Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um estrangeiro apresenta o Brasil aos brasileiros

A 1ª edição de Pequena Bibliografia Critica da Literatura Brasileira, de 1949, Otto Maria Carpeaux a dedicou a quatro grandes homens de letras nacionais: três críticos (Álvaro Lins, Aurélio Buarque de Hollanda e Lúcia Miguel Pereira, também ficcionista) e um poeta (Manuel Bandeira). A 2ª edição veio rápida, para os padrões brasileiros, três anos depois, em 1952. A dedicatória é para a viúva de Graciliano Ramos, Helena, e dois servidores das letras, que a história tornou anônimos. A 3ª edição “pertence ao verdadeiro dono deste livro”, anotou Carpeaux, humilde: José Simões Leal. Já a 4ª edição, de 1967, o autor a atribuiu a quatro amigos novos: Álvaro Mendes, Ivan Junqueira, Luiz Costa Lima e Sebastião Uchoa Leite.

Carpeaux escreveu a bibliografia quando tinha apenas 10 anos de Brasil. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, fugindo do nazismo, que o obrigara a abandonar sua terra natal, a Áustria, sabia pouquíssimo sobre o país e não conhecia a língua. Valeu-se do muito que sabia sobre 10 outras línguas, além do alemão (inglês, francês, italiano, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata), e, sobretudo, do latim e derivadas, para, em um ano, poder falar e, aos poucos, também escrever em português (até 1942, seus artigos tinham que ser traduzidos do francês).

Era natural que um estrangeiro tivesse grandes dificuldades para ter acesso à língua e à literatura de um país isolado no continente sul-americano. A condição de estrangeiro, porém, não era apenas de um imigrante: o brasileiro se tornava também um estrangeiro “pelo desprezo que certas camadas do público brasileiro, leitores exclusivos de livros estrangeiros, afetam com respeito à literatura nacional”.

Desde a sua chegada, Carpeaux se empenhou em descobrir o verdadeiro Brasil e mostrá-lo para os brasileiros, ignorantes ou desinteressados pela própria cultura. No primeiro levantamento que realizou da criação literária, através da qual dizia ter aprendido a “conhecer e amar” a terra e a gente do Brasil, admitia que o trabalho, não sendo de um bibliógrafo profissional, “é deliberadamente incompleto”.

Dele, só faziam parte 170 autores. Teve que excluir gente como Nelson Rodrigues e Aníbal Machado, deixados para “outra oportunidade”, que ele aproveitaria nos anos seguintes. Ainda que sendo um “livro seco”, conforme o definia, seu guia literário continua a ser útil, testemunho de empenho e amor que continuam a faltar a muitos brasileiros.

Dentre tantos itens do seu legado como ensaísta, jornalista e crítico, Carpeaux colocou ao nosso alcance a monumental História da Literatura Universal. A 1ª edição foi à altura desse invejável empreendimento intelectual: em seis volumes, com papel acartonado, letras graúdas, em volume bem costurado e graficamente de primeira. A segunda edição, econômica, em quatro volumes, talvez tenha afastado leitores com o privilégio de poder ler uma das melhores histórias literárias escritas em qualquer língua do mundo. Não houve, ao que saiba, uma terceira edição desse monumento.

Em entrevista que concedeu a Homero Sena, justamente em 1949, ano do lançamento da Pequena Bibliografia Critica. Carpeaux lamentou que essa história, inteiramente concluída em 1945, ainda não tivesse encontrado editora (o que acabaria acontecendo com a editora da revista Cruzeiro, de Assis Chateaubriand). Dessa interessante entrevista, extraí alguns trechos para relembrar para alguns e apresentar para outros o grande intelectual que foi Otto Maria Carpeaux.

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Como foram seus começos de vida no Brasil?

Otto Maria Carpeaux – Quando perguntaram a Sieyes, em 1795, o que teria feito durante os anos do terror, ele respondeu: “Sobrevivi.” Em São Paulo vendi meus últimos livros.

Então trouxe consigo sua biblioteca?

O.M.C. – Fugi de Viena com uma pequena mala de mão e sem um tostão. Perdi pátria, casa, móveis e vários milhares de livros. Ao contrário do que se supõe, os nazistas não queimaram as bibliotecas (só houve queimas simbólicas); distribuíram os livros apreendidos entre pessoas interessadas. Esteve em Viena, nesse tempo, um professor universitário americano, amigo meu; este foi à Gestapo, declarando que me havia emprestado vários livros; e tão grande era ainda o prestígio de “cidadão americano” que lhe permitiram, sem provas, escolher uns duzentos volumes que ele me mandou para a Bélgica, e que eu vendi depois em São Paulo, por necessidade. Hoje tenho mais ou menos uns dois mil e quinhentos volumes, pequena biblioteca de trabalho, penosamente reconstruída; não é nada, mas é questão de to make the best of it.

É verdade que dispõe de um excelente fichário?

O.M.C. – É lenda. Não possuo fichário algum. (E virando-se para mim e mostrando o seu escritório.) Onde está ele? Algumas notas que chegaram incluídas naqueles volumes revelaram-se pouco utilizáveis. De nada me adiantaria um fichário velho. Não é erudito o escritor que tem muitas fichas, assim como não é bom general quem tem muitos soldados e nada mais. Acredita na “lenda do fichário” quem ignora como é (ou foi) firme a formação universitária europeia. “Cultura é aquilo que fica quando uma pessoa já esqueceu tudo o que aprendera.”

Foi apresentado por Álvaro Lins ao público brasileiro como escritor católico. Ainda o é?

O.M.C. – Pertenço à Igreja Católica; tudo o mais é questão de foro íntimo. Estou estranhando o “ainda”, embora compreenda os motivos da pergunta. Mas por mais que se abuse da Igreja para fins diversos, ela é que fica, fundamento e vaso das tradições cristãs, cuja indispensabilidade no mundo presente e futuro se me afigura tão certa como a citada inevitabilidade do socialismo… Mas não me compete defini-la. Não escrevo sobre teologia. Sou leigo, e os leigos gozam de liberdade maior do que pensa a gente extramuros. Não se conhece bastante, aqui, a liberdade dos católicos da França e da Alemanha ocidental. No resto, você me permita citar Chamfort: “Prefiro a companhia dos ateus à dos crentes. Na presença de um ateu ocorrem-me todos os argumentos filosóficos em favor da existência de Deus; na presença de crentes ocorrem-me os contra-argumentos”.

Quantos artigos escreve por semana?

O.M.C. – Dois, para os jornais em que colaboro; e mais um ou outro por mês para revistas. Como são artigos longos, que exigem documentação, consultas e leituras prévias, dão muito trabalho, trabalho noturno porque preciso exercer outra atividade, a de bibliotecário.

Gosta de escrever ou preferiria outra profissão?

O.M.C. – Não gosto; é um pesadelo. Mas, ainda mesmo que escolhesse outra atividade, reincidiria. Há tanta coisa que me interessa e entusiasma: História, Filosofia, Poesia, Artes, Música, e de que preciso dar conta a mim mesmo. Ora, minha vida tem sido tormento e desespero, mas são aquelas coisas que me reconciliam com a vida e “desejo, enfim, devolver a Deus uma alma encantada e grata”. São palavras de Gide, palavras de poeta; e poesia, os amigos vão dizer, não é realidade; sim, mas tampouco é ficção.

Que assuntos lê de preferência?

O.M.C. – Há muito não chego mais a ler aquilo que queria; só o que preciso ler para documentar-me.

Em que língua prefere fazer suas leituras?

O.M.C. – Leio todas as línguas europeias, quase sem sentir diferença.

De que modo divide o seu dia?

O.M.C. – Não divido o meu dia; ele é que me divide… Levanto-me em geral às oito da manhã, deito-me à uma, duas, três da madrugada, conforme, sem fazer pausas. Um amigo meu, morto há muito, costumava dizer (e as palavras vêm a propósito do meu caso): “Estou trabalhando dia e noite; de noite, pergunto ao quadro na parede se meu trabalho lhe agrada, e ao relógio se está cansado; de madrugada, pergunto à noite se dormiu bem”.

Considera-se, em música, diletante ou entendido?

O.M.C. – Nasci e vivi com música. Mas considero-me diletante, embora tenha adquirido, de entendido, o hábito de apreciar, na música, menos o efeito sentimental do que a estrutura temática e harmônica. Preferências: música eclesiástica dos séculos XVII e XVIII; as sonatas e as músicas de câmara de Beethoven; as óperas de Mozart; os lieder de Schubert; enfim, de Bach tudo.

De que modo aprendeu o português?

O.M.C. – Nunca estudei propriamente a língua; nunca tive aulas de português. Aprendi a língua exclusivamente lendo, lendo muito, em São Paulo; no Rio, depois de poucos meses comecei a escrever diretamente em português, língua em que hoje já consigo pensar. Devo isso em grande parte à minha forte base de latim e aos conselhos de Aurélio Buarque de Holanda. Considero o fato de haver aprendido, mais ou menos, a língua portuguesa como o ordálio mais tremendo a que a vida me submeteu. 

Qual o primeiro livro brasileiro que leu?

O.M.C. – “As Páginas Recolhidas”, de Machado de Assis; o capítulo “O Velho Senado” ainda me parece a maior página que li em prosa portuguesa.

Quais os vultos da nossa literatura que mais o impressionam?

O.M.C. – Você se refere à literatura do passado? Machado de Assis; e, apesar dos defeitos evidentes, Lima Barreto e Augusto dos Anjos, porque são os mais brasileiros, os que me dizem coisas que ignorava na Europa.

E os que mais lhe desagradam?

O.M.C. – Tendo conhecido a literatura brasileira já aos quarenta anos de idade, fiquei livre de impressões e preconceitos de escola e ambiente. Faço para mim, e só para mim, a “revisão de valores” que em literaturas velhas se faz periodicamente, sem irritar suscetibilidades. A pintura francesa do século XIX, para dar um exemplo, é tão rica que suportou a eliminação posterior da “pintura histórica”, de péssimo gosto, mas cujos imitadores ainda são considerados “glórias nacionais”, tabus, em países de menos idade artística. Será aqui considerado iconoclasta quem detestar a poesia pseudorromântica e pseudoparnasiana. Não nego o valor histórico; e Gonçalves Dias foi homem admirável. Mas os chamados gênios que morreram com vinte anos teriam acabado como Luís Delfino, contemporâneo deles, acabou aos setenta. A verdadeira poesia nacional começou com Cruz e Souza e Alphonsus, para continuar com Bandeira, Drummond, Murilo, Schmidt. Não sinto simpatias passadistas. Mas também ao pseudomodernismo, imitação pseudonacional do futurismo italiano, dedico os sentimentos da minha mais íntima antipatia e da mais elevada desconsideração.

Por que quase nunca escreve sobre autores brasileiros?

O.M.C. – Já falei dos poetas. Escrevi sobre Graciliano e José Lins. Admiro Otávio de Faria, Gilberto Freire. Augusto Meyer, vários outros. Mas não sou crítico profissional, antes livre atirador, sem obrigação alguma de escrever sobre tudo. Em geral, não escrevo sobre o que admiro, mas sempre sobre o que me parece exigir análise e interpretação. Quanto ao Brasil, sou estudioso apaixonado das coisas nacionais: Literatura, História, Sociologia, estudando-as para meu proveito. Considero essa atitude como dever de intelectual que se estabeleceu em país novo para ele.

Há algum livro essencial da nossa literatura que ainda desconheça?

O.M.C. – Desejaria desconhecer alguns que já li…

Pode a nossa literatura aspirar a uma importância universal?

O.M.C. – Que vem a ser isso? Camões e Fernando Pessoa têm importância universal; mas a literatura portuguesa toda não tem. Strindberg tem; mas a literatura sueca não tem. A literatura norte-americana de 1850 era tão provinciana como a brasileira de então; e hoje é a mais viva do mundo. 

Que projetos têm para o futuro?

O.M.C. – Quando o danado trabalho cotidiano me deixar uma folga, vou redigir o livro sobre a literatura russa que prometi a José Olympio; a documentação está pronta. Gostaria também de escrever o “Livro da Vida”, que eminente estadista brasileiro declarou há pouco ser sua única leitura.

Dos livros de sua autoria, qual o que prefere?

O.M.C. – O que escrevi e não publiquei: a “História da Literatura Ocidental”, trabalho tremendo de umas quatro mil páginas datilografadas, concluído em novembro de 1945. Sim. 1945. E até hoje…

Espera voltar à Europa, ou já se sente definitivamente enraizado no Brasil?

O.M.C. – oltar para passear, sim, para rever… Mas só para isso. Não considero o ato de minha naturalização simples formalidade jurídica. Conheço e respeito os limites do “enraizamento”. No resto, considero-me brasileiro. J’y suis, j’y reste.

Já se pode viver entre nós da profissão de escritor?

O.M.C. – A não ser uns felizardos autores de best sellers, ninguém vive, em parte alguma do mundo, da profissão de escritor. É um erro pensar que isso é comum, por exemplo, na Europa. Não fossem Gide e Roger Martin du Gard homens de grande fortuna pessoal, e nem Les Faux- Monnayeurs nem Les Thibault dariam para eles viverem. Outro que teria morrido de fome se fosse depender dos direitos autorais foi Valéry, por mais de vinte e cinco anos diretor da Agência Havas. E ainda são de ontem e muito desconhecidas as aperturas financeiras do grande Bernanos, que, no entanto era um escritor universalmente conhecido, com livros traduzidos para vários idiomas. É verdade que um escritor como Somerset Maugham consegue, ao que parece, viver e viver à larga com o produto dos seus livros. É preciso não nos esquecermos, porém, de que é também autor de teatro, e o teatro, sim, sempre foi muito mais lucrativo do que qualquer outro gênero literário. O que importa é uma relativa independência, de modo que o rendimento do trabalho literário vire parte cada vez maior do rendimento total. Nos últimos cinco anos, a situação melhorou muito no Brasil. No meu caso particular, aquela parte subiu de 20% para 60%. No entanto, esse negócio de duas ocupações é o diabo…

Pode dar-me, ainda, alguns dados pessoais?

O.M.C. – Nasci em Viena, em 1900. Casado, não tenho filhos conforme dizia Brás Cubas: “Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria…”

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)