Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Traduzir o Ulysses

Traduzir literatura por contrato é uma coisa.

Você nem sempre traduz o que gostaria de ler. Você nem sempre tem o prazo que desejaria ter. Vida, vida.

Mas traduzir é uma experiência tão necessariamente suja (mãos-na-massamente falando), tão enfronhadinha, tão, digamos, íntima, que acaba que esses senões terminam por se dissolver um pouco. E você tem sempre uma relação mais pessoal, direta, com os livros que traduziu. Você, afinal, teve de escrever todos eles. Linha a linha.

Traduzir por escolha é coisa bem outra no entanto.

Quando eu decidi que minha tese de doutorado incluiria uma tradução do Ulysses, quando decidi que dos quatro anos que eu teria para escrever a tese eu usaria dois, inteiros, para essa tarefa, foi unicamente escolha minha, desejo meu. Projeto.

E aí foram dois anos, diários, de leitura, escrita e releitura. (Uma noção simples da intensidade do trabalho de tradução vem do fato de que, na batata, traduzir é ler ao menos três vezes ao mesmo tempo: correr o olho pela frase original, redigir a sua e lê-la com as outras).

O livro foi traduzido quase inteiro na ordem. (Um trecho eu fiz antes, para dar de presente para aquela que viria a ser minha mulher, no dia dos professores.) E o Ulysses é um livro inquieto. Se mexe sem parar. Muda o tempo todo. E traduzir esse livro tinha de ser assim também.

Anos de convívio

Insisto sempre com os meus alunos que o próprio Ulysses te ensina a ler o Ulysses, gradativamente. Eu tive de ir aprendendo a escrever o Ulysses, passo a passo, cada vez encontrando dificuldades maiores, mais numerosas, como sabe qualquer leitor. Mas cada vez me divertindo mais.

Quando você acha a linguagem, o registro, aparecem os trocadilhos, as piadas, as referências cifradas (São Gifford, o Anotador, que me valha!); quando deu conta disso, são as canções; mais os poemas; e aí vêm as paródias, pastiches; e depois um longo episódio que narra o desenvolvimento da literatura inglesa (e toca a gente – ela já era minha mulher – sentar e montar uma lista de modelos de textos portugueses e brasileiros, do século XIII ao XIX, cobrindo tudo quanto é gênero: crônica, carta, teatro, prosa, poesia, mais ou menos como os que Joyce usou quando escreveu; e toca ler cada um desses modelos, fazer listas de expressões, palavras, construções saborosinhas e típicas e aí, e só aí, traduzir o fragmento correspondente do episódio).

E quando tudo isso passou, você tem que lidar com a oralidade desmedida e precisa de dona Molly naquele solilóquio.

E quando você acha que acabou, no Bloomsday centenário, 2004, um século exato depois das andanças do Senhor Bloom por Dublin, vêm já seis anos de espera, banho-maria, retoquinhos.

Outros trabalhos. Aulas. Outras traduções.

Eu hoje venho conseguindo juntar as coisas: traduzir por contrato textos de escolha. Melhor ainda, agora contrataram o meu Ulysses.

E toca revisar tudo para você, quem sabe, querer ler daqui a pouco.

Escolha minha.

Terão sido dez anos de convívio com o livro.

Escolha minha, circunstâncias.

Por mim, valeu.

Tomara que você não ache que foi à toa.

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A edição de Ulysses da Penguin-Companhia já está nas livrarias. No vídeo abaixo, o editor André Conti fala sobre o clássico de James Joyce:

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[Caetano Waldrigues Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já publicou traduções do romeno e do inglês.]