Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A grande guerra, não só heroica

Escrever uma história geral da Segunda Guerra Mundial é mais difícil do que parece à primeira vista. Trata-se de uma história conhecida e de um mercado densamente povoado – é difícil conseguir frescor na narrativa. Originalidade de interpretação pode parecer mais fácil de obter, mas não pode ir longe demais. A essência da guerra foi a agressão da Alemanha e do Japão, seguida por uma vitória dos aliados, que teve a União Soviética, os Estados Unidos e o Reino Unido como protagonistas.

Todo país vivenciou e recorda a guerra de uma maneira diferente. Para os britânicos, franceses e poloneses, ela começou com o ataque nazista à Polônia, em setembro de 1939. Para os russos, apesar de suas investidas sobre a Polônia, a Finlândia e os países bálticos, a guerra começou efetivamente em junho de 1941, com a invasão nazista da União Soviética.

Para os americanos, o conflito começou com o ataque-relâmpago a Pearl Harbor, em dezembro de 1941. Para o Japão, no entanto, Pearl Harbor foi a continuação de uma aventura militar expansionista iniciada com a invasão da Manchúria em 1931. Uma história geral da guerra tem de abarcar toda essa diversidade de experiências e captar a interação entre os acontecimentos importantes que se desdobraram em diferentes continentes e em alto-mar.

Pouca atenção

Antony Beevor vence esse desafio. Ex-oficial do Exército britânico e autor de obras admiradas sobre Stalingrado [Stalingrado, Record] e a invasão da Normandia pelos aliados [Dia D, Record], Beevor é um escritor talentoso que sabe manter o curso de uma boa história. “Nenhum outro período da história oferece uma fonte tão rica para o estudo dos dilemas, das tragédias individuais e de massa, da corrupção da política do poder, da hipocrisia ideológica, do egoísmo doentio dos comandantes, da traição, perversidade, autossacrifício, sadismo inacreditável e compaixão imprevisível”, observa.

Beevor faz excelente uso de fontes originais alemãs e russas para animar suas descrições das batalhas titânicas entre as forças nazistas e soviéticas. Ao mesmo tempo, vale-se, com bom senso, de fontes secundárias especializadas na reconstituição de episódios como as origens e a evolução do Holocausto, a repressão e a resistência em países ocupados pelo nazismo na Europa e a complexa luta tripartite entre os nacionalistas chineses, as forças comunistas de Mao Tsé-tung e o Japão imperial.

O autor se aparta de narrativas convencionais ao abrir sua história não com a invasão da Polônia, mas com um confronto no Leste da Ásia ao qual os europeus deram pouca atenção no terceiro trimestre de 1939: a esmagadora vitória soviética sobre as forças japonesas em Khalkin Gol, na fronteira com a Mongólia. Esse ponto de vista pouco comum permite a Beevor jogar luz imediata sobre a geopolítica das guerras europeias e do Pacífico.

Vitória total ou total destruição

A derrota em Khalkin Gol influenciou a decisão do Japão de não combater a União Soviética no norte da Ásia, e atacar, em vez disso, as colônias europeias do Sudeste Asiático e o poder naval americano no Pacífico. Isso empurrou os Estados Unidos para a guerra, garantindo, em maior ou menor grau, uma vitória aliada, e teve como consequência que, quando Hitler atacou a União Soviética, não pôde contar com o enredamento das forças soviéticas pelos japoneses numa segunda frente no Extremo Oriente.

Beevor exibe um toque original ao atrair a atenção para episódios pouco conhecidos, mas significativos, como o ataque-relâmpago da Luftwaffe ao porto italiano de Bari, em dezembro de 1943. Essa investida afundou um navio dos aliados, o “John Harvey”, que levava 1.350 toneladas de bombas de gás mostarda. Era uma carga ultrassecreta, que só podia ser descarregada se os alemães recorressem à guerra química. Censores dos aliados impediram que os correspondentes de guerra mencionassem não apenas o gás mostarda como também o próprio ataque-relâmpago. Os nazistas foram considerados culpados pela prática de guerra biológica, por terem retardado o avanço dos aliados pela Península Itálica ao reintroduzir a variedade de mosquito transmissor da malária nos pântanos Pontine, ao sul de Roma, drenados por Mussolini na década de 1930. Após os reveses de Stalingrado, do norte da África e da Sicília, Hitler tinha por estabelecido que a guerra deveria terminar com sua vitória total ou total destruição.

Novos parâmetros

A guerra do Pacífico não foi menos pontuada pela barbárie, como demonstra Beevor em dois capítulos baseados nos estudos pioneiros de historiadores japoneses como Toshiyuki Tanaka, professor de crimes de guerra da Universidade de Hiroshima. “Os oficiais e soldados japoneses recorreram ao canibalismo, e não apenas de cadáveres de inimigos… Em Nova Guiné eles mataram, retalharam e comeram membros da população local e trabalhadores escravos, bem como prisioneiros de guerra australianos e americanos, a quem se referiam como ‘porcos brancos’, em contraposição aos ‘porcos pretos’ asiáticos”, escreve.

As forças armadas japonesas praticaram o canibalismo não apenas por sofrer de fome intolerável, mas porque essa era “uma estratégia militar sistemática e organizada”. No entanto, os aliados suprimiram essa depravação, recusando-se a aventá-la no tribunal de crimes de guerra de Tóquio, em 1946, por representar excessivo desgaste para as famílias das vítimas.

A brutalidade e a coragem de soldados e civis despontam nos poderosos relatos que Beevor faz de batalhas como a de Kursk, de Guadalcanal e de Iwo Jima. Aqui, ele tem uma dívida de gratidão para com John Keegan, o historiador militar britânico com quem estudou e cujo livro de 1976, The Face of Battle, fixou novos parâmetros na reconstituição da experiência da guerra.

Inteligente e vívida

The Second World War não é isento de defeitos. É uma narrativa histórica do começo ao fim, principalmente militar em seu foco. Como tal, é estruturada de forma rígida demais para permitir o devido tratamento a assuntos importantes, como as economias de guerra dos participantes. A vitória dos aliados seria inconcebível sem a vasta expansão da produção americana de material de guerra – tema de Freedom’s Forge, o novo livro de Arthur Herman. Nos trechos em que Beevor menciona a economia de guerra, seu toque é menos seguro que o normal: ele exagera em afirmar que os pagamentos britânicos por suprimentos de guerra americanos em 1940 “salvaram os Estados Unidos da era da depressão e instauraram seu boom econômico de guerra”.

No mesmo sentido, alguns podem considerar Beevor pouco sensível às qualidades de liderança de Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill. Roosevelt, é verdade, nunca chegou a entender plenamente Stalin e Churchill tinha uma compreensão irregular de estratégia militar. Mas, em situações de emergência nacional, cada um deles superou as expectativas. Ou, para ser mais preciso, nem nos Estados Unidos nem no Reino Unido havia melhores líderes que eles.

Discussões desse tipo certamente persistirão por muito tempo no futuro, já que a humanidade nunca conheceu uma guerra tão devastadora em sua violência e tão profunda em suas implicações morais como a Segunda Guerra Mundial. O livro de Beevor é um prazer de ler e um exemplo do que há de melhor em escrita histórica inteligente e vívida.

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[Tony Barber, do Financial Times]