresentação do livro é feita por Alberto Dines, mais um escritor que foi seduzido por aquela noite misteriosa. Com olhar mais investigativo do que poético, Dines escreveu Morte no Paraíso, que terá em breve sua quarta edição. Em 2005, o cineasta catarinense Sylvio Back transformou o livro de Dines no filme Lost Zweig.

A seguir confira a entrevista que o escritor Deonísio da Silva concedeu ao DC.

A visita à Casa Stefan Zweig

Stefan Zweig era escritor bem-sucedido quando virou alvo dos nazistas. O intelectual que biografou figuras como Dostoievski, Dickens, Balzac, Nietzsche… de repente fica sem pátria, sujeito às perseguições nazistas. Como foi reconstruir esta vida, já que a ficção vem de uma história real?

Deonísio da Silva– Primeiro me permita dizer que Lotte & Zweig é meu livro mais bonito e mais bem cuidado. A capa de Arlinda Volpato é um show. E a Michele Roberta da Rosa preparou muito bem o original antes de ele chegar à editora. Mas o berço do livro foi o seguinte: um dia estava assistindo a um documentário e vi que o Nilo, um dos maiores rios do mundo, começa com umas gotinhas escorrendo de umas pedras. Com meu romance Lotte & Zweig deu-se algo assim. Li as biografias de Stefan Zweig que fizeram o jornalista Alberto Dines e Donald Prater. Até então só tinha lido as biografias que Stefan Zweig fizera de célebres personalidades, como essas que você cita, e mais uma novela muito bem escrita, 24 Horas na Vida de uma Mulher. Todas essas leituras foram, porém, pequenas gotinhas no grande rio ou mar que deve ser um romance. Um conto é um riacho, uma lagoa, uma laguna, mas um romance, não! Fiquei com vontade de fazer um romance sobre Stefan e o neonazismo, mas a inspiração me levou a escrever outro livro, Orelhas de Aluguel, que publiquei em 1987 e do qual Stefan Zweig está ausente. A vida me levou a morar no Rio de Janeiro, onde vivo desde 2004. Eu não queria morar no Rio. Mas, como comecei a trabalhar muito cedo, aos 54 anos estava aposentado por tempo de serviço e não queria parar de trabalhar. Gosto de ser professor, gosto de ensinar, embora goste mais de escrever. Quando os jornalistas que me pautam na imprensa escrevem sob meu nome escritor e professor, é isso mesmo que eu sou. À luz dessas leituras, comecei a viajar, cada vez com mais frequência, a Petrópolis, onde viveram Stefan Zweig e Charlotte, sua segunda mulher, quase 30 anos mais jovem do que ele. A visita à casa, hoje Casa Stefan Zweig, mantida com verba da Alemanha, me permitiu ver os lugares que ambos dividiram: a sala, a cozinha, o quarto, o banheiro, a varanda, o jardim etc.

Algo de muito estranho aconteceu

Na recomposição de uma vida esquartejada o que foi possível perceber do ânimo do escritor em relação à vida? Será que Zweig desistiu de viver por desacreditar da possibilidade de voltar a ter uma vida normal ou de não se permitir uma vida normal?

D.S.– A melhor metáfora da perda da liberdade, das asas, de não ser pássaro, ser outra coisa, é ser pássaro preso na gaiola. Stefan era isso. Não apenas ele, os dois estavam presos do lado de fora. Eu acho que pelo menos ela não se suicidou. Não há indício nenhum disso. Lotte não escreveu nenhum bilhete de despedida, não disse nada sobre isso. Stefan Zweig disse, mas se cometeu o gesto extremo não temos certeza. De todo modo, ele não disse que fez um pacto com ela. Não disse e não escreveu! O presidente Getúlio Vargas, que passava os dias de pós-Carnaval em Petrópolis – eles morreram na noite de 22 para 23 de fevereiro de 1942 – proibiu a autópsia e impediu que os judeus levassem os corpos para enterrarem no Rio. Ora, os judeus não dão enterro a suicidas em seus cemitérios. Então, por que razão queriam os corpos? Quanto a ficar preso ao passado, isto, sim: ele e ela. Ela era judia-polonesa. Ambos estavam enredados numa teia terrível. E os nazistas estavam ganhando a Segunda Guerra Mundial, em 1942. E mais: o Brasil só rompeu com a Alemanha um mês antes de os dois morrerem! Há muitos mistérios nessas duas mortes.

No livro, você dá voz – ainda que silenciosa – para Lotte. A mulher que acompanhou o escritor sempre em segundo plano, ganha ares de quase-heroína nas horas que se seguiram à tragédia. Qual elemento fez com que você decidisse dar visibilidade a ela?

D.S.– Eu já estava escrevendo o romance, que comecei em 2007, quando Alberto Dines me disse: “Consegui as cartas de Lotte, foram publicadas em inglês.” Ele me mandou uma cópia e comecei a ler essas cartas. O romance tinha então 400 laudas. Abandonei quase tudo o que tinha escrito e recomecei de outro ponto de vista. Fiz um romance como se eu fosse um engenheiro. Os alicerces são o que foi a vida real de Stefan, mas sem o silêncio que os biógrafos impuseram a Lotte. No meu romance, a mulher dele tem o que dizer e diz muitas coisas, às vezes sem proferir palavra alguma, como é próprio das mulheres que, ao contrário do apregoado, mais fazem do que falam, porque se ficassem falando o tempo todo, como dizem, não seriam o que são, as figuras referenciais na vida de qualquer homem. Os dois viveram asfixiados, tanto no Rio quanto em Petrópolis. E Lotte, além desses sofrimentos, tinha o da asma. Aliás, foi por causa disso que foram em busca dos bons ares da cidade imperial de Petrópolis. O que me fez dar visibilidade para Lotte foi que morto sempre fala. Naquela noite, algo de muito estranho aconteceu. E ninguém sabia até agora. Agora, quem ler o livro, saberá. Eu inventei. A literatura é isso: é a história proibida das pessoas, das personagens. Ao inventar, encontramos verdades incômodas. Se mortos falam, o certo é que até agora só tinha falado o marido! A mulher dele, não!

“Senhor, dai-me a castidade, mas não já!”

Em Lotte: Pedaços de um Diário, longe de ser uma mulher submissa, ela aparece como uma pessoa culta e atenta ao que acontecia à sua volta. A submissão foi uma arma de domínio?

D.S.– Lotte era fluente em cinco línguas. E ajudava muito o seu amado, um homem mais velho, por quem ela se apaixonou no frescor dos seus verdes anos. Mas ele não falou dela nas despedidas que fez. Então, valeu a pena Lotte esperar por mim, sem vaidade eu digo, mas com orgulho! Betty Milan, psicanalista e escritora, sempre me diz: “Deo, você dá muita atenção às mulheres em seus romances e contos! Por quê?” Eu acho que é pela falta que elas me fizeram na adolescência: só tive professoras no primário e na universidade. Todo o ensino médio me foi ministrado por padres, que nem homens completos eram porque o celibato os privava de conhecer a mulher, que acabavam conhecendo por frestas, as confissões, confidências contidas. Padres que foram meus professores nos seminários de São Ludgero e de Tubarão, vieram me contar, em outra idade, quando os reencontrei por volta dos meus 40 anos, quando muitos deles não eram mais padres, que um homem sem mulher, por mais que se esforce, não é um homem pleno. Não me refiro apenas ao sexo, este pode ser obtido de outras formas. Eu me refiro à mulher, cuja ausência é tão sentida por todos nós, homens! Eu ouvi Lotte em confissão, digamos assim. Fui uma espécie de padre ou psicanalista para essa mulher extraordinária que tem tanto o que dizer. Afinal morreu abraçada ao cadáver do marido, tornando-se cadáver ela também!

Não é paradoxal que o homem que escreveu o livro que virou uma espécie de slogan Brasil – O País do Futuro– foi justamente escolher este mesmo país para acabar com o seu futuro?

D.S.– Nós precisamos tomar cuidado para não cair nas armadilhas da História. Nero foi um imperador sanguinário? Foi! Mas, antes de se suicidar (será que se suicidou, mesmo?), depois de um golpe de Estado, fez uma reforma agrária na África, uma reforma que prejudicou os generais e seus amigos latifundiários. Eu descobri isso lendo o que Santo Agostinho escreveu sobre música! Eu gosto muito desse santo que é filósofo e teólogo, e rezava assim: “Senhor, dai-me a castidade, mas não já!” Ele teve um filho, o Adeodato, com uma jovem a quem ninguém dá nome, mas eu descobri que se chamava Melânia. Todos só falam da sogra dela, Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho. E Agostinho fala das mulheres como se não falasse. É dele a frase célebre “Mulier, janua Diaboli”, traduzida para “mulher, janela do Diabo”. Mas janua em latim é porta. Janela é fenestra. Portanto, é porta aberta para o Diabo, não janela apenas, entendendo aqui por Diabo tudo o que se opunha à doutrina cristã, como os deuses pagãos.

Os nazistas queriam matar apenas Zweig

Na sua opinião o que aconteceu realmente naquela noite de 1942?

D.S.– Stefan Zweig era inimigo público dos nazistas. Albert Speer, arquiteto de Hitler, disse a Alberto Dines pouco antes de morrer que a morte de Zweig foi muito comemorada na Alemanha. Aliás, Speer morreu minutos antes de dar uma entrevista à BBC. Muitas mortes tidas como suicídios foram depois comprovadas como assassinatos. Eu acho que os assassinatos de Stefan Zweig e sua mulher Charlotte Altmann Zweig, ocorridos na noite de 22 para 23 de fevereiro de 1942, ainda não foram comprovados. Só isso. Naquela noite teve seu desfecho um plano diabólico, concebido e executado muito tempo antes por doutores em matar os outros, de modo a fazer com que as mortes parecessem suicídios. Não posso provar isso, mas eu não preciso provar nada! Sou um romancista, não um historiador. Os romancistas mentem menos do que os historiadores, pode crer! Nenhum deles comprovou que foi suicídio. Por que não foi feita autópsia? E todo escritor tem um lado feminino, o da intuição. Quando uma mulher diz que não foi com a cara de alguém, eu fico procurando onde esse cara me enganou, já que não percebi o que apenas ela percebeu! Eu acho também que a morte de Lotte foi um acidente. Ela deve ter aparecido ou acordado em momento impróprio. Os nazistas queriam matar apenas Zweig. Na verdade, talvez não tenham ido lá para matá-lo, mas para sequestrá-lo, mas daí seria contar o romance e este prazer eu não vou tirar dos leitores.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela USP e autor de 34 livros. Os mais recentes são A placenta e o caixão (crônicas), A língua nossa de cada dia (colunas de língua portuguesa) e Lotte & Zweig (romance). É um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá]