Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A guerra entre fundamentalismo e modernidade

Quando eu tinha 8 ou 9 anos, fui momentaneamente raptado por uns lunáticos bem-intencionados. Minha irmã mais nova e eu estávamos explorando o Festival FIBArk (First in Boating the Arkansas [algo como Primeiro na Navegação do Arkansas]), em Salida, Colorado, quando fomos atraídos pela promessa de doces em um pequeno trailer onde estavam outras crianças. Descobrimos que, para ganhar os doces, teríamos de penar diante de um curta-metragem sobre Jesus, que, se bem me lembro, retratava em detalhes os tormentos que aguardam os incrédulos no próximo mundo. Após o filme, um jovem pastor de cabelo alinhado e uns quatro ou cinco do seu rebanho falaram algumas chatices. Por fim, o pastor disse, “Antes de vocês saírem, deixem-me fazer uma pergunta. Há alguém aqui que não aceitou Jesus Cristo como o seu salvador pessoal? Levante a mão se você ainda não foi salvo”.

Não sei que teimosia me fez levantar a mão – gosto de pensar que eu estava protestando contra a coerciva tolice que acabara de presenciar. Em todo caso, não foi porque o filme me assustou – eu sabia que já estava salvo. Havia convidado Jesus para dentro do meu coração, frequentava a igreja e muitas outras coisas. Sabia também que não gosto dessa gente – se eu soubesse a palavra, diria que eles eram sebosos.

Qualquer que tenha sido o motivo, eu levantei a mão e, quando o pastor nos dispensou, dois adultos me impediram de sair com as outras crianças. Eles rezaram por mim e, apesar dos meus pedidos cada vez mais apavorados para sair, eles se recusaram a me liberar até que eu dissesse “Eu aceito Jesus Cristo como meu senhor e salvador”, o que eu terminei fazendo; saí correndo do trailer para me juntar à minha irmã, sem sequer aceitar os doces e folhetos de Jack Chick.

Esse foi meu primeiro encontro com o evangelicalismo protestante conservador, mas não seria o último. Cresci em Colorado Springs – sede da “Foco na Família” [ver aqui ] e uma cidade na qual um amigo meu de escola uma vez encontrou um grupo de pessoas sentadas em círculo no meio da rua em frente a casa de alguém. Ele perguntou o que eles estavam fazendo e um deles respondeu: “Uma bruxa vive aqui; estamos rezando pela alma dela”.

Todavia, o pastor luterano da igreja onde fui crismado era notavelmente aberto à minha tentativa juvenil de reconciliar o racionalismo que eu havia herdado de meu pai, um ateu liberal, com a atração que eu sentia pelos ensinamentos de Cristo. Eu era, por exemplo, firmemente contra a doutrina do inferno, alegando que não era justo o criador sujeitar ao fogo eterno pessoas que, em primeiro lugar, nunca pediram para serem criadas e apenas porque elas não conseguiram decifrar os mistérios da vida em seu insignificante período de tempo sobre a Terra (ou, você sabe, por qualquer outro motivo). Poderia um hindu ser censurado por praticar o hinduísmo, tendo ele nascido em uma cultura hindu? O pastor conversava comigo a respeito de alegorias e metáforas e estava pronto a concordar que era improvável que um Deus de amor se parecesse com a caricatura apresentada nas alturas, sobre nuvens sulfurosas, por pregadores enfurecidos. Ele estava mais interessado na graça e nesse sujeito estranho que irritou as autoridades da antiga Galileia e exortou os ricos a vender seus bens e a dar o dinheiro aos pobres. Ele não tinha medo de dizer “Eu não sei” e “Também tenho esse problema”.

“Apóstolos da razão”

Não consigo lembrar o nome desse homem, mas eu lhe devo muito. Ele não impediu que eu debandasse para um ateísmo de ocasião, entre a adolescência e os meus 20 anos, mas graças ao seu exemplo foi mais fácil retornar posteriormente a uma versão mais liberal do cristianismo. Ele era exatamente o tipo de administrador da palavra de Deus que, no passado, deixava sem dormir homens como Carl Henry e Harold Ockenga – homens que, guiados por uma abominação da modernidade e uma crença na infalibilidade bíblica, lideraram um movimento neoevangélico que culminaria no fundamentalismo da Coalizão Cristã [ver aqui] de Ralph Reed e no cretinismo criacionista atual.

Em Apóstolos da razão, Molly Worthen, professora de história da Universidade da Carolina do Norte, traça a história intelectual do evangelicalismo estadunidense moderno, definida para ela por uma “crise de autoridade”. “Três perguntas unem os evangélicos”, ela escreve:

“como reconciliar fé e razão; como conhecer Jesus; e como agir publicamente na fé após a ruptura da cristandade.”

Worthen começa o seu relato em 1942, com a fundação da Associação Nacional de Evangélicos, em St. Louis [Missouri], “um movimento intelectual consciente de pastores, estudiosos e evangelistas, dentro da comunidade protestante conservadora”. Esses neoevangélicos procuravam mostrar, nas palavras de Carl Henry, que “a cosmovisão cristã é não apenas intelectualmente defensável, mas… também explica a realidade e a vida de um modo mais lógico e compreensível do que as alternativas modernas”. Seguindo o exemplo de seu professor, Gordon Clark, preocupado que os evangélicos estivessem negligenciando “os problemas políticos, sociais, científicos e filosóficos que agitam” o século 20, Henry convocou os cristãos a se engajarem no secularismo, em um nível especificamente ideológico.

Worthen segue o curso das ondas da ofensiva evangélica resultante em círculos cada vez mais abrangentes, a ponto de abarcarem os píncaros mais altos do poder nos Estados Unidos. Ao longo do caminho, linhas de batalha dentro e entre as várias denominações são meticulosamente redesenhadas – menonitas e wesleyanos vs. a tradição reformada, presbiterianos vs. pentecostais, batistas do sul vs. batistas do sul. Worthen é uma retratista fascinante, especialmente quando ela relata os choques de gerações que surgiram entre os evangélicos nos anos 1960. Aqui está o jovem Wes Craven sendo afastado do cargo de editor-chefe da revista dos estudantes da Faculdade de Wheaton [Illinois] por ter publicado “histórias moralmente complexas e perturbadoras”. Aqui está o Presidente da Universidade Biola [Califórnia] assegurando a ex-alunos irados que “nós não apoiamos… cantores de esquerda nem visitas a cervejarias, a qualquer hora, muito menos em uma tarde de domingo”. Alguém pode largar o livro de Worthen com a impressão de um caos pastelão em um navio naufragando, todas as mãos batendo umas nas outras em tentativas estridentes de tirar a água e tapar os furos (ao menos até que a direita cristã decidiu abandonar o barco e sequestrar o iate de passageiros do Partido Republicano).

A chave para entender as ansiedades que levaram o evangelicalismo conservador a essa ação frenética está na expressão de Henry “cosmovisão” [“world-life view”], uma tradução estranha de Weltanschauung, uma palavra que, no dizer de Worthen, tem obcecado os neoevangélicos: “Eles a entoam sempre que escrevem sobre o declínio da cristandade, a dissociação entre fé e razão e a necessária alfinetada dos Evangelhos em cada canto do pensamento e ação”. Eles pinçaram o termo não de [Immanuel] Kant, mas de teólogos reformados, e ele passou a representar um conjunto de orientações e premissas, os quais, uma vez descobertos e articulados, poderiam reunir o corpo disperso de fiéis em uma nova igreja militante.

A fé própria do capitalismo tardio

Apóstolos da razão é, portanto, um capítulo da história mais ampla da secularização e, como tal, é uma interessante companhia a Uma era secular [sobre a edição brasileira, ver aqui], de Charles Taylor, que li paralelamente. “É um lugar-comum que algo que merece” o título de secularização “tenha acontecido em nossa civilização”, Taylor escreve. “O problema é definir exatamente o que é que aconteceu”. (A versão popular vulgar mantém que a ciência, em algum sentido, provou que a religião é falsa; isto é simplesmente outro modo de dizer que o cientificismo é a fé própria do capitalismo tardio.) A despeito do conteúdo exato de secularização, os neoevangélicos de Worthen viram que uma imagem coerente do mundo, um pressuposto compartilhado da verdade da religião cristã, desapareceu. E eles começaram a tentar descobrir como restaurá-la.

O interessante é que as soluções propostas frequentemente repousam sobre as metodologias do próprio secularismo. Worthen reconta as tentativas evangélicas de reforçar dogmas pré-modernos usando as ferramentas da antropologia, da sociologia e do empirismo moderno – as mesmas formas de conhecimento que eles muitas vezes condenaram por terem deixado Cristo de lado. Isso é perversamente apropriado, considerando o argumento de Taylor de que a própria Reforma estabeleceu as bases para a secularização. O que [Max] Weber diagnosticava (tomando emprestado de [Friedrich] Schiller) como “o desencantamento do mundo” começou como o desencantamento sistêmico no interior do cristianismo. Na abolição do “sagrado do culto e da vida social” e em sua “atitude instrumental” visando a ordem social, o protestantismo radical prepara o caminho para o humanismo. Ele não faz isso sozinho e ele próprio pode ser visto como o produto de forças econômicas em mudança, mas há um sentido importante no qual os evangélicos viram-se vítimas de sua própria armadilha. Assim, não é muito surpreendente encontrar Carl Henry argumentando que a verdade bíblica é proposicional, ao que Clyde Kilby, professor em Wheaton, rapidamente retrucaria, “Como podem os Salmos ser proposicionais?”.

Foi, sem dúvida, ingenuidade dos neoevangélicos pensar que eles simplesmente poderiam formular uma visão de mundo, como se isso fosse uma questão de decisão individual. Todavia, eles reconheceram um fato real a respeito do mundo e de suas épocas, isto é, que as opções básicas para a compreensão da experiência vivida haviam mudado dramaticamente, e isso era bem recente. Como Taylor argumenta, ser um cristão no século 21 não é a mesma coisa como era ser um cristão em 1500, e nós poderíamos acrescentar que ser um ateu também não é mais a mesma coisa.

Taylor usa o exemplo de uma pessoa possuída por espíritos malignos na Palestina do século 1: para aqueles que conviviam com tal pessoa, simplesmente não havia possibilidade de “alimentar a ideia de que essa era uma explicação interessante para uma condição psicológica, identificável puramente em termos intrapsíquicos, mas que havia outras etiologias, possivelmente mais confiáveis, para essa condição”. Nós, por outro lado, “não podemos ajudar, mas estamos cientes de que há uma variedade de diferentes constructos, pontos de vista em relação aos quais pessoas razoavelmente esclarecidas e inteligentes podem de boa vontade discordar, e o fazem”. Não podemos ajudar “vivendo nossa fé também em uma condição de dúvida e incerteza”.

Foi essa dúvida e incerteza que os evangélicos da história de Worthen tentaram exorcizar e, claro, eles podem também ter tentado recriar as condições sociais da Galileia do Novo Testamento. O que os filósofos chamam de “fundamento” [“background”], Taylor escreve, mudou: de um no qual um constructo teísta ingênuo era quase onipresente a outro, “no qual o constructo de todo mundo se mostra como tal; e no qual, além disso, a incredulidade tornou-se a opção padrão principal para muitos”. Essa transformação não pode ser desfeita, exceto por outra transformação igualmente fundamental, e tais eventos não podem ser provocados deliberadamente.

Ateus de graduação

Uma consequência infeliz dessa mudança de fundamento é que, como a incredulidade parece ser a única interpretação plausível a um número cada vez maior de pessoas, elas acham difícil entender por que alguém adotaria uma posição diferente. Desse modo, “elas chegam a teorias bastante equivocadas para explicar a crença religiosa”, deixando-nos expostos a livros grosseiros [ignorant books], como os de Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Daniel Dennett. Veja, por exemplo, Dawkins falando a respeito de Tomás de Aquino, uma discussão tão inepta que é como se Noam Chomsky decidisse publicar um livro introdutório sobre rock pesado [black metal]. (Veja, em A experiência de Deus, a elegante demolição que David Bentley Hart faz da análise de Dawkins.)

Os “ateus de graduação”, como o filósofo Mark Johnston os chama em Salvando Deus, foram definitivamente refutados por Hart, Terry Eagleton, Marilynne Robinson, o próprio Johnston e outros. Podem ser divertidos como banhos de sangue intelectuais – é como assistir Jon Stewart cutucando Glenn Beck [ver aqui]. Evidentemente, porém, Richard Dawkins é apenas um sintoma. Eu já encontrei ateus que parecem não só nunca terem conhecido um crente educado e inteligente, mas que duvidam da existência de tal criatura.

A mim me parece que esses incrédulos perderam algo fundamental a respeito da natureza do ser, como ela se manifesta ao animal humano, algo que as principais tradições teístas tentam abordar com um pouco mais de nuance e generosidade do que conseguem reunir as atualizações contemporâneas do positivismo lógico. Você não tem, obviamente, de acreditar em Deus para se sentir humilhado e desorientado diante do que [Martin] Heidegger chamou de “a questão do significado do Ser”. (Na verdade, eu muitas vezes penso que a noção de “crença” é mais problemática do que deveria.) Mas você tem de reconhecer que há uma questão, “a grande questão que gira em torno de você”, como John Ashbery coloca: “sua presença aqui”. E você tem de reconhecer que se trata de algo fora do âmbito das ciências naturais.

Um dos piores aspectos do evangelicalismo conservador, especialmente em suas orlas fundamentalistas, é que muitas vezes o seu literalismo incentiva o ateísmo néscio da variedade Dawkins. Se o cristianismo de fato abrigasse as crenças de que a Terra foi criada 6.000 anos atrás, de que a homossexualidade é um mal e de que Noé realmente construiu uma arca gigantesca, eu também não ia querer ter nada a ver com isso. Imagino que Richard Dawkins nunca prendeu uma criança de terceiro ano em um trailer e a obrigou a confessar que a teoria do equilíbrio pontuado é falsa.

Mas o cristianismo não abriga tais crenças, tenho coragem o bastante para dizer. Como de costume, Marilynne Robinson chamou a atenção para esse ponto com contundência eloquente:

“As pessoas que insistem que a sacralidade das Escrituras depende da crença na criação em seis dias literais parecem nunca insistir em uma leitura literal de ‘dá a quem te pede’ [Mateus 5, 42] ou ‘vende o que tens, e dá-o aos pobres’ [Mateus 19, 21]. De fato, sua política e economia os alinham precisamente com aquelas de seus adversários, que anseiam por se livrar dos fracos e por soltar as grandes forças criativas da concorrência. Os defensores da ‘religião’ fizeram com que a religião parecesse uma tolice, ao mesmo tempo em que emudeceram diante de um prolongado e altamente efetivo ataque aos pobres.”

Em 1931, C. S. Lewis foi convertido durante um passeio ao luar com J. R. R. Tolkien. No intervalo dessa caminhada, Lewis escreveu mais tarde, Tolkien o convenceu de que “a história de Cristo é simplesmente um mito verdadeiro”. Taylor, Robinson, Hart e Johnston – todos os quais estão abertos às verdades de outras religiões, assim como às do cristianismo – nos ajudam a entender o que isso significa. Apóstolos da razão, uma história emocionante, ainda que parcial, das cinzas da guerra fundamentalismo-modernismo, nos ajuda a entender o que isso não significa.

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Michael Robbins é autor das coleções de poesia Alien vs. Predator e The Second Sex (a publicar), assim como de um trabalho crítico a ser publicado, Equipment for Living