Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Desconstruir as peças para revelar o livro

Há políticos que deixaram um marco da passagem entre nós tão forte que se torna difícil apagá-lo. Mortos, não importa quando, inspiraram documentários, livros, notícias e boatos. Não sossegam e nem descansam em paz. São homens de personalidade audaciosa e um instinto que beirava a atos incomuns.

Em vida não cederam um palmo na defesa do ideário. Entendiam praticar o bem coletivo. Em certas circunstâncias escolhiam o lado errado. Não passavam de românticos e sonhadores. Mudavam de posição tentando acertar. Utopia. O modo de agirem para alguns custou caro. Incursiono pela leitura de um livro com título original e instigante. O nome, eu darei adiante, para não misturar o autor com o personagem da história, os quais são ligados por laços de família, avô e neto. Ambos talentosos, com vocação às letras. Um abismo os separa, a política.

Um atirou-se de corpo e alma no labirinto político e enfrentou todo tipo de ciladas. Algumas o atingiram e caiu ao chão a golpes de coronhadas. Ferido, sangrando e, pior, na frente de um dos filhos (cerca de 10 anos de idade), este viu-se envolvido no triste episódio. Revidou a violência contra os brutamontes, que massacravam a vítima. Coitadinho… Apesar das ferroadas das abelhas, um inseto que quando não mata, machuca, as ameaças e os espancamentos nunca o abateram. Supersticiosos diziam que o personagem tinha “corpo fechado”. Escapava e nem sempre ocorria com quem o acompanhava.

Realidade e ficção

Levado para o hospital, feito o curativo e passada a dor, voltava à luta. A disposição aumentava. Com a cabeça enfaixada ditava os editoriais demolidores, que os apresentava na tevê e lia nas rádios. O texto ditado a um terceiro. Depois encaminhava aos jornais. Dominou o cenário político, por mais de 40 anos. Não recuou nos momentos críticos. Num dia, 21 de maio, o coração cansado não resistiu às maldades física, verbal e parou.

O trineto não deu continuidade a esse universo de intrigas e confrontos, cuja política virou tradição na família, a partir do trisavô. Transformou-se em testemunha. Homem de cultura, colecionador de prêmios literários, inclusive da ABL, armazenou informações e os transportou para um livro, cujo tema faz parte da história do país. Coube-lhe, então, o papel de relatar os fatos na jornada de dúvidas e incertezas, rica de sustos, perigos e atentados repassados de truculências, envolvendo o avô, a quem admirava.

Vamos desconstruir as peças para revelar o título do livro: Carlos Lacerda / A República das abelhas / Romance. Autor, Rodrigo Lacerda. O narrador da história de Carlos Lacerda (1914-1977), na época com 63 anos, é o próprio, através de uma entrevista que teria dado à repórter Maria Lúcia, do Jornal do Brasil. Morreu nesse mesmo ano e embora sepultado no cemitério São João Batista (Rio), prossegue a narrativa. Só a literatura é capaz de tais recursos, a exemplo do que fizeram um Machado de Assis, Eça de Queiroz, Jorge Amado e outros. Associaram realidade com ficção.

Dom Quixote dos trópicos

Nenhuma pergunta ficou sem resposta. Algumas delicadas. Envolve a intimidade da família Lacerda. Vivo ou morto Carlos Lacerda será sempre o mesmo. Um cultivador de rosas, mas capaz de propor-se a fazer uma carta pública contra o pai, o famoso Maurício, para ingressar no Partido Comunista. Mudar de facção ideológica, um dos fracos. Foi agitador, comunista, socialista, ateu, católico, espírita, adepto da ditadura militar arrependido e um inimigo cruel de Getúlio Vargas. Em 2014 homenageia-se o seu centenário de nascimento. O Brasil tem muito a conhecer sobre esse homem que derrubou governos com a ajuda da palavra.

Merece esticar o assunto do livro, isto pelo fascínio e a história política que o personagem da obra impregnou este país, sem medir as consequências. E o fez com paixão exacerbada ao ultrapassar os limites do bom senso, associada a um temperamento intempestivo, sujeito a tempestades e trovões que viravam tornados devastadores. Junte-se a isto uma inteligência fora do normal. O assunto pede que se prosseguir. Vejamos…

Poucos políticos e jornalistas tiveram tanta capacidade, como esse udenista, para conspirar e machucar o adversário com o veneno do temido ferrão, de preferência chefes de Estado e de polícia, ministros, e outros figurões. Doem as picadas. Longas as dores! Há muito a ser dito sobre esse Dom Quixote dos trópicos, cujo criador na literatura, Cervantes, gostaria de conhecê-lo.

As manhas da política

Intransigente na defesa das ideias geralmente as impunha. Difícil convencê-lo a fazer restrições. A linha sucessória da política na rede familiar começou com o ex-ministro Sebastião Lacerda (Vassouras, RJ), cuja posição no STF tinha semelhança com Joaquim Barbosa, pela conduta ética e intransigência no voto, sem conchavo com o governo. Por tal motivo o patriarca foi perseguido. A polícia ordenou busca e apreensão no lar, considerado sagrado, por todas as Constituições, principalmente de um ministro da Suprema Corte. É o que conta o livro.

Há quem gostaria de castigar o atual e incorruptível magistrado, presidente daquela Casa, quanto a posição assumida, pela coragem e coerência, no caso dos “mensaleiros”. Os tempos são outros. Sebastião, amigo de Prestes, era avô de Carlos, que passou o vírus da política para o filho, o famoso Maurício, fervoroso defensor dos operário e recordista em apanhar da polícia e pegar prisões, por subverter a ordem pública.

Sempre por uma boa causa no seu entendimento. Como a legislação trabalhista, pela qual brigou. Nada que justificasse permanecer na rua, ao abandonar a família, por longos períodos, e sem dinheiro. Colocou as ideias acima de todas as coisas. O ministro Sebastião teve três herdeiros que incorporaram a mesma ideologia: Paulo, Fernando e Maurício. Este, pai de Carlos, que lhe deu o nome em homenagem a Karl Marx e Friedrich Engels, teóricos do comunismo. Passou-lhe a chamá-lo de Carlos Frederico Werneck de Lacerda, o qual teve uma excelente escola. Aprendeu o abc das manhas da política.

Não era fácil conviver com ele

Pela intransigência sofreu uma série de ataques físicos. O mais grave ocorreu à Rua Toneleros, no Rio, quando se achava acompanhado do major da Aeronáutica Rubens Vaz, que atingido por tiros de revólver, faleceu. Lacerda foi hospitalizado com ferimentos no pé. O episódio teria levado Getúlio Vargas ao suicídio, pela campanha que lhe moveu o jornal, rádio e a incipiente TV.

Todo o carisma que ostentava levava-o às vezes à arrogância, até que encontrou um amigo que lhe pisou em cima da vaidade, dando-lhe uma lição repleta de verdade e que se torna uma das mais belas passagens do livro. A uma pergunta de Carlos, o intelectual Mário de Andrade, um dos líderes do movimento literário de 1922, com repercussão em todo o país, responde:

“O seu mal, Carlos, nem é você tomar como padrão Shakespeare ou Camões, o pior é esta ambição orgulhosa e feroz de querer ficar Shakespeare e Camões somados. Daí o seu jeito irregular, desigual, desarmonioso.”

Lacerda calou-se, pelo menos naquele ambiente inquieto, entre amigos, onde rolava boa conversa e bebida. Estavam sempre em conflitos culturais, mas se entendiam bem. Admirador e ligado a Prestes brigaram feio. C.L. não era fácil conviver com ele.

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Sebastião Jorge é professor, jornalista e advogado