Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reserva digital: a Brasiliana

Há seis anos, o maior colecionador de obras do País, José Mindlin, doou o seu acervo de 32 mil títulos e 60 mil volumes para a USP. Foi o pontapé inicial para a criação da Brasiliana, biblioteca que existe virtualmente desde 2009 e agora está no mundo físico. Ela foi inaugurada oficialmente no último sábado, em um moderno edifício desenhado especialmente para receber o acervo e a toda a infraestrutura necessária para a sua digitalização.

O prédio, localizado no centro do câmpus universitário, é a concretização do que José Mindlin sonhava desde a doação do seu patrimônio para a USP, em 2006. Antes disso, tudo o que adquirira durante sua vida se acumulava em sua própria casa, na zona sul da capital paulista, onde nasceu. E foi também lá que começou o processo de digitalização do acervo, feito apenas com um scanner importado batizado de “Maria Bonita”, que trabalhava capturando 2,4 mil páginas por hora.

O espaço começou a ser pouco e as demandas cresceram, principalmente após uma solicitação da USP para que o acervo de obras raras de algumas faculdades fosse digitalizado.

A biblioteca se mudou provisoriamente para um dos prédios dos cursos de Engenharia – e, agora, ganhou o endereço definitivo no coração do câmpus. (O acervo de obras raras está praticamente pronto e deve estrear ao público ainda neste ano.)

O prédio final recebe com o devido conforto não só Maria Bonita, mas também outros dois scanners projetados para capturar páginas de livros e dois “Sky View”, que têm superfície adequada para a digitalização de documentos maiores, como periódicos e mapas. Além disso, pelo privilégio de ter um lugar estável, a Brasiliana agora conta com profissionais contratados exclusivamente para atividades centrais para a continuidade do trabalho de preservação e digitalização do acervo.

Gargalo

Só que, até agora, apenas 10% dos 32 mil documentos cedidos por Mindlin estão no ar. Para Pedro Puntoni, coordenador da Brasiliana e professor do departamento de História, a vagareza tecnológica não representa um problema. A pedra no sapato é jurídica.

Cerca de metade das raridades de Mindlin não poderiam, legalmente, ser digitalizadas e, consequentemente, liberadas para acesso público. Isso porque, de acordo com a lei de direitos autorais em vigor no País, para reproduzir uma obra, a instituição deve ter a autorização do seu responsável ou aguardar que ela entre em domínio público – o que leva 70 anos após a morte do autor.

As obras não poderiam, mas, se depender de Puntoni, a Brasiliana não vai permitir que nenhuma raridade apodreça sem garantir sua sobrevivência digital.

“Não há na lei nenhuma regra específica para reprodução de obras raras por bibliotecas”, explica Manoel Joaquim Pereira dos Santos, assessor jurídico da Brasiliana. “Já que a digitalização não constitui ganho econômico, vamos seguir a Constituição que diz que o Estado tem que preservar obras de patrimônio público.”

“Em todo lugar no mundo, a lei limita os direitos do autor para o uso por bibliotecas para preservação”, emenda Pedro Puntoni. “Só Brasil, Burundi, Haiti, Burkina Faso e o Principado de Mônaco não têm essa limitação. É uma vergonha. Temos que preservar a memória”, conclui.

A digitalização da Brasiliana, aliás, é orientada por princípios livres – a começar pelo software. O trabalho carrega no Brasil a bandeira da chamada Rede Memorial, grupo de 31 instituições que assumiram o compromisso de digitalizar seus acervos seguindo princípios como os de acesso livre aos documentos e “compartilhamento das informações e da tecnologia” usadas.

Para isso, a Brasiliana arquitetou seu sistema combinando vários tipos de software livre. Estão presentes o DSpace, programa de repositório de conteúdo digital gerido por uma ONG britânica; o Djatoka, para imagens; os visualizadores IIPIimage e BookReader; além do buscador Solr, da Apache.

O produto final agora se espalha por instituições como a Fundação Joaquim Nabuco e a Biblioteca Mário de Andrade, que ajudam a desenvolver novos recursos e melhorar o programa.

“O legal do software livre é que todos estão na mesma canoa. É uma solução coletiva e todos participam do processo”, opina Puntoni. “O sistema está bom para nós, que somos uma biblioteca. Mas o Instituto Moreira Sales precisa de um reprodutor de áudio, por isso na próxima versão vamos ter que acrescentar esse recurso, e assim vai.”

O sonho do professor é ver no Brasil um metabuscador (buscador que vasculha outros buscadores) que reúna em um só lugar todos os acervos digitalizados de todas as bibliotecas nacionais. A inspiração é a Europeana, biblioteca digital europeia que reúne 20 milhões de arquivos de mais de duas mil instituições.
“É claro que isso é uma vontade nossa, mas aqui somos apenas uma universidade, nosso objetivo é incentivar e dar base para pesquisa. O metabuscador é política pública e isso é com o governo”, ponderou.

A equipe de tecnologia da biblioteca, formada por professores e alunos da Politécnica, prepara ainda uma atualização da plataforma que deve ficar pronta até o fim do ano, avançando para o que Puntoni chamou de “versão 2.0”. No pacote, estarão presentes aplicativos para aparelhos móveis.

Segundo o professor da Poli, Edson Gomi, já há um app em desenvolvimento para iOS, da Apple; a versão para Android ainda aguarda alunos interessados em trabalhar com a plataforma do Google.

******

Murilo Roncolato, do Estado de S.Paulo