Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A racionalidade da pilhagem

No fim do século 19 as potências europeias começaram a disputa, ocupação e anexação de territórios da África – continente que consideravam sem dono. O episódio histórico conhecido como a “Partilha da África” foi conduzida de forma impiedosa no continente, com total desprezo pelas etnias nativas, consideradas, em geral, animalescas ou, pior ainda, pagãs. 

A racionalização por trás da pilhagem e da exploração predatória foi a de que os nativos precisavam ser convertidos ao catolicismo e, de passagem, postos a trabalhar para a grandeza e o enriquecimento dos povos escolhidos europeus. O resultado foi a geração de profundas sequelas que sangram, até hoje, em guerras de tribos e etnias confinadas em fronteiras artificiais.

O livro A Partilha da Amazônia e o Paraiso Perdido de Euclides da Cunha, de Susanna Hecht, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles, ainda sem tradução no Brasil, resgata a história de um possível futuro que, felizmente, não levou a América do Sul amazônica a amargar a triste sina da partilha africana. 

Euclides da Cunha é mais conhecido por sua grande obra, Os Sertões, que descreve a guerra de Canudos, mas Susanna escolheu focar seu novo trabalho numa obra inacabada de Euclides: Um paraíso perdido. Ela é uma veterana com mais de 30 anos de estudos sobre América Latina e especialmente a região amazônica. Não é uma acadêmica comum. Além de historiadora e cientista social, é também especialista em recuperação de florestas, ciências dos solos e agroecologia, o que a tornou uma cientista de referência no gerenciamento de produção e uso da ”terra preta” o solo rico de algumas regiões amazônicas. Estagiou em fazendas de agronegócio da soja no Brasil e Bolívia. Na América Central acompanhou a restauração de florestas devastadas até a recuperação usando sensoriamentopor satélite. Mas o maior interesse de Susanna continua sendo o fator humano. Conviveu com os índios Kayapo, com seringueiros do Amapá, coletores florestais no Maranhão e em quilombos no Amapá e Rondônia.

É coautora, junto com Alexander Cockburn, de uma obra de referência mundial publicada em 1990, Destino da floresta: destruidores, desenvolvedores e defensores da Amazônia, que lamentavelmente nunca foi traduzida no Brasil, e que acaba de ser republicada nos Estados Unidos em edição revisada. Além disso, o texto de Susanna é digno de ser lido mesmo que só por causa da sua excepcional qualidade literária. A revista britânica de ciências Nature considerou a obra “uma jornada no coração das trevas da América do Sul”, numa referência ao clássico da literatura do polonês Joseph Conrad. Uma amostra da qualidade de seu trabalho está na edição de abril de 2012 da revista National Geographic Brasil.

A história de rebeliões e construção nacional da identidade amazônica, como resgata Susanna, é espetacularmente rica e tempestiva. É que os conflitos do Caribe, com rebeliões endêmicas de escravos e disputas de potências europeias logo vazaram para o litoral e interior da Amazônia. A abolição e depois restauração da escravidão na colônia francesa espalhou as ideias libertárias como um rastro de pólvora selva adentro. Longe de ser uma região semhistórica, a Amazônia fervilhava em conspirações, movimentos políticos, envolvendo milhões de escravos fugidos, caboclos, aventureiros de toda espécie e forças armadas tradicionais, tanto da monarquia quanto da França. Até eventos históricos como a dominação napoleônica e a fuga da família real para o Brasil acabaram afetando mais a Amazônia que Salvador na Bahia ou no Rio de Janeiro. Por exemplo, uma das primeiras medidas tomadas pela família real foi aliar-se aos ingleses para defender a foz do Amazonas com navios de guerra.

O contexto de Um paraíso perdido é a explosiva expansão das potencias imperiais ao fim do século 19 e começo do 20. Depois de ter dominado a tecnologia dos metais duros e pesados de aço e ferro, as manufaturas precisavam de um material maleável, resistente e flexível. A matéria prima estratégica para esse salto industrial era a milagrosa borracha. Esse novo material revolucionário tinha um problema: só era produzido na região amazônica. Inevitavelmente, isso desencadeou um conflito de interesses e a cobiça da Inglaterra, França, Bélgica e Estados Unidos. Na época, o Brasil tinha tudo para dar errado: fronteiras confusas, rebeliões endêmicas, uma elite preguiçosa e venal, forças armadas precárias. As potências imperiais evidentemente viram nessas fraquezas uma presa fácil e valiosa.

Mas em vez das tribos espalhadas e primitivas da África, os europeus e os americanos confrontaram nações mais ou menos estabelecidas e soberanas como o Brasil, Peru e Bolívia. Isso iria fazer diferença. Se o Coração das Trevas africano era um inferno tenebroso para os europeus, a Amazônia revelou-se mais sinistra e letal. Grandes desastres é que não faltaram. Embalados por sonhos delirantes de um novo mundo no Eldorado, os franceses transplantaram para a Guiana francesa 12 mil colonos, reforçados por trupes de artistas, de malabaristas a palhaços para entretenimento daqueles que iriam também desfrutar de terras férteis. Mais de 10 mil colonos morreram antes que pudessem experimentar as pás e enxadas, vitimados pela malária e a febre amarela.

A trágica experiência francesa abortou outro perigoso e mirabolante projeto, do americano Matthew Maury, que seria de realocar os escravos e plantações de algodão do sul dos Estados Unidos para a região amazônica. Trata-se de um episódio pouco conhecido na historiografia brasileira e que nunca chegou aos livros escolares. Maury, um cientista eminente, era também um ardente confederado sulista antes do confronto da guerra de secessão americana. Ele dirigia o Observatório Naval dos EUA, instituição que, segundo Susanna, equivaleria à NASA do presente: a floresta amazônica era então “a última fronteira”. Além de crente radical no criacionismo, era um empedernido racista.

Sua agenda era direta, sem volteios. “Abrir caminho para uma cadeia de eventos para… tornar a região uma colônia americana”. Nas correspondências da Maury aparecem, sem ambiguidades declarações como “a Amazônia é parte do Mediterrâneo americano (como ele se referia a todo o Caribe)”. Mais: “A bacia do Amazonas está mais perto de nós do que do Rio de Janeiro”. Para ele, o rio brasileiro não passava de uma foz ligada por correntes marítimas diretamente ao estuário do rio Mississipi.

Na condição de confederado, que tinha nas mãos a batata quente da futura libertação dos escravos nos EUA, Maury arquitetou um plano para não só salvar os fazendeiros escravocratas sulistas, mas também ampliar as fronteiras globais dos políticos da região. A colonização da Amazônia seria feita com os escravos americanos excedentes, como “válvula de escape” das pressões sociais nos EUA. O sonho de futuro que ele via para a região é de um pesadelo de horror total, visto hoje. “Se algum dia a vegetação for domada, se um dia o solo (agrícola) for tomado da floresta, seus animais selvagens e répteis forem subjugados pelo arado e o machado, essa obra será feita por africanos (escravos). Essa é a terra de papagaios e macacos e somente os africanos estão preparados para realizar tal tarefa”.

Para dar embasamento científico ao seu delirante plano, em 1850, ele pediu ao ministro brasileiro Sérgio Teixeira de Macedo, da legação do Brasil em Washington, autorização para uma expedição científica à Amazônia. O governo brasileiro, sabedor das intenções de Maury, negou a autorização. Mas ele mandou um parente fazer a viagem a partir das nascentes, fora da jurisdição brasileira. Felizmente para o Brasil, o inferno verde com suas doenças e clima inóspito era como se fosse o general inverno que frustrou as invasões napoleônicas e hitleristas contra Moscou. Maury acabou desistindo quando não conseguiu recursos para a vultosa empreitada.

Mas o poder imperial americano nunca desistiu totalmente. E março de 1899, a canhoneira USS Wilmington, veterana da guerra dos EUA contra a Espanha em Cuba, inaugurou a ação da frota americana no sul, com uma viagem mais ou menos desafiadora rio Amazonas acima, para negociar um acordo secreto com autoridades bolivianas com o objetivo de “americanizar” o território do Acre. O capitão do USS Wilmington simplesmente não pediu permissão para navegar Amazonas acima. Tinha uma missão secreta: apresentar ao governo boliviano um pacto do presidente americano Willian McKinley que incluía a partilha do território do Acre.

Mas deu tudo errado. Um jornalista espanhol, Luiz Galvão, um “revolucionário de boteco”, como descreve Susanna, curioso com a grande quantidade de autoridades estrangeiras presentes em Manaus na chegada do USS Wilmington, acionou suas fontes etílicas e acabou botando as mãos nos termos do pacto Bolívia/EUA. Publicou o furo no jornal Província do Pará, gerando, evidentemente, grande alarido.

O pacto previa o reconhecimento da soberania boliviana sobre o Acre, embora lá fosse uma zona de conflitos com presença dominante de seringueiros brasileiros. O artigo segundo previa que os EUA forneceriam armas aos bolivianos, caso se chegasse a um estado de guerra declarada. Outro artigo previa a isenção de impostos para produtos bolivianos em toda extensão do Amazonas. Finalmente uma cláusula permitiria a criação de um enclave americano na foz do Purús.

A repercussão no Rio de Janeiro foi estrondosa. Nosso mais famoso jurista, Rui Barbosa, levantou o espectro da repetição da invasão de Cuba pelos americanos e a embaixada brasileira em Washington cobrou explicações e desculpas. Os brasileiros revoltados no Acre foram além da retórica e gritaria. Fizeram numa grande ofensiva, expulsando os bolivianos e proclamando a independência do território. Bizarramente com o espanhol Luiz Galvão na presidência. O romântico aventureiro batizou a nova nação como “República dos Poetas”, mas a Bolívia retaliou imediatamente com força armada, acabando com a brincadeira. Galvão vazou para Manaus onde conseguiu que os brasileiros lhe pagassem sete mil libras, uma fortuna na época, em troca de informações confidenciais. “Depois disso, sumiu das páginas da História” conclui Susanna.

Mas teve coisa pior, muito pior. O presidente do Brasil, Campos Sales, não tinha a menor ideia do que realmente acontecia na selva amazônica. Sales, um paulista alinhado com a oligarquia cafeeira de São Paulo – que tinha sua riqueza nas exportações para os EUA – não viu razões para criar caso com gigante do norte “por causa de alguns incidentes bobos e escaramuças na fronteira” e pôs panos quentes.

El Niño conspira para o Brasil

Onde europeus e americanos falharam miseravelmente, levas de nordestinos escapando da seca e da miséria, caboclos misturados da miscigenação dos brancos com índios e comunidades de quilombos de escravos fugidos penetraram fundo no inferno verde. Há males que vêm para o bem. Pois uma sequência de anos de efeitos agudos no clima causados pela corrente El Niño empurrou para o norte verdejante uma grande massa de retirantes flagelados, numa marcha e peregrinação que só não aparece na memória iconográfica brasileira por falta de registros, mas guardadas as proporções, seria algo como fotos e filmes dos formigueiros humanos nos garimpos de Serra Pelada. 

Décadas depois seria redirecionado para o sul no processo de industrialização e no boom da construção civil do chamado sul maravilha. Essa massa nômade justifica uma das frases mais conhecidas de Os Sertões: “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Já naquela época, Euclides vislumbrava nesse povo rústico o que ele chamava de “a molécula da civilização” brasileira. Os mestiços “foram os parteiros da Amazônia brasileira”, escreveu ele, e não “as mimadas elites do Rio de Janeiro”. Os mestiços, parte dos quais incorporaram a resistência genética à malária dos africanos (a anemia falciforme), triunfaram na selva onde os brancos sucumbiam em questão de dias depois das picadas dos mosquitos.

E foram esses rústicos sertanejos amalgamados com a floresta os verdadeiros artífices da conquista para o Brasil das vastas áreas em litígio com os vizinhos e com as potências europeias. Com uma ajuda decisiva da Euclides da Cunha e seu chefe na empreitada, José Maria da Silva Paranhos, o Barão de Rio Branco. Embora Susanna situe para o leitor americano o que foi a epopeia de Canudos e a trágica vida de Euclides da Cunha, o foco do livro é ocupação brasileira da Amazônia e as vitórias diplomáticas do barão e seu fiel escudeiro.

José Maria da Silva Paranhos, filho do visconde de Rio Branco, já tinha vislumbrado pessoalmente nas suas estadias na Europa a ameaça que pairava sobre a Amazônia, especialmente na histórica Conferência de Berlim entre 1884 e 1885, na qual o continente africano foi esquartejado pelas potências europeias. A primeira vitória do barão foi em 1898, contra a França, que pretendia apropriar-se da região do Amapá, depois de uma invasão militar. Graças à argumentação e documentação de Rio Branco o governo suíço, escolhido como árbitro da pendenga, foi inteiramente favorável ao Brasil, que conquistou 260 mil km2 sem disparar um só tiro.

O desafio seguinte do Barão do Rio Branco foi a definição das fronteiras com o Peru. No calor dos debates internacionais um articulista estridente quase panfletário chamou a atenção do barão. O jornalista paulista Euclides da Cunha que, mesmo sem nunca ter posto os pés na região sub judice, vergastava os peruanos na imprensa. Os peruanos, reclamava ele, “são predadores cujas invasões na Amazônia deixam um rastro de devastação, campos exauridos egrupos nativos esmagados”. Era o aliado que Rio Branco precisava. Euclides foi nomeado representante brasileiro em uma comissão binacional com o Peru para demarcar a região do alto Purús e recolher dados para a decisão de qual país teria direito a qual região. Um Paraíso perdido é justamente a narrativa inacabada e o diário dessa jornada rio acima de Euclides da Cunha.

Munido dos dados cartográficos levantados por Euclides em 1905, quando chefiou a parte brasileira da Comissão mista Brasil e Peru, no alto Purús, o Barão do Rio Branco venceu a disputa diplomática com relativa facilidade. Ele invocou o direito de uti possidetis, comprovado pela extensa presença de brasileiros na região, ao contrário dos peruanos que limitavam-se a incursões predatórias passageiras. “Tivesse o Peru vencido essa arbitragem ele teria se tornado a superpotência amazônica” escreve Susanna. Os mapas e registros de Euclides produzidos ao longo da viagem rio Purús acima pesaram decisivamente na arbitragem que deu ao Brasil 720 mil Km 2 de territórios, sem que fosse disparado um só tiro. Foi justamente durante essa expedição exploratória a Purús acima que Euclides escreveu notas e rascunhos para Um paraíso perdido, obra inacabada, ceifada por seu trágico destino, assassinato a tiros pelo amante da sua esposa em 1909, aos 43 anos. Nos últimos capítulos do livro Susanna apresenta para os leitores estrangeiros a primeira tradução inglesa dos fragmentos de Um Paraiso Perdido.

O Brasil foi ainda vítima de outras ameaças de colonização estrangeira disfarçadas. Quando a pura e simples anexação territorial ficou mais complicada, depois da abolição da escravatura, o capital mercantil dos bancos e grandes agiotas criou um sistema “Charter” ou de companhia internacional para terceirizar o trabalho de exploração, sem que os governos interessados precisassem usar forças armadas ou mesmo recursos de capital. A mais conhecida empresa desse tipo foi a poderosa Companhia das Índias Orientais, que praticamente monopolizou para a Holanda o comércio e exploração no Oriente. E a Companhia das Índias Ocidentais, também holandesa, esteve à frente da invasão de Pernambuco, no século 17.

A Bélgica, o país que mais abusou desse esquema, cometendo atrocidades sem limites no Congo, por uma razão ainda misteriosa, não quis se meter na Amazônia e declinou propostas de grupos financeiros aventureiros internacionais. Mas a Bolívia, sem capitais ou expertise para colonizar a região amazônica, foi longe na tentativa de criar uma empresa Charter na região com o empreendimento batizado de Sindicato Boliviano. Baseada em Nova York, a firma despertou a atenção e interesse de dezenas de grandes magnatas americanos. O prometido aos investidores eram direitos exclusivos de criar impostos durante 30 anos. Podiam ainda criar forças militares mercenárias. A Bolívia ficaria com 60% dos lucros e os acionistas embolsariam o restante de todas as exportações de borrachas e minerais da região.

Quando os brasileiros do Acre descobriram, a reação foi fulminante. Plácido de Castro, que havia sido colega de Euclides da Cunha na academia militar de praia vermelha, no Rio de Janeiro, organizou a rebelião contra as autoridades bolivianas locais. O dia escolhido para a rebelião foi a data nacional de independência boliviana: oito de agosto. Quando Plácido chegou com suas forças paramentadas nas primeiras horas do dia, o sonolento superintendente boliviano perguntou: “É um pouquinho cedo para as comemorações, não?”. “Não é um desfile, comandante, é uma revolução” retrucou Plácido. Assim o Sindicato Boliviano foi pelo ralo e o Barão do Rio Branco se livrou de uma tremenda dor de cabeça.

Susanna vai além de resgatar o quase desconhecido – ou ignorado – papel de Euclides da Cunha na consolidação das fronteiras amazônicas do Brasil. Ela também desmistifica uma visão idílica e desvirtuada do passado e presente desse subcontinente. “A Amazônia é frequentemente vista como uma ‘Terra sem história’ ou como a ‘última página inacabada do Genesis’ parcialmente porque sua política contemporânea de preservação regularmente nega qualquer história a não ser a um tipo charmoso de esparsa presença indígena e o culto moderno da vastidão natural intocada, critica Susanna. 

A crítica a essa concepção nos leva “a ver esse lugar de modo muito diferente de uma região no fim da Terra e no começo dos tempos, somente agora aparecendo no palco mundial. E também nos leva a enquadrar a sua geopolítica não como uma coisa nova, mas sim como a continuação de um processo de uma região que teve um papel importante na política global. E hoje isso é especialmente verdadeiro quando se trata da política ambiental, do desenvolvimentismo e das políticas de carbono/energia. “O que escreveu Euclides é verdade: A história da Amazônia é como um rio – sempre turbulento sempre insurgente”. Finalmente, o grande legado anotado por Euclides é uma amarga ironia: foram os sertanejos, quilombolas e mestiços, os mais explorados e miseráveis brasileiros quem consolidaram as reivindicações territoriais das “mimadas” elites costeiras, especialmente as cariocas, tanto nos estertores do império quanto no nascimento da República.

******

Flávio de Carvalho Serpa é jornalista