Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Criticar ou falar mal?

Proveniente do grego kritiké, tendo chegado até nós através do latim, o verbo “criticar” deriva do indo-europeu krinein, que na origem significa separar, escolher, no sentido físico: separar o joio do trigo, a pepita do cascalho. Na passagem para o grego e o latim, e daí para as línguas modernas, o vocábulo ganhou a acepção que tem hoje: “avaliar com competência, distinguir o verdadeiro do falso, o bom do mau etc.” (Houaiss). Atividade eminentemente racional, “criticar” equivale a ponderar com isenção e conhecimento de causa, a fim de identificar o que realmente vale, já agora separado do que apenas aparenta valer.

É essa a ideia básica presente em palavras como crise, crivo, critério, decreto, discernimento, e também crime, incriminar, recriminar, discriminar – todas originárias da raiz indo-europeia krei. “Criticar”, assim, é um dos mais elevados exercícios do espírito, por meio do qual o homem se esforça por atingir diante das coisas o máximo possível de objetividade, a fim de que juízos de valor sejam emitidos com equilíbrio e justiça. Não é, portanto, um ato praticado “contra” ou “a favor”: é um ato neutro.

Não é esse, porém, o sentido que vigora. Para nós, criticar significa “apontar defeitos, dizer mal, denegrir” (Houaiss), e toda crítica é sempre “opinião desfavorável, censura, condenação” (idem). Se não for assim; se se limitar a distinguir o joio do trigo, com imparcialidade; se proceder, serena e equânime, no encalço da razão objetiva – aí quem perde prestígio é o crítico, logo acusado de não ter opinião própria e ficar em cima do muro. Só admitimos como verdadeira a crítica que fala mal.

Crítica e utopia

“É um espetáculo abaixo da crítica”, “Tal ou qual obra é pra lá de criticável”, “Fulano só sabe criticar”, “Quem não sabe fazer… critica”, “É preciso estar preparado para receber críticas” etc., etc. Alguém conhece outro sentido para “criticar”? Isso se deve, talvez, ao pragmatismo dominante em nossa cultura, que recomenda ir direto ao ponto, sem perder tempo com arrastadas análises, via de regra hesitantes entre perspectivas que se anulam ou se contradizem e costumam adiar para São Nunca o veredito definitivo. Queremos “crítica”! E queremos já.

Estamos diante do estágio mais avançado de uma longa história, que pode ter começado com a maiêutica socrática e foi aos poucos exacerbando o espírito de contradição, ao que parece latente em todos nós: a cartesiana dúvida metódica; a valorização da Razão, entre os iluministas; o criticismo, essencial em Kant; o legítimo e universal direito de contestar, nas sociedades modernas e contemporâneas.

Daí a multiplicação dos pontos de vista e dos desencontrados juízos de valor, todos – em princípio – igualmente válidos, bastando para isso que a “crítica” seja capaz de arregimentar em seu favor um ou outro argumento minimamente razoável, não obstante faccioso. A velha crítica, com sua visão imparcial e seu sonho de isenção e objetividade, foi rebaixada a utopia, vindo a ser substituída pela crítica fragmentária, tendenciosa, relativista.

Todos especialistas

Na mesma medida em que a crítica especializada torna cada vez mais sofisticados os seus instrumentos teóricos (o que só faz exacerbar o relativismo), a crítica no dia a dia tende a se satisfazer com o mero palpite, fruto não do conhecimento e da razão ponderada, mas da reação epidérmica, passional. Se os especialistas não se entendem e têm argumentos e justificativas para (quase) tudo, por que cada um de nós não pode emitir o próprio juízo? O resultado não é o mesmo? Gosto não se discute, existe gosto para tudo… O máximo refinamento do espírito crítico e o vale-tudo em matéria de julgamento não se excluem.

Por isso é cada vez maior o número de artistas (pintores, músicos, poetas) com formação universitária na área específica da sua arte: a crítica deixou de ser uma atividade exercida exclusivamente por observadores de fora e passou a integrar a própria produção artística. O poeta, por exemplo, não se limita a criar a sua poesia, mas elabora uma árdua reflexão crítico-teórica – como apêndice ou matéria embutida na criação – destinada a facultar o acesso a essa mesma poesia.

Por isso, também, é cada vez mais rara (para ficarmos no exemplo literário) a figura do leitor comum. O prazer de abrir um livro – ouvir um concerto, percorrer uma galeria de arte etc. – foi substituído pela ânsia de adquirir a preparação teórica sem a qual nem vale a pena tentar. Breve seremos todos especialistas, exercendo o nosso dever de “avaliar com competência, distinguir o verdadeiro do falso, o bom do mau”, como na origem. Falar mal talvez seja mais divertido, mas (esperança, dizia Vinícius de Moraes, não custa nada e é sempre melhor ter do que não ter) quem sabe um dia distinguir o joio do trigo pode vir a ser um ato natural e universalmente praticado por todos, para além ou aquém das diferenças.

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Carlos Felipe Moisés é poeta (Noite Nula), crítico literário (O Desconcerto do Mundo) e tradutor (O Poder do Mito)