Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A maior biblioteca rural do mundo

São José do Paiaiá é um povoado baiano de 500 habitantes, no município de Nova Soure, a 250km de Salvador. É nesse lugar improvável que, segundo a professora Walnice Nogueira Galvão, está o “tesouro no Sertão”, a “maior biblioteca rural do mundo”. São 110 mil livros, das primeiras edições de Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, e Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, à coleção completa em francês de Molière, num volume de 1732. E mais 15 mil revistas e jornais, e cinco mil gibis.

A Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado é obra do professor e pesquisador Geraldo Prado, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), que leciona na UFRJ. Seu feito é tão incomum que foi parar no livro Todo mundo tem uma história pra contar (Editora Olhares), do Museu da Pessoa, que será lançado terça-feira (27/11), às 19h, na Travessa do Leblon. O museu selecionou 20 depoimentos entre os mais de 15 mil coletados em 20 anos. A história de Geraldo é comentada na obra pelo historiador inglês Paul Thompson, que fala da trajetória “extraordinária” do homem que, com sua iniciativa, ajudou a criar outras nove bibliotecas comunitárias na região.

Aos 72 anos, Prado diz que a biblioteca é um centro cultural, com nove PCs, produção de bonecas de pano, aulas de pintura, bordado e xadrez, esporte, um Ponto de Cultura e um Ponto de Leitura. Nascido em Paiaiá e radicado no Rio, ele diz que seu povoado é tão pequeno que só tem duas ruas.

Como foi sua formação escolar?

Geraldo Prado – Meu pai era um vaqueiro analfabeto. Minha mãe aprendeu a ler e escrever sozinha. Eu comecei a me alfabetizar aos 10 anos, com minha irmã mais velha. Ganhei meu primeiro livro, Na sombra do arco-íris, de Malba Tahan, de uma professora, Maria José Costa. Só terminei o primário com 14 anos. O inspetor de ensino da escola, meu parente, era analfabeto e me deu de presente de formatura um cacho de banana-ouro. Depois, aos 17 anos, apareceu uma professora novinha na cidade, vinda de Juazeiro, que me deu outro livro, Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim. Era Maria Ivete Dias, mãe da Ivete Sangalo.

E após o primário?

G.P. – Com 15 anos fui para Salvador. Uma tia queria que eu estudasse para ser padre, mas eu não tinha vontade. Voltei e ela abriu uma vendinha para mim. Mas eu era um péssimo comerciante. Vendia fiado, não recebia, e quebrei. Fiz dois cursos de rádio por correspondência. Nas duas vezes tentei montar o rádio, mas sobraram peças. Aos 21 anos, fui para São Paulo trabalhar. Meu cunhado era zelador de um prédio, e virei faxineiro e porteiro da noite. Dormia na casa de máquinas. Ganhava ainda uns trocados escrevendo cartas para os outros, copiando modelos do livro Mestre dos mestres. E trabalhei em fábrica. Sempre estudando e comprando livro. Tentei Medicina na USP, mas zerei todas as matérias, menos Biologia, que tirei 2 ou 3. Vi que tinham aberto o curso de Estudos Orientais, e decidi fazer vestibular para Português e Chinês. Eram 30 vagas e só eu como candidato. Tirei primeiro lugar. E último (risos). Mas o professor dava aula de chinês em inglês e eu não entendia nenhuma das duas línguas. Após três anos, mudei para História, e me formei. Tive aulas, obrigatórias ou como ouvinte, com Antonio Candido, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Hollanda, Aziz Ab’Saber, Walnice Nogueira Galvão, Alfredo Bosi, Ruth e Fernando Henrique Cardoso. Na USP, participei da militância estudantil e aprendi a fazer coquetel molotov. Usamos bastante naquele período de ditadura militar. Fui detido quatro vezes. A pior foi a prisão pela Oban (a temida Operação Bandeirante). Foram 12 dias. Quando saí, Romeu Tuma (ex-diretor geral do Dops) quis me dar dinheiro para a passagem. Joguei para trás e disse que não recebia dinheiro de torturador. Me recolheram de novo, e fiquei mais um dia.

E como surgiu a biblioteca?

G.P. – Em 2001, me separei e tive que me mudar. Não tinha onde botar meus livros. Tentei doar para a UFRJ, mas não aceitaram. Já os sebos pagavam uma ninharia. Cheguei a dar 1.500 para a Biblioteca Estadual, mas não quiseram mais. Numa ida a Paiaiá, perguntei a um sobrinho, José Arivaldo, o Vadinho, se cuidaria de uma biblioteca. Ele topou. Paguei um amigo para levar de caminhão 12 mil livros. Depois, a Itapemirim transportou 30 mil de graça. Aos poucos, levei mais. No início, a biblioteca ficava numa garagem da minha prima, que aluguei por R$ 50. Aí comprei uma casa por R$ 2 mil. E depois outra, por R$ 13 mil. Mas ainda faltava espaço, e fizemos um prédio de três andares atrás, o único do povoado. É o Paiaiá Empire State (risos). Mas estamos sempre recebendo muitos livros e falta lugar para abrigá-los. Ganhamos de escolas, universidades, bibliotecas, entidades ou de pessoas como Antonio Candido, que depachou 300 livros para Paiaiá. A família de José Mindlin também doou obras do acervo. Precisamos nos expandir. Tem uma casa ao lado, mas o dono inflacionou o preço e está pedindo R$ 80 mil. Mandei um projeto para a Petrobras de tratamento de acervo e readequação de espaço, mas ainda não tive resposta. Tenho uns 30 projetos espalhados por aí. Todo edital que aparece eu entro. Já conseguimos, por exemplo, um de capacitação de professores do meio rural e outro de educação infantil.

Como a comunidade reagiu à biblioteca?

G.P. – No início teve gente que disse: “Não interessa biblioteca e sim fábrica, geração de renda”. Quando chegaram os primeiros livros, uma senhora foi de casa em casa falando que eram roubados, porque na véspera o Jornal Nacional noticiara um furto na Biblioteca do Itamaraty, no Rio. Depois, quando a Universidade Federal da Bahia incluiu Dona Flor e seus dois maridos no vestibular, muito estudante foi lá ler o livro e ver o filme. Num sermão, o padre da época disse para os jovens terem cuidado com a biblioteca. Mas o padre atual é um aliado.

Hoje a biblioteca é um orgulho local. Que resultados ela já trouxe?

G.P. – A maior parte do público tem até 14 anos. Adultos de lá são poucos, mas vai gente até de Salvador para a biblioteca. As professoras dizem que a taxa de repetência caiu 20%. Colaboramos para uma mudança de hábitos. Vários moradores, que iriam para SP trabalhar como faxineiro, cobrador, operário, estão em universidades públicas na Bahia e em Sergipe.

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[Mauro Ventura, de O Globo]