Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Luiz Paulo Horta e a travessia pascal

Na manhã do último dia 3 de agosto Luiz Paulo Horta nos deixou suave e docemente. Silenciosamente. Assim vivera, assim partiu. A saudade que ficou em seu lugar por nada pode ser preenchida. Apenas vivida. Todos os que o amamos seguimos e buscamos os traços de sua presença tão querida nas obras que são as suas, nas músicas que ouvimos juntos, nos livros que escreveu. E muito especialmente alguns de nós, no encanto pela Palavra de Deus que partilhamos.

Agora a Editora Zahar presenteia os leitores de Luiz Paulo com este belo livro póstumo: “De Bento a Francisco: uma revolução na Igreja” (120 páginas, R$ 34,90). Tratam-se dos artigos que escreveu nos últimos seis meses, tempo durante o qual acompanhou de perto, com olhar de jornalista e coração cheio de fé as transformações pelas quais passava sua querida Igreja. Da perplexidade inicial com a renúncia de Bento XVI, sua escrita faz travessia para os novos tempos. E ali o espera a alegria que a ensolarada surpresa de Francisco trouxe para a Igreja e para o mundo.

Assim estão organizados os artigos que a Zahar apresenta em edição de sofisticado bom gosto, entremeados com dizeres dos dois Papas, sobretudo do Papa Francisco. Os textos, belamente escritos como tudo que saía de sua pena, formam um bonito e coerente conjunto onde se pode encontrar um verdadeiro tratado da história mais recente da Igreja. E onde se pode, igualmente, “ler” a história de fé do autor.

Alguns pontos são como as espinhas dorsais do livro. Fica patente a enorme, imensa admiração de Luiz Paulo por Bento XVI. Diante deste Papa às vezes difícil de se amar, tímido em se comunicar, com aspecto algo distante, o autor percebe o refinado teólogo, o místico profundo, o homem iluminado por sólida fé. E declara discreta, mas claramente seu amor pela pessoa e pela obra de Ratzinger, que considera o maior teólogo que já se sentou na cátedra de Pedro. Entre o qualificado pensador alemão e o autor deste livro a sintonia é visível e palpável nas páginas escritas. O Papa que se retirou na Quaresma tem o grande mérito de ter insistido na importância da identidade mistérica da Igreja. Essa é igualmente a Igreja que o católico jornalista e acadêmico ama de todo coração.

Seu texto sobre o conclave que elegeria o próximo Papa, onde o autor explica com tanta clareza e profundidade ao leitor não familiarizado com as coisas internas da Igreja cada símbolo e o peso de cada minuto é precioso. Assim também aquele em que discorre sobre a importância do papado como instituição. O autor ressalta como é central essa figura de contornos claramente paternos em um mundo ocidental que perdeu as referencias arquetípicas e deseja ardentemente reencontrá-las. Ressaltando a importância da “autoridade espiritual” em um mundo caótico e anárquico, interpreta a missão do Papa como mestre espiritual junto ao qual se pode beber o doce licor da sabedoria.

Convívio fraterno

A peregrinação quaresmal chega ao fim e o novo Papa é eleito e apresentado. Luiz Paulo Horta cruza esse tempo penitencial de Quaresma e aporta cheio de alegria pascal no pontificado de Francisco. Desde o primeiro momento, quando todos olhavam e ouviam, entre surpresos e ainda incrédulos, o Papa que veio do fim do mundo, o experiente analista do contexto eclesial detecta a positividade de um Papa vindo do hemisfério sul, que muda radicalmente o centro do catolicismo e promete novos tempos.

A parte final do livro é dedicada ao belíssimo evento da Jornada Mundial da Juventude, que acontecia no Rio de Janeiro com a presença do novo Papa Francisco. O mundo inteiro voltava seus olhos para as evoluções do Pontífice na Cidade Maravilhosa e Luiz Paulo acompanhou incansavelmente, exaustivamente, essa peregrinação. Alegrou-se com o êxito da Jornada, com a cidade toda pintada de juventude, com a praia de Copacabana coberta de gente, com as diferenças convivendo alegre e harmoniosamente.

Durante todos os dias da JMJ, sua presença era mais que constante, quase simultânea em todos os órgãos de comunicação. Artigo no jornal, entrevista na televisão a qualquer hora do dia, inestimável ajuda na hermenêutica de cada gesto, de cada matiz que o encontro de Francisco com os jovens do mundo inteiro mostrava em fascinante obra de arte de fé e fraternidade.

Data do dia 22 de julho, início da Jornada, aquele que considero o mais belo artigo do livro: “À procura de um cânone”. Em uma época onde os antigos cânones, as tradicionais normas, desapareceram e perderam importância, aparece o Papa Francisco, qual novo cânone invertendo todas as expectativas e transgredindo todas as normas. Sobretudo sendo, como afirma nosso autor “a mais improvável das surpresas… Ele sozinho, é um cânone.”

Daí em diante, os textos vão concentrar o olhar do autor e do leitor em Francisco, procurando penetrar em seu mistério de homem comum que chefia a mais antiga e misteriosa instituição do mundo. E que naqueles dias esteve diante de nossos olhos, em meio a um contexto de passeatas e agitações que parece que recolheram as armas para que sua passagem pudesse fazer-se com a calma e a intensidade requeridas.

Como nota sua filha Ana Magdalena, no preâmbulo do livro, o último texto data de 30 de julho. A Jornada termina, o Papa volta a Roma e o coração generoso e amante de Luiz Paulo percebe que esgotou gloriosamente as últimas forças nesta empreitada de fé e de luminosa interpretação de um grande momento. Na manhã do dia 3 de agosto, aquele que se entusiasmara tanto pela importância que o Papa dera à cultura do encontro, parte para o grande encontro. E deixa a nós a missão de fazer crescer as sementes de convívio fraterno que ele plantou com sua inteligência e sua fé e que este livro recolhe e nos oferece como seu derradeiro legado.

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Maria Clara Bingemer é teóloga e autora de O mistério e o mundo (Editora Rocco)