Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Humor e sua vocação para a desordem

Drácula e Batman provavelmente nunca se encontraram, mas na mente criativa de Luis Fernando Verissimo não se trata de um encontro improvável – aliás, já inspirou uma crônica em que as duas figuras conversam no asilo. O texto foi publicado pelo Estado em 2005 e figura agora, com ligeira reescrita, no volume Diálogos Impossíveis, que a Objetiva acaba de lançar. O título é, na verdade, contradição, pois Verissimo exerce sua verve impagável para criar situações inusitadas que, graças ao bom humor, se tornam plenamente factíveis. Afinal, quem pode garantir que Robespierre, na hora H, não tentou subornar seu carrasco? Ou ainda que D. Juan, amante inveterado, não tenha seduzido a própria morte?

É pelo humor que o escritor exerce também um trabalho sociológico, pois, com um olhar atento, reproduz a conversa cotidiana de um casal que se desentende na hora de dormir. Também conta como Juvenal planeja matar a mulher, Marinei, que o despreza.

O que norteia a compilação (formada por textos publicados no Estado, O Globo e Zero Hora) é um olhar muito explorado por Verissimo, aquele em que revela sua perplexidade diante da realidade. Se o título é irônico e permite mais de uma interpretação, o conteúdo propõe questões sobre temas fundamentais, sempre sob o humor peculiar de Verissimo. Em uma época em que o humor é cada vez mais vigiado e condenado, ele segue firme em seu estilo provocativo e muito engraçado. Sobre seu ofício, ele interrompeu suas férias em Paris para responder, por e-mail, às seguintes questões.

“O humor é, por natureza, anárquico”

Marçal Aquino costuma dizer que sempre anda com caderninho e caneta no bolso, para anotar diálogos e situações inspiradoras que aparecem inesperadamente no seu caminho. Você faz o mesmo? Como registra o que vê e ouve para depois escrever uma crônica?

Luis Fernando Verissimo – Quando tenho uma ideia para crônica, sempre confio na memória para guardá-la, o que quase nunca funciona. O pior é a sensação de que as melhores ideias são as que a gente esquece. Já tentei o caderninho, anotando palavras que me fizessem lembrar da ideia, mas aí não conseguia lembrar o que a palavra significava. E, também, as ideias costumam vir no chuveiro, onde o caderninho é impossível.

Entre quem seria impossível imaginar, de fato, um diálogo? Ou não existe diálogo impossível, apenas improvável?

L.F.V. – Qualquer dialogo é possível, se você ignorar suas impossibilidades, como a distância no tempo e no espaço entre os interlocutores. E a crônica nos permite esta liberdade, cujos únicos limites são os da imaginação.

O humor brasileiro veiculado nas grandes mídias é inegavelmente talentoso, mas seria conservador demais? Ou politicamente correto?

L.F.V. – O politicamente correto tem seu lado bom, na medida em que nos fez rever certos estereótipos comuns no humor, da TV principalmente, como o judeu usurário, o negro não muito inteligente, o homossexual grotesco etc. Agora, se o humor deve ser limitado, pelo bom gosto ou por qualquer outro padrão restritivo, é outra história. O humor é, por natureza, anárquico, desestabilizador, e não pode ter negada a sua natureza.

Domingos da Guia e Neymar

Até que ponto o humor pode resistir ao processo de homogeneização que parece dominar a escrita?

L.F.V. – Não sei se entendi a pergunta. Ou talvez não tenha prestado atenção nesse processo de homogeneização. De qualquer maneira, acho que o humor deve resistir a qualquer forma de padronização. Deve sempre ser, no mínimo, surpreendente.

Charges e toscos filmes de comédia vêm provocando reações violentas em países islâmicos. Se nada é sagrado para o humor, também não há limites, independentemente das consequências?

L.F.V. – O problema é que ninguém mais pode fazer piadas para poucos sem temer sua propagação instantânea. A piada corre o mundo e você pode, sem querer, ter insultado milhões de pessoas. É uma questão técnica, hoje tudo acaba no tubo. E fazer ou não fazer piadas sobre Maomé depende do instinto suicida, ou da vontade de provocar, de cada um. É lamentável, mas é assim.

Quais personagens do futebol você reuniria para um diálogo impossível? Pelé e Maradona?

L.F.V. – O encontro dos dois já houve, num programa de TV que o Maradona fazia na Argentina e para o qual convidou Pelé. Se deram muito bem. Seria interessante um encontro do Domingos da Guia, zagueiro, chamado de rei da grande área, que dominava com elegância imperturbável, e do Neymar, especialista em perturbar zagueiros. Talvez descobrissem que o esporte de cada um é diferente.

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[Ubiratan Brasil, do Estado de S.Paulo]