Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sonhos cibernéticos

Um mundo onde as corporações multinacionais têm grande poder e controlam um volume substancial da sua vida; onde a computação e a internet estão em todos os lugares, sendo usados até para fins militares; onde as cidades se expandiram tanto até se fundirem; e onde a interface entre homem e máquina está avançando.

Pode parecer uma descrição do mundo atual ou mesmo de alguns anos à frente, mas na verdade é o futuro representado no romance Neuromancer, do escritor norte-americano William Gibson.

Escrito em 1983 (mas publicado em 1984), o livro transformou esse cenário num elemento integral do subgênero que legitimou, o cyberpunk. Tecnologias de informação e cibernética mescladas à desintegração na ordem social são alguns dos elementos que caracterizam esse estilo.

A história, num tempo futuro não identificado, mas supostamente não tão distante da atualidade, acompanha o caubói Case. Em Neuromancer, caubóis não são os vaqueiros do Velho Oeste – eles se assemelham mais aos nossos hackers. São pessoas que ganham a vida invadindo computadores e roubando informação.

Por meio de dispositivos inteligentes, os decks, os caubóis navegam a “alucinação consensual” da matriz, uma versão muito mais sofisticada da internet que é projetada em 3D na mente do caubóis e de todos que interagem com ela. Quando conectada a ela, o usuário se encontra no ciberespaço, termo cunhado pelo próprio Gibson e que hoje integra o meio da computação.

Junto com o inescrutável Armitage, a perigosa Molly e o psicótico Peter Riviera, Case é contratado pelo misterioso Wintermute para uma missão que o fará sair de Chiba City, no Japão, passar por Istambul (Turquia) e pelo Sprawl, megacidade que cobre boa parte da costa leste dos Estados Unidos, até chegar às estações espaciais que orbitam a Terra.

Tudo isso num clima noir e envolvendo elementos de contracultura, computação e cibernética, também descrito em inglês como high tech, low life; em português, algo como ‘alta tecnologia, vida baixa’.

Marco um

Segundo o professor de jogos digitais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o escritor de ficção científica Fábio Fernandes, Neuromancer não é considerado o marco zero do cyberpunk.

“Esse título é dado ao romance City come a-walkin, do escritor norte-americano John Shirley, de 1980. Mas a obra de Gibson é brilhante e tem seu diferencial no excesso de estilo, nas imagens que cria e no seu olho para o detalhe, entre outros aspectos”, observa.

“É preciso lembrar que ele já tinha 35 anos quando escreveu Neuromancer – não era um escritor inexperiente, apesar de ser seu primeiro romance,” acrescenta Fernandes, que traduziu a obra para o português (editora Aleph).

Entre as inspirações de Gibson, o escritor brasileiro destaca a pop art, especialmente a de temática espacial dos anos 70; a cultura japonesa; o nascente mundo da informática; e o movimento de contracultura.

“Esteticamente, há semelhanças com o filme Blade Runner, mas Gibson as nega. Diz que entrou no cinema para ver o filme, mas saiu no meio para não se influenciar”, conta Fernandes.

Previsões

Volta e meia, obras de ficção científica são julgadas pela sua capacidade de previsão do futuro. Embora essa não seja considerada uma métrica válida para escritores e críticos, fãs do gênero gostam de discutir como esse ou aquele livro acertou em prever o desenvolvimento de um determinado tipo de tecnologia.

Não poderia ser diferente com Neuromancer. Mas Gibson é o primeiro a refutar o título de profeta. Ele argumenta que se realmente fosse presciente, teria pensado no telefone celular, um dispositivo cuja ausência na história de Case e seus comparsas é, hoje em dia, extremamente chamativa.

Outro elemento que não se concretizou foi a supremacia cultural do Japão. Na década de lançamento de Neuromancer, apostava-se que o futuro seria dominado por influências nipônicas, mais ou menos como atualmente se acredita que será o caso com a cultura chinesa.

Finalmente, em determinado momento da narrativa, Case se refere a 3 megabytes (MB) de memória RAM como um item “quente”. Embora o ‘calor’ da memória tenha mais a ver com o conteúdo guardado nela, é risível pensar que no futuro megabytes ainda terão alguma relevância, já que nós, no presente, estamos trabalhando com gigabytes (GB) e terabytes (TB), volumes mil e um milhão de vezes maiores que MB.

Ocaso

Um detalhe curioso da obra é o número acima da média de referências ao Brasil, desde drogas sintéticas a instalações de inteligência artificial. Para Fernandes, a presença do país no texto não tem significado mais profundo e estaria lá porque Gibson precisava de um lugar que parecesse exótico. “Na época, o Brasil era um lugar violento associado ao tráfico de drogas”, lembra o escritor.

Apesar de seu sucesso nos anos 1980, o cyberpunk hoje está praticamente extinto como gênero literário. Seus escritores mais emblemáticos se dedicam a uma ficção científica que não mais se enquadra nos padrões do subgênero que deu origem a Neuromancer.

“É um pós-cyberpunk. Na verdade, houve uma abertura de escopo das histórias, inclusive com visitas ao passado. Um dos filhos do cyberpunk é o steampunk, cujas histórias se passam numa era Vitoriana com tecnologias que nunca existiram”, conta Fernandes.

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Fred Furtado, do Ciência Hoje/ RJ