Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

No “melhor ofício do mundo”

“Os habitantes da cidade já estávamos acostumados à garganta metálica que anunciava o toque de recolher”, dizia a primeira linha de uma crônica publicada em 21 de maio de 1948 pelo Universal, de Cartagena, Colômbia, redigida por um tal Gabriel García Márquez. Aos 21 anos, o então estudante de Direito estreava no mundo do jornalismo com uma nota cheia de poesia que trazia nas entrelinhas o turbulento momento político que vivia seu país. Quase 50 anos depois, o Prêmio Nobel de Literatura de 1982 compraria o sobrado que serviu de redação do jornal onde se iniciou no “melhor ofício do mundo”, como definiu certa vez, e criou no local a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI) para fomentar o jornalismo. E, para celebrar esse lado repórter de seu fundador, a entidade acaba de publicar o livro Gabo, Periodista.

“Temos o interesse de recuperar essa obra jornalística, que é um lado que as pessoas não conhecem muito bem e é extremamente importante para o desenvolvimento do escritor García Márquez”, conta ao Valor, de Cartagena, o diretor da FNPI, Jaime Abello. Responsável pelo epílogo do livro, Abello relata que, além de repórter e cronista, Gabo exerceu a função de editor, professor de jornalismo, proprietário e criador de meios de informação. “Ele sempre deu a maior importância ao jornalismo, não só do ponto de vista criativo, mas político e social”, acrescenta.

A obra, apresentada no fim de novembro na Feira do Livro de Guadalajara (México) e ainda sem previsão de chegar ao Brasil, traz 15 textos jornalísticos, de gêneros e datas diversos, escolhidos e comentados por nomes como Sergio Ramírez e Jon Lee Anderson. “De certa maneira essa compilação abarca toda a carreira e as várias facetas jornalísticas de García Márquez”, explica o porto-riquenho Héctor Feliciano, editor do livro. “Durante esses três anos de trabalho o que mais me chamou a atenção foi a qualidade do jornalismo feito por ele. Desde o primeiro artigo, Gabo demonstra um domínio pleno do idioma e muita imaginação.” Feliciano, que foi correspondente do Washington Post durante décadas, conta que conheceu García Márquez na Colômbia e a primeira coisa que chamou sua atenção foi o humor do futuro amigo. “Talvez seja para disfarçar a melancolia caribenha. E esse humor também está presente, sempre, em seus trabalhos publicados nos jornais.”

Vício do gravador

Em uma das notas escolhidas, o humor e a ironia aparecem em sua plenitude quando o jornalista García Márquez, na época (1951) repórter do Heraldo, de Barranquilla, relata a aparição de uma vaca no centro da cidade, o que acaba por transformar uma simples terça-feira em um domingo. Em meio aos carros e pedestres que se dirigiam ao trabalho, o animal plantou-se “como uma árvore de quatro patas” em via pública. “E ali estava a vaca, séria, filosófica, imóvel, como a simbólica estátua de um ministro plenipotenciário.” Nem o guarda de trânsito, nem os boxeadores hospedados em um hotel próximo, nem mesmo um toureiro de ocasião armado de uma camisa de dormir conseguiram mover o bicho, que havia se tornado o personagem mais importante da cidade. E foi só à meia-noite, quando um bêbado gritou “Viva o Partido Liberal!”, que a polícia dispersou a multidão e levou a vaca para o pátio da delegacia, contou o cronista.

Os textos de Gabo demonstram a possibilidade de fazer um jornalismo menos padronizado, aponta Feliciano. “Queremos que jovens jornalistas se inspirem, vejam que é possível fazer jornalismo literário de qualidade e sobre diversos temas. Hoje em dia, a especialização do mundo e do jornalismo é tão grande que não se permite isso.”

Em uma das crônicas recuperadas no livro – que por ora será distribuído gratuitamente no México e na Colômbia a entidades relacionadas ao jornalismo e à cultura e só deve chegar ao grande público em 2014 –, García Márquez fala da dificuldade de fazer uma boa entrevista. “[Entrevistas] são como o amor: é necessário pelo menos duas pessoas para fazer, e só fica bom se essas pessoas se gostam.” Após ter passado para o outro lado – o do entrevistado –, o escritor revela a frustração de ter a sensação que dá sempre a mesma entrevista. Um dos culpados, diz, é o gravador, que faz que o entrevistador não se preocupe em ouvir as respostas. “[O repórter] acredita que o gravador ouve tudo. E se equivoca: não ouve as batidas do coração, que é o que mais vale numa entrevista”, ensina.

Medo de avião

Além de textos do escritor, a publicação de mais de 500 páginas traz fotos raras do arquivo pessoal do autor de O Outono do Patriarca, um perfil feito pelo biógrafo Gerald Martin – que passou mais de 20 anos compilando informações sobre o Nobel colombiano –, os bastidores da reportagem mais famosa de García Márquez (Relato de um náufrago) e uma entrevista com Mercedes Barcha, sua mulher há mais de 50 anos. “Ela só havia dado duas entrevistas na vida, curtinhas, nos anos 70. Dessa vez foi uma conversa bem longa, são 20 páginas, e pela primeira vez ela faz um resumo histórico”, explica Feliciano. Segundo o editor, Mercedes tem uma memória privilegiada e, diferentemente do marido, não fantasia ao contar as histórias. “É econômica nas respostas, mas conta realmente o que aconteceu.”

Um dos episódios esclarecidos na entrevista é sobre o envio do manuscrito de Cem Anos de Solidão à Argentina, em 1967. Ao chegar ao Correio, o casal percebeu que não tinha dinheiro suficiente para mandar todo o material e decidiu enviar metade – esperaram a chegada de um cheque de US$ 100 para mandar o restante. Por um equívoco, acabaram por enviar a metade final do livro, contou Gabo em algumas oportunidades. Mercedes relata que de fato não puderam mandar todas as folhas à editora, mas a parte que chegou primeiro a Buenos Aires foi a que trazia o início do romance.

Quando do lançamento do livro no México, os organizadores da obra divulgaram uma foto ao lado de García Márquez – que mora no país, mas não esteve no evento. Foi uma maneira de amenizar as notícias sobre sua saúde. Recentemente, Jaime García Márquez revelou que o irmão está perdendo a memória. “Gabo tem a saúde compatível com sua idade: 85 anos. E hoje está tranquilo, no México, cercado das pessoas que ama. Está oficialmente retirado da vida pública e a vida privada cabe a ele”, comenta Jaime Abello. Traduzindo: os leitores não devem esperar novo livro do criador de Macondo. Resta o consolo das histórias narradas pelo jornalista García Márquez, que, assim como o escritor, é capaz de prender o leitor já na primeira frase: “O único medo que os latinos confessamos sem vergonha, e até com certo orgulho machista, é o medo do avião”, escreveu em uma crônica de 1980.

***

[Ricardo Viel, para o Valor, de Guadalajara]