Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Narrando a era digital

“É pouco antes do meio-dia de segunda-feira, 1º de setembro de 2014, e sou uma das 927 pessoas vendo minha esposa dormir.” Começa assim um capítulo do romance inédito The end of endings (O fim dos fins), de Steven Hall, publicado recentemente na edição inglesa da revista Granta, dedicada aos melhores jovens romancistas daquele país. A estranheza dessa grande frase de abertura se expande nas páginas seguintes quando o narrador recebe um telefonema dessa mesma esposa, apesar de ela ainda estar dormindo na imagem ao vivo da tela. “Você está imóvel e serena”, ele informa. A esposa diz que vai abanar para seus espectadores. “Você devia mesmo fazer isso”, ele incentiva. “Já estou fazendo”, diz a esposa, enquanto sua imagem na tela continua dormindo.

O que está acontecendo? Por que tantas pessoas estão vigiando o sono da esposa do narrador? Como ela pode estar dormindo e conversando com o marido ao telefone simultaneamente? Por um momento, pode ser que o leitor pense em ficção científica, realidades paralelas, esoterismo, narrativa experimental. Mas logo se esclarece que a situação é prosaica: a esposa, uma geóloga, está fazendo pesquisas numa ilha remota e o projeto prevê a transmissão de seu dia-a-dia por uma webcam ao vivo. O delay da imagem cria uma série de momentos aparentemente insólitos que Hall explora com sensibilidade e maestria. Encerrado o telefonema, o narrador continua acompanhando o feed ao vivo e silencioso da esposa já desperta do outro lado do planeta, esperando seus lábios desenharem as palavras ditas na conversa de um minuto atrás.

Além de ter me deixado ansioso para ler o romance de Steven Hall, e na torcida para que ele consiga terminá-lo (é uma obra em progresso, como ele compartilhou com o público em evento recente no Sesc Consolação, em São Paulo), o trecho é um exemplo de como extrair bons conflitos literários dos avanços tecnológicos que vêm transformando nossa vida íntima e social. Não se trata apenas de entender como a literatura tradicional pode manter seu interesse e competir com televisão, videogames, gamificação, smartphones e a narração efêmera e constante de tudo nas redes sociais de todos os tipos, mas sobretudo de investigar formas envolventes e provocativas de representar esses aspectos da vida contemporânea por meio da ficção. A noção de que os celulares, o Google e o WhatsApp deram uma rasteira em todo um ramo nobre de conflitos narrativos, eliminando boa parte dos mal-entendidos, desencontros, atrasos e lacunas de informação que vitaminam as boas histórias, já é um clichê. A discussão interessante agora é a respeito de como superá-lo.

Mediação tecnológica

Thomas Pynchon encontrou um enfoque dentre muitos possíveis em seu último romance, Bleeding edge. A trama se inicia na Nova York de 2001, após o estouro da bolha das empresas “ponto com” e nos meses anteriores ao ataque às torres gêmeas. Maxine Tarnow, uma investigadora de fraudes fiscais, está tentando arrumar a vida após a perda da licença de trabalho e o fim de um casamento. A pedido de um amigo documentarista, ela começa a xeretar as finanças de uma empresa de segurança virtual liderada por um CEO sinistro. É o ponto de partida para a esperada teoria conspiratória.

O mais curioso no livro é que, apesar de se passar em 2001, ele soa como um romance histórico. Os celulares parecem rudimentares e colocar um vídeo na internet envolve contorcionismo técnico e altos custos de tráfego. Ao mesmo tempo, Pynchon abusa propositalmente do tipo de coincidência e falta de comunicação que se esperaria de um enredo pré-internet e celulares: personagens se encontram na rua por acaso a cada meia dúzia de páginas, telefones ficam sem bateria sempre que for conveniente à história et coetera. O resultado é intrigante: um romance sobre o último momento da História em que pessoas e narradores de ficção ainda tinham desculpa para não estarem informados e conectados. Mas a abundância de informação nem sempre nos esclarece: às vezes, apenas confunde tudo mais ainda. Em meio à confusão do excesso de esclarecimento, Pynchon sugere, por meio da relação de sua heroína com o ex-marido e os filhos pequenos, que a última âncora é a família. O escritor Joshua Cohen apontou bem numa resenha do livro: “Para Pynchon […], a última guerra a ser travada é entre nossas identidades virtuais e os laços de sangue.” Eis um conflito literário de luxo para o nosso tempo.

Numa matéria do New York Times em que vários autores deram palpites sobre os rumos da literatura na era digital, Tom McCarthy (autor do excelente romance Remainder, infelizmente ainda inédito no Brasil) afirmou: “Os melhores autores sempre compreenderam que escrever é enfrentar, e em certa medida alegorizar, o próprio regime de mediação tecnológica sem o qual a escrita sequer existiria.” Boa sorte a todos.

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Daniel Galera é colunista do Globo