Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Livros velhos, casa nova

A maior coleção brasiliana pertencente a uma universidade chegou ao seu destino. Na semana passada, foram transferidos ao seu prédio definitivo os cerca de 32 mil títulos -ou aproximadamente 60 mil volumes- da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Agora, o ainda inacabado edifício de 21.950 m² (quase dois campos de futebol), projetado por Eduardo de Almeida e Rodrigo Mindlin Loeb e que, desde 2006, consumiu cerca de R$ 130 milhões, contém o acervo doado pelo bibliófilo.

Os livros, manuscritos, mapas, periódicos e imagens que agora estão no campus Butantã da USP (Universidade de São Paulo), ficavam antes em uma residência da família no Brooklin, zona sul da capital.

Comumente associado a esta notável coleção, o termo “brasiliana” não lhe é exclusivo. Aplica-se aos conjuntos de livros, gravuras, pinturas ou cartões-postais sobre o Brasil, de autores brasileiros ou impressos no país.

Quando a biblioteca for inaugurada -e, segundo seu diretor, o historiador da USP Pedro Puntoni, a data ainda não foi fixada-, a universidade terá acesso mais direto aos itens coletados ao longo de décadas pelo casal.

Catraca

Acesso deve ser aqui entendido com uma dupla ressalva. Por um lado, diz Puntoni, o acervo estará sujeito ao rigor que as obras raras exigem.

“Não é recomendável que sejam folheadas à exaustão, já que existe uma perspectiva de preservação.”

Segundo ele, regras de acesso ainda serão definidas.

“Será a primeira tarefa dos bibliotecários. O que se sabe é que a coleção não será aberta ao público para consulta nos primeiros meses. E que o acesso às obras não digitalizadas precisará ser justificado”, explica.

Por outro lado, o diretor defende que a digitalização do acervo será capaz de garantir o acesso ao conteúdo por vezes exclusivo da coleção.

“Com as novas tecnologias, estamos preparados para garantir acesso universal, dentro dos limites impostos pelo direito autoral.”

Puntoni refere-se ao processo de digitalização que, desde 2009, alcançou 4.000 títulos da coleção -3.600 deles já disponíveis na internet.

“Também digitalizamos obras raras de outras coleções da USP. Foram 2.400 livros, mas eles ainda não estão disponíveis on-line”.

Para as obras já em domínio público, a internet abriu portas. No campus, pode haver controle. “A segurança quer que haja catracas para as exposições [no térreo]. Catraca sempre gera uma situação de embaraço. Eu queria que o térreo fosse livre. Ele foi pensado arquitetonicamente para isso”, defende o diretor.

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Brasiliana terá de aprender a ser pública

Além das vedações dos direitos autorais à divulgação de conteúdo na internet e das catracas defendidas pela segurança, a nova biblioteca poderá enfrentar uma terceira limitação: a econômica.

Enquanto pertenceu aos Mindlin, o que definia o volume de aquisição de novas obras era o orçamento familiar. Com a doação a uma universidade pública, as regras passam a ser as das licitações.

Para Sueli Mara Ferreira, diretora técnica do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP (SIBi), as leis podem dificultar compras, na medida em que estabelecem a prevalência do menor preço.

Já o diretor do novo espaço, Pedro Puntoni, relembra o desejo dos doadores de que “fosse uma biblioteca em expansão, coleção viva, de difusão da cultura brasileira”.

Companhia

Se a ampliação do acervo ainda é tema incerto, a coleção deverá ganhar companhia ao longo de 2013. Está prevista a conclusão da parcela do edifício destinada a receber o IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), o departamento técnico do SIBi e obras raras que unidades da USP decidam acomodar ali.

“O projeto tenta reunir aqui condições que não existem em outros acervos. Nem todas as unidades preocuparam-se em proporcionar tais condições”, diz Puntoni.

Ele, que é também conselheiro do SIBi, diz que o órgão pode dar apenas recomendações às bibliotecas. “Estamos tentando criar uma política centralizada para obras raras, com recomendações claras para as unidades. Se não as puderem observar, vamos pedir que as depositem aqui, mas sem poder exigir.”

A começar do valor total gasto até aqui no projeto -cerca de R$ 130 milhões desde 2006-, a nova biblioteca destoa, se comparada às demais.

Puntoni menciona “uma dotação orçamentaria generosa para manutenção predial”. Segundo ele, esse custo ainda não foi estimado. “Estamos juntando dados para orçar um pacote de sustentação num patamar a que a USP ainda não está acostumada.”

Outro diferencial que salta aos olhos é o mobiliário de designers conhecidos, como Sergio Rodrigues, Carlos Motta e Oswaldo Bratke.

Segundo o diretor, uma doação de R$ 17 milhões do BNDES garantiu móveis, automação, sistemas de segurança, controle de acesso, infraestruturas de informática e de preservação do acervo.

Livros expostos

A inauguração da biblioteca será acompanhada, segundo Puntoni, da abertura de duas exposições.

Uma delas, permanente, sobre a vida do casal Mindlin, a formação do acervo, a construção do prédio e a história da imprensa. “O básico para que se reconheça o valor de um livro físico, para sensibilizar as pessoas a respeito do significado da coleção”, diz.

A outra exibirá por três meses 95 títulos, entre os quais primeiras edições de Machado de Assis, Castro Alves e José de Alencar.

A ideia é valorizar também a forma dos livros, não apenas seu conteúdo. “Os exemplares destacam-se pela encadernação. Esse era um cuidado do José e também do Rubens Borba de Moraes [bibliófilo que destinara sua coleção ao amigo Mindlin].”

Para o diretor, a união de conteúdo e forma faz com que o valor da biblioteca seja “inestimável”. “Nem o José sabia dizer quanto valia. O conjunto, como ele gostava de dizer, tem uma dimensão que o torna indivisível.”

“A biblioteca tem um valor de preservação que as pessoas agora vão poder ver mais facilmente. Temos muitas coleções excepcionais em mau estado, como a da Biblioteca Nacional”, compara.

Dentro do mais novo prédio da USP, a temperatura era agradável numa tarde de verão. Havia sistema de combate a incêndios -censores e sprinklers- e o acesso aos livros era restrito, pela leitura da impressão digital, a pessoas autorizadas.

Mas a calma era abalada pelo ruído excessivo do ar-condicionado. “É barulhento, não é? Faz oito meses que estamos brigando com as empresas da licitação que, só agora, contrataram uma outra para arrumar”. Os percalços do sistema público, destaca Puntoni.

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[Trajano Pontes colaboração para a Folha de S.Paulo]