Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Zuenir lança seu Amarcord literário

“Só dez por cento é mentira. O resto é invenção.” A epígrafe de Manoel de Barros logo na primeira página dá a dica do que vem pela frente. O mais desmemoriado escritor brasileiro decidiu escrever outro livro de memórias. No primeiro, Minhas Memórias dos Outros, lançado em 2005, pela editora Planeta, Zuenir Ventura recorreu aos amigos para narrar as proezas como jornalista. Agora, em Sagrada Família, sobre a infância e adolescência vividas em Nova Friburgo, região serrana do Rio, ele teve de se virar sozinho.

Os avós, os pais, os tios, as tias já se foram e mesmo que um ou outro estivesse vivo, dificilmente estaria disposto a colaborar com o amnésico escriba. O título é uma ironia, uma bela sacada de Zuenir. De sagrado na sua família, apenas os terços usados pelas tias. É um livro sobre hipocrisia, que Nelson Rodrigues devoraria com imenso prazer.

Zuenir é um operário da palavra. Militou na imprensa carioca por muitos anos – hoje é colunista de O Globo. Escreveu, entre outros livros, o premiado best-seller 1968 – O Ano que Não Terminou, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti (na categoria reportagem). Aos 81 anos, está longe da aposentadoria. Costuma dizer aos amigos que “se soubesse que era tão bom fazer 80 anos teria feito antes”.

Além de revelar como conseguiu reconstruir as memórias de infância, Zuenir conversou com a reportagem do Valor sobre temas atuais, como o processo de revitalização dos morros cariocas, a Comissão da Verdade e a Rio+20.

O editor Roberto Feith disse que Sagrada Famíliaé uma espécie de Amarcord[clássico de Federico Fellini] literário. O que achou da comparação?

Zuenir Ventura – Jamais me compararia a um gênio como Fellini, mas concordo com a leitura do Feith. O livro tem essa coisa um pouco felliniana, essa memória que aflora, que também é meio proustiana, uma memória involuntária. Você não busca, ela vem, normalmente onde não é chamada.

Por que o senhor preferiu entrelaçar realidade com ficção em Sagrada Família? Por causa da sua reconhecida falta de memória, que, imagino, o impede de reconstruir com detalhes histórias vividas na infância e na juventude, ou apenas uma forma de evitar confusão com alguém da família?

Z.V. – Acho que as duas coisas. Mas foi meio por acaso. Misturei tanto as minhas memórias com as memórias emprestadas dos outros e as inventadas por mim que nem eu mesmo sei mais o que é real ou ficção no livro. O Robert Feith, meu editor, me ligou, por causa das cenas picantes com a minha Tia Nonoca. Queria saber se aquilo era verdade. Eu disse que eu tinha mesmo uma Tia Nonoca, mas que não era como a assanhada Tia Nonoca do livro. Era outra, que, de fato, despertava o maior tesão em mim, mas que não se chamava Nonoca. Viu que confusão…

A Tia Nonoca do livro existiu, só não tinha esse nome…

Z.V. – Sim. Essa história é real. Eu me lembro bem. Um dia estava dormindo no quarto e quando abri os olhos vi minha tia de “combinação”, que era a roupa que as mulheres vestiam por baixo, uma roupa íntima. Foi o auge da minha excitação. Era uma combinação de cetim, que parecia uma segunda pele. Essa imagem não vou esquecer jamais.

É verdade que o senhor quase desistiu do livro?

Z.V. – Quase que o livro não sai por causa de um mal-entendido. Eu sempre escrevia um pouco e parava. Voltava, parava. Parei de vez quando assinei um contrato com outra editora para escrever um livro. O Roberto Feith decidiu me cobrar: “E aí, como está o livro de memórias?” Eu disse que tinha parado, mas que já tinha seis capítulos prontos. Ele quis ler. Eu mandei por e-mail e fiquei esperando. A resposta não veio. Pensei: “Ah, o Feith não gostou e ficou constrangido de me dizer. Vou cuidar da minha vida.” O tempo passou até que um dia minha agente perguntou se eu já havia terminado o livro de memórias. Eu disse que o Feith não tinha se interessado. Ela achou estranho. Disse para eu verificar uma pasta, na minha caixa de e-mail, chamada “quarentena”, que eu nem sabia que existia. O e-mail do Feith estava realmente lá, escondido. Ele havia lido e adorado os seis capítulos. Aí resolvi retomar o livro. Não foi fácil. Falar sobre a nossa família nunca é fácil. Ainda mais uma família dos anos 40.

O senhor diz no livro que na época vigorava a “ética do dever, não do desejo”. Que “havia idade para casar, livros que não se podia ler, cores que combinavam ou não, hora para chegar em casa, interdição de gestos, palavras e, se possível, de pensamentos”. Como o senhor, um filho de pintor de paredes, sobreviveu a tudo isso e se tornou um jornalista e escritor de grande prestígio?

Z.V. – Minha vida é toda guiada pelo acaso. Sou jornalista por acaso. Sou escritor por acaso. Eu saí daquele ambiente por acaso. Comecei como pintor de paredes, depois fui contínuo de um banco, de um bar e de um laboratório de prótese. Finalmente, fui lecionar no primário para poder fazer faculdade à noite de graça. Naquela época você tinha que ir para o Rio para estudar – no interior não tinha faculdade. Fui estudar no curso de Letras Neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia (atual UFRJ). Aí foi a descoberta do paraíso.

Caiu na mão de Alceu Amoroso Lima, Manuel Bandeira…

Z.V. – De Elcio Martins, José Carlos Lisboa, Celso Cunha, Cleonice Berardinelli… Essa gente mudou minha vida. Até então, tinha duas coisas que eu fazia em Nova Friburgo: dar aula e jogar basquete. Era até um jogado razoável – era chamado de “divino mestre” por ser o professor da turma. Outro dia voltei a Friburgo para receber o “Troféu Zuenir Ventura de Basquete”. Encontrei todo mundo. Ninguém saiu da cidade – só eu. Eu poderia muito bem não ter saído. Não fiz nenhum esforço para isso, não sonhava em ir para o Rio, ou virar jornalista, muito menos escritor. Foi tudo obra do acaso.

O senhor viveu duas fases do Rio, a fase bossa nova, do esplendor artístico e cultural, e a fase barra-pesada, do poder paralelo. É autor de Cidade Partida(1994), que retrata o Rio convulsionado pela violência urbana, à mercê do tráfico de drogas. Hoje, com as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras) instaladas nos morros mais violentos e a consequente queda dos índices de criminalidade, você pensa em escrever um livro sobre esse processo de retomada?

Z.V. – Ainda acho cedo. Reconheço que pela primeira vez há uma política, que não é de extermínio, de retomada de território nos morros. Uma política de cidadania. Agora, a ocupação social é sempre mais demorada que a ocupação policial. Espero que seja uma política de Estado, e não de governo. Acho o [José Mariano] Beltrame [secretário de Segurança do Rio de Janeiro] um cara maravilhoso, que a gente importou do Rio Grande do Sul. E nem sempre as nossas importações de lá foram bem-sucedidas…

O senhor se refere a Leonel Brizola [político gaúcho que governou o Rio em dois mandatos, de 1983-1987, e de 1991-1994]?

Z.V. – Não queria dar nome para não atrair a ira dos meus amigos brizolistas. Pronto, já dei [risos]. É, realmente ele não fez bem ao estado do Rio. A única boa herança de seu governo são os Cieps [Centros Integrados de Educação Pública], que, na verdade, são resultado da obsessão por educação do professor Darcy [Ribeiro].

Como autor de 1968 – O Ano que Não Terminou(1988), o senhor está atento ao desdobramentos da Comissão da Verdade [que investiga violações dos direitos humanos, cometidas por agentes do Estado, ocorridas entre 1946 e 1988]?

Z.V. – Já veio tarde. A Argentina fez isso há 20 anos. Mas acho positivo que a comissão não tenha esse caráter punitivo. A própria presidente Dilma, uma das vítimas, fez questão de deixar bem claro que não há revanchismo. É evidente, porém, que o ideal seria prender os torturadores que cometeram barbaridades nos interrogatórios, mas tenho dúvidas se, neste momento, olhar com ódio para o passado seria a melhor solução.

Qual é a real importância da Rio+20? É outro tema que o senhor (é autor de Chico Mendes: Crime e Castigo, de 2003) tem certa familiaridade.

Z.V. – Não sei se oficialmente vai dar em alguma coisa. Pegue o exemplo da Rio-92. Os Estados Unidos não assinaram o Protocolo de Kyoto. Mas tem um aspecto que é importante ressaltar. Na minha época, ecologia era coisa de fresco. Enchiam o saco do [Fernando] Gabeira por causa disso. O importante era a política, a economia. Hoje, não, está todo mundo mobilizado em torno da causa ambiental.

O Jorge Amado (1912-2012) disse certa vez, já passando dos 80, que a “velhice é uma porcaria”. Já o senhor declarou que “se soubesse que era tão bom fazer 80 anos, teria feito antes”… A velhice é uma maravilha?

Z.V. –Acho que se a gente não tem saúde qualquer idade é ruim. Não tenho nenhum impedimento, nenhuma restrição. Na verdade, apenas duas, que me foram impostas pelo meu médico, quando tive um câncer de bexiga há 13 anos: não tomar café e não beber destilado. Obedeci prontamente. Passei a tomar café com leite, uma vez ao dia, e beber apenas vinho. Com exceção de jogar basquete, faço tudo que fazia antes. O conceito de velhice mudou muito. As balzaquianas tinham 30 anos! Hoje a mulher está parindo com 40 e arrumando namorado com 70. É claro que eu não sou eterno. O Ziraldo, que também chegou aos 80, avisou que agora chegou a pior fase, dos 80 aos 90. Mas vamos ver. Meu pai, que era muito parecido comigo fisicamente, morreu com 98 anos.

Como era seu pai?

Z.V. – Era um honrado cidadão brasileiro. Filho de português, muito rigoroso. A primeira vez que eu falei um palavrão, um “merda”, levei um pescoção que sinto até hoje. Ele era um sujeito humilde, um pintor de paredes, de moral rígida, mas muito ético, que criou os filhos com a maior dignidade. Uma vez me perguntaram qual era a herança que eu queria deixar. Eu não tive dúvidas: “Ser tão honrado quanto Zezé Ventura.”

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[Tom Cardoso, do Valor Econômico]