Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma vida na plateia

Na última quinta-feira [29/8], a designer Marcia comunicou à mãe que iria deixar o cadeado da porta destravado. Estava dando muito trabalho abri-lo a cada vez que a campainha tocava na casa de número 4 do Largo do Boticário, outrora um dos recantos mais agradáveis do Rio. Barbara Heliodora aquiesceu e, sentada no sofá da sala, cercada de numerosos buquês de flores, abriu o pesado pacote que acabara de chegar. O livro com reproduções de gravuras de Debret era presente de Fernanda Montenegro pelos seus 90 anos, celebrados naquele dia. O cartão aludia ao compromisso e à devoção das duas pelo teatro. Professora de história de teatro por mais de 20 anos, tradutora de 35 das 37 peças de Shakespeare, coordenadora de um grupo de estudo semanal sobre o bardo inglês, crítica por várias décadas (os últimos 23 anos no GLOBO), Barbara passou o dia ganhando flores, presentes e telefonemas, como o do seu médico, o clínico Pedro Henrique, a quem garantiu estar bem, “graças a Deus e a você”.

A “grande farra”, para ela, seria reunir a família. Marcia, a filha mais nova, mora em Belo Horizonte; Priscilla, a mais velha, analista de sistemas, em São Paulo; Patricia, a do meio, atriz, no Rio. Uma parte dos parentes já circulava pelos aposentos repletos de retratos, deles e de atores como a própria Fernanda e Ítalo Rossi, uma coleção de pequenos objetos na cor azul, e livros, demasiados livros. A bassê Lili, de Patricia, não parava de pular no seu colo. A bisneta Isabela, de 3 anos, idem. No fim da tarde, filhas, netos, bisnetos e primos estariam todos lá, mas estava longe de ser o clímax dos festejos. O segundo tempo incluiria os amigos, no La Fiorentina, tradicional reduto da classe artística, no Leme. Nada demais para a senhora de cabelos acinzentados, corpulenta e elegante, com energia para assistir a até cinco peças por semana – maratona só dificultada pelo fato de muitas, como ela diz, serem uma espécie de provação.

– Às vezes é um verdadeiro horror, muito pior do que escrevo nos textos. Como é que não percebem que estão apresentando tamanha porcaria? – comenta ela, cujo parecer afiado, sem meias-palavras, sobre aquilo que vê já lhe custou situações como ser impedida de entrar num espetáculo dirigido por Ulysses Cruz, amaldiçoada por Gerald Thomas, alvo da ira de José Celso Martinez Corrêa e pivô de longos debates sobre o papel e os limites da crítica – que ela sempre encarou com tranquilidade, com uma frase que funciona como uma profissão de fé: a crítica condescendente é uma má crítica.

O “muito pior do que escrevo nos textos” não é mera retórica. Nos e-mails encaminhados ao jornal com suas críticas anexadas, ela costuma dar uma palinha do conteúdo. Coisas como “meu pobre Shakespeare sofre mais um triste golpe nessa bobajada insana; eu lhe garanto que é bem pior do que eu escrevi, mas os erros e enganos são tantos e tais que o melhor é ficar assim, só pelas beiradas”. Ou: “Há momentos em que a profissão de crítica é realmente dolorosa; este foi um deles. Cruzes!!!” E ainda: “Estou começando a encarar o suicídio como opção festiva, comparada com o que ando vendo”. Diga-se o que for de Barbara Heliodora, não se pode acusá-la de falta de senso de humor.

Do mesmo jeito, a crítica, que desistiu da carreira de atriz (“Não tinha amor pelo palco”, admite) para se tornar uma estudiosa do teatro, exulta quando vê algo bom. “Esse espetáculo paga uma boa parte dos muitos horrores que eu vejo. Não perca! É maravilhoso!”, comentou, num e-mails enviado recentemente ao jornal. Em outra ocasião, no ano passado, foi assistir já nos últimos dias da temporada a uma produção paulista e defendeu a publicação da crítica, mesmo não havendo tempo hábil para tal: “Eles só ficam até domingo, e o espetáculo é apaixonante, bonito, alegre, comovente. Ficaria muito grata se você pudesse incluir no sábado.”

– Fico doida quando não me deixam ver todas as peças – diz ela, referindo-se à atual recomendação médica, depois de vários dias hospitalizada com uma forte gripe, de que, por enquanto, vá ao teatro “apenas” duas vezes por semana.

“Sempre melhor…”

Ela acata, à espera do abrandamento da pena. E Barbara nunca vai só. Está sempre acompanhada de algum amigo, como o psicanalista Agenor Alvarenga, a prima Lalu, ou um jovem integrante do seu grupo de estudos de Shakespeare. “Sozinha é muito chato”, diz. Afinal, com quem ela iria se congraçar, ao final, por ter visto um bom espetáculo, ou para quem diria, durante a peça, que “dá vontade de ir embora”?

– Com cinco a dez minutos, você já sabe que não tem salvação – assegura.

Falando assim, parece que estamos vivendo uma temporada ruim, o que ela nega com veemência. O momento, diz Barbara, é dos melhores.

– O teatro é o melhor documento sobre a sociedade. Do fim do século passado para cá estamos tendo uma enxurrada de autores bem surpreendentes. Mas que estão, muitas vezes, escrevendo coisas caóticas, que refletem a nossa sociedade. O tempo vai fazer a seleção, ver quem tem fôlego para seguir carreira – diz ela, que tem gostado, nos últimos tempos, de assistir à evolução do trabalho de alguns jovens dramaturgos da cena carioca. – Há três ou quatro autores que estão aos poucos construindo uma obra.

Sentada na varanda do velho casarão onde mora desde 1960, vestida impecavelmente “com um blazer que a Patricia trouxe de Paris há uns 30 anos” e um broche de libélula que Marcia comprou há pouco tempo no Museu d’Orsay, Barbara lamenta certas mudanças – a inexplicável degradação do Largo do Boticário, abandonado pelo poder público, é uma delas – mas abre um largo sorriso para exclamar, olhando a vegetação generosa à sua frente: “Esse bambuzal é uma alegria”.

Aos 90 anos, há muito para lembrar:

– Você não sabe o drama que era escutar a transmissão da BBC para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, às nove da noite. A estática não deixava a gente ouvir nada. Levava-se 11 dias para chegar à Europa de navio… Mas eu, quando fui, já fui de avião. O primeiro voo comercial do Brasil para a Europa foi nos anos 1940… e em 1969 o homem já estava na Lua!

Aos 90 anos, há também o que lamentar:

– A única coisa que me deixa triste é não poder mais viajar. Ah, as capelas da Etiópia cavadas no chão… Você já viu? São incríveis. E não fui a Petra. Isso é doloroso.

Filha do historiador e goleiro-galã Marcos Carneiro de Mendonça, tricampeão pelo Fluminense em 1917, 1918 e 1919, Barbara atualmente prefere o tênis e o vôlei ao futebol – “Hoje a gente só pergunta de quem o Fluminense vai perder”, lamenta. “Para descansar”, lê romances policiais, que relê tempos depois, pois é comum não lembrar quem é o assassino. Sua autora preferida é a inglesa Allis Peters, por causa de sua série de livros ambientada em conventos britânicos no século XII – “Sou tarada pela Idade Média”, explica.

Da mãe, a poeta Anna Amélia de Queiroz, herdou o prazer por Shakespeare. Foi dela que ganhou, aos 12 anos, urna edição em inglês das obras completas do dramaturgo. A mãe traduziu para o português “Hamlet” e “Ricardo III”. Barbara continuou a missão, traduzindo as outras peças – as tragédias e as comédias foram publicadas; as peças históricas, ainda não. É autora do clássico “A expressão dramática do homem político em Shakespeare” (Paz & Terra). Em novembro, sai o inédito “Os caminhos do teatro”, uma história do teatro da Grécia ao século XX, editado pela Perspectiva, que já lançou seu “Falando de Shakespeare” e a coletânea de críticas e ensaios “Escritos sobre teatro”.

Além da experiência como atriz, Heliodora Carneiro de Mendonça (nome de batismo) também arriscou incursões pela direção teatral. Agora, a crítica, que estreou na função em 1958, na “Tribuna da Imprensa”, prepara-se para voltar ao outro lado do balcão. Em 2014, promete dirigir uma peça – de Shakespeare, evidentemente. A convite da produtora Susan Mace, vai encarar “Timão de Atenas”, baseada na montagem de 2012 do National Theatre de Londres. Para auxiliá-la, convidou Bruce Gomlevsky, cujo trabalho admira.

– Não tenho condições físicas de executar uma direção, subir no palco, descer, ir para um lado e para o outro.

Sim, ela anda cansada. Mas cita Clement Attlee, primeiro-ministro do Reino Unido no pós-guerra, que, perguntado sobre o que achava de seus 80 anos, respondeu: “É sempre melhor do que a alternativa”. Aos 90, Barbara nem pensa na alternativa.

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Nani Rubin, do Globo