Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As armadilhas da fama

Em uma carta a uma amiga de faculdade, um jovem J.D. Salinger escreve sobre desejar a fama. Em correspondência subsequente para a mesma mulher e seu filho ao longo das quatro décadas seguintes, o autor norte-americano escreveu o quanto odiou seu status de celebridade.

Nas cartas de Salinger para Ruth Smith Maier, uma mulher que conheceu enquanto cursava o Ursinus College na Pensilvânia, em 1938, os dois compartilharam histórias sobre paternidade, trabalhar como escritores e gracejos em geral sobre cultura popular.

As cartas, que especialistas dizem que humanizam o autor, notoriamente recluso e mostram como ele vivenciou uma série de acontecimentos que mudaram sua vida, foram adquiridas pela Harry Ransom Center, biblioteca de pesquisa de ciências humanas da Universidade do Texas, e disponibilizadas para pesquisadores nessa semana.

Na correspondência mais antiga, de janeiro de 1941, um confiante Jerry Salinger, de 22 anos, escreveu para Ruthie que ele pretendia deixar sua marca como autor.

“Eu sou bom,” ele diz na carta datilografada. “Vai levar um tempo para convencer o público, mas (isso) vai acontecer.”

Ele falou de seu tempo e das pessoas em Ursinos, dando uma pista sobre os temas que fariam parte da sua obra posterior.

“Para cada cem impostores, existe um bom, e essa é a proporção melhor que encontrei aqui na minha selvagem cidade de Nova York,” disse ele.

A carta seguinte é datada de 17 anos depois, em 1958. Durante esse período, Salinger foi publicado pela revista New Yorker, serviu como soldado, lutando em algumas das mais brutais batalhas da Segunda Guerra Mundial, na Europa, lançou o seu mais famoso romance “O Apanhador no Campo de Centeio” e o livro “Nove Histórias”.

Alarmado pela sua súbita fama, Salinger se tornou um recluso desde 1953, protegendo ferozmente a sua privacidade em Cornish, uma pequena cidade ao noroeste de New Hampshire.

Na carta, Salinger fala carinhosamente sobre a sua filha mas nova, Margaret, suas boas lembranças de Ursinos e do seu desdém pelas armadilhas da fama.

“Hoje em dia, quase todas as notícias recebidas sobre a minha ficção, ou me irritam, me dão calafrios, ou simplesmente, não me atingem,” diz ele.

Kenneth Slawenski, autor da aclamada biografia “J.D. Salinger: Uma vida”, disse que as trocas de correspondências de longa duração eram comuns para o escritor – como a com um companheiro de quarto da Valley Forge Military Academy – mas que poucos estudiosos sabiam sobre a troca de cartas entre ele e Maier.

“Que eu saiba, Salinger nunca condenou a fama em si (afinal, ela é essencial para a venda de livros), mas suas cartas frequentemente expressam desgosto com as consequências da fama, disse Slawenski em um e-mail à Reuters.

Desconfiança

Em 1969, Salinger era conhecido pelos americanos como um dos reclusos famosos do país. Ele escreveu para Ruth naquele ano sobre o enorme prazer de ver seus filhos crescerem e de deixar a celebridade para trás.

“Nos meus piores momentos, anos atrás, todas as cartas endereçadas a mim eram escritas em parte ou totalmente em Holden Calfidês (sic). Era como estar no inferno,” escreveu ele, referindo-se a Holden Caufield, o personagem principal de “O Apanhador no Campo de Centeio” e às cartas que ele recebia de fãs e estudiosos.

Muito do que Salinger escreveu durante seu período de isolamento não será visto até 2060, 50 anos após sua morte, como ele determinou. O autor tinha 91 anos quando morreu em 2010, de causas naturais.

Três dessas histórias inéditas vazaram online no ano passado e a provável fonte do vazamento seria um livro não autorizado, impresso sem a permissão de Salinger.

Em suas cartas, Salinger que também disse que não tinha intenção de ter sua ficção transformada em peça de teatro ou filme, provavelmente um comentário dirigido aos produtores de Hollywood que tentaram durante anos trazer obras como “O Apanhador” para a tela grande.

Em uma carta de 1977 para o filho de Maier, Salinger escreveu que queria que a sua ficção fosse publicada eventualmente, mas não naquele momento.

“A publicação tende, pelo menos para mim, a colocar todo o trabalho ainda em andamento em terrível perigo. Um motivo disso é que desconfio da finalidade da publicação,” disse Salinger.