Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guardiã dos grandes escritores

Da janela avista-se à distância o aterro do Flamengo; sob quase 40o C o centro se movimenta com barulho. A dona do escritório atém seu olhar ao computador para diligentemente responder e-mails que chegam à centena todos os dias. Está guarnecida de silêncio e ar-condicionado. Atrás da mesa, nas laterais, em outras salas contíguas, as paredes se cobrem de fotos, desenhos e versos daqueles por quem se ocupa todo o tempo: boa parte dos principais autores brasileiros das últimas três décadas.

Não é o verão do Rio que vai fazer Lucia Riff parar. Aos domingos e nas férias, abre a caixa de mensagens ao menos na primeira hora do dia e na última da noite. Achou que não poderia atender a mais ninguém quando reuniu 30 escritores e poetas no catálogo da agência literária que tem seu sobrenome. Agora são 81, e a lista de clientes que imprimiu para mostrar já está desatualizada – dois se somaram nos últimos dias e são acrescidos à mão. Entre veteranos como Lygia Fagundes Telles, Luis Fernando Verissimo e Rubem Fonseca, há talentos revelados da década passada para cá, como Antonio Prata, Beatriz Bracher e José Luiz Passos. Citar apenas alguns entre oito dezenas não é escolha sua – são as perguntas da reportagem que a levam a falar dos que aparecem neste texto. Aquela que zela por eles guarda isonomia e confidencialidade: tão grave quanto revelar uma cifra é deixar de mencionar um autor.

O mercado nunca esteve tão ativo quanto agora, com uma onda de lançamentos e repercussão que se avoluma sobretudo nos últimos cinco anos, embora não se possa dizer que é possível viver só de livros. “Continua a ser dificílimo. O que houve foi uma valorização do autor nacional”, avalia.

Se antes uma tiragem de 2 mil exemplares não se esgotava, hoje não é irreal vender 5 mil, o que, como pondera, ainda é pouco “para pagar aluguel ou faculdade de filho”. Poucos abandonam atividades que exercem para se dedicar ao ofício. A cada cinco anos, “com sorte”, como diz, se consegue vender 20 mil exemplares para programas de compras do governo. Se o autor tiver “sorte extraordinária”, esse número sobe para 90 mil, e, com “a sorte das sortes”, para 300 mil. Somam-se hoje cachês para participar de bienais e festas literárias, debates em livrarias e oficinas país afora, calendário quase inexistente dez anos atrás. Animada com a nova configuração do mercado, iniciou uma campanha informal para que passem a ser apuradas, além das listas de mais vendidos conhecidas, uma apenas com ficcionistas brasileiros.

A curiosidade pela ficção nacional também aumentou no exterior. Como medida dessa temperatura, Lucia Riff conta que escutou, pela primeira vez desde que se iniciou no ramo, em 1983, uma expressão alvissareira: “boom da literatura brasileira”. Quem disse foi o crítico e editor mexicano Martín Solares, da Océano, para dar conta da quantidade e variedade atual. Estavam em Guadalajara, onde se realiza uma das mais importantes feiras de livros das Américas – a edição mais recente foi encerrada no começo de dezembro com grande delegação de autores daqui.

Confiança absoluta

As contratações no exterior não crescem na mesma proporção que a visibilidade. Em Frankfurt, a maior feira do mundo, que homenageou o Brasil em outubro, a procura foi, segundo calcula, “pelo menos 50% maior”. Ouviu muito frases desse tipo: “Quero publicar brasileiro, o que você tem?”. Os negócios ainda estão sendo fechados. Recentes, houve quatro contratos para traduzir “Noites de Alface”, de Vanessa Barbara, e pareceres entusiasmados (dois deles já concretizados em vendas) para “O Drible”, de Sergio Rodrigues. A hora agora é de preparar o catálogo para a de Bolonha em março, especializada em infantojuvenil, que também fará honras ao Brasil. Celebrações ao país vão se repetir ainda em eventos literários de Paris e Gotemburgo.

Os negócios estão aquecidos não só para os contemporâneos. Um título que acaba de sair e que ela traz para a conversa, sem disfarçar o contentamento, é exemplar do quanto passou a valer um clássico. Em capa dura azul de grandes letras, eis “Invenção de Orfeu”, a obra-prima do poeta alagoano Jorge de Lima (1895-1953) que, ao completar seis décadas de morte, deixou a Editora Record para ser publicado pela Cosac Naify – troca de casa editorial intermediada pela Agência Riff.

Outros clássicos que atendem por meio de herdeiros, como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Erico Verissimo (1905-1975), transferidos para a Companhia das Letras, também têm se renovado nas prateleiras ao trocar de editores. O que aumentou seu interesse comercial, como Lucia lembra, foram as compras para o governo que passaram a ser realizadas pela Fundação Biblioteca Nacional a partir de 1998. Também é a FBN responsável pelo aumento da divulgação da literatura brasileira no exterior desde que as bolsas de tradução passaram a ser distribuídas regularmente, há três anos. Os clássicos têm se beneficiado: “O Quinze” e “João Miguel”, de Rachel de Queiroz, foram vendidos para a França, e uma antologia de Drummond, para a Itália.

À centena chegam os e-mails para Lucia todos os dias, não bastassem os telefonemas e encontros. As demandas são de todo tipo; vêm de autores e editores, de outros agentes, produtores e candidatos a cliente. Não são incomuns os pedidos de autorização para o uso publicitário de textos que não são do autor presumido. Quem está do outro lado demora a se convencer. “Esse poema não é do Drummond!”, repete insistentemente a agente. Para promover a obra de seus autores, há de se ter ideias – encaminhadas, por exemplo, a eventos como a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Ela garante que, desta vez em que o escolhido como homenageado em 2014 é Millôr Fernandes (1923-2012), cuja obra representa, não teve participação. “A não ser agradecer e prometer toda colaboração possível.” Outra das frentes de trabalho é a busca por contratos no cinema e no teatro, com a parceria da Film2B e a Abramus.

Autor incluído no catálogo, passa-se à organização de sua obra. Uma vida editorial pode estar bagunçada de maneiras variadas, como Lucia enumera: com títulos sem reeditar, espalhados por muitas editoras, com contratos vencidos ou malfeitos. “Costumo dizer para o autor: ‘Sabe quando sou mais útil?’. Ele pode pensar em responder que serei útil quando o ajudar a ganhar mais dinheiro. Mas estou aqui para que, antes de qualquer coisa, não assine um contrato errado.”

Contrato errado não é, como se pode presumir, o que estabelece percentual de direitos autorais abaixo dos 10% que vigoram há mais de meio século. Esse não constitui exatamente um problema, como explica a agente literária, pois as margens de fato variam. Em obras infantis, se há coautoria – escritor e ilustrador –, o percentual para cada um fica abaixo disso. Em contrapartida, aqueles que publicam títulos de altíssima venda conseguem elevar para bem mais de 10%. O contrato errado inclui cláusulas que travam a obra, englobam outros usos – audiovisual, por exemplo –, duram por número indefinido de anos, tem renovação automática.

Os cuidados não se restringem aos contemporâneos. Ao negociar um clássico, avalia o que se vai fazer para renová-lo. Observa como será a curadoria, o tipo de edição, o trabalho nas escolas, se a nova editora buscará adoções nos ensinos fundamental e médio ou se concentrar apenas nas aquisições governamentais. “Existem editoras apenas focadas em venda de governo. Assim não quero. O importante é manter uma obra viva.”

Os casos de briga na Justiça são raros – há um em trâmite agora por falta de pagamento. Conta que, com jogo de cintura, resolve-se a pendenga, se alcança um bom termo. “Quantas vezes você está tirando um contrato de uma editora e levando outro para lá, ao mesmo tempo celebrando uma maravilhosa aquisição e lamentando um infeliz destrato. Essas coisas fazem parte do mercado”, diz Lucia. “O editor tem direito de desistir do autor, assim como o autor da editora. Um contrato claro facilita.” Ou, como na grande lição que herdou da catalã Carmen Balcells, “um contrato tem de ter começo, meio e fim”.

Carmen, hoje nonagenária e aposentada, se notabilizou no mercado internacional no último meio século ao conduzir as trajetórias de representantes do chamado “boom latino-americano”, c omo Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, ambos laureados com o Nobel. Em 1983, no escritório brasileiro que decidira abrir, Carmen precisava de alguém de absoluta confiança, com boa formação e inglês fluente. Contratou Lucia Riff, então uma psicóloga com experiência em escola, mãe da primeira filha e prestes a fazer uma pós-graduação.

“Quem começa não larga”

A funcionária recém-admitida chegava por uma indicação que valia mais que a experiência – que ainda não tinha – no ramo: Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector (1920-1977), amigo de infância do marido, de quem vem o Riff de origem russa. “Quem começa a trabalhar com livros nunca larga”, Carmen Balcells logo avisou. De fato, não voltaria mais para a psicologia. Depois passou temporadas na Nova Fronteira e na José Olympio, até que a agente catalã a procurou outra vez em 1990. Precisava de alguém para ajudá-la a encerrar o escritório. Finda a operação, a brasileira montou o seu no ano seguinte, tendo a ex-chefe como sócia, inicialmente com um terço. A agência é toda Riff hoje, mas ela não está só no comando. Conta com a ajuda dos dois filhos, Laura e João Paulo, formados em direito e leitores vorazes. Começaram como estagiários na época de faculdade, agora estão à frente da área que compra títulos estrangeiros para tradução aqui. Com a mãe, que se concentra nos brasileiros, vão a todas as feiras internacionais. A sala que dividem é separada por estantes de livros.

Os registros nas paredes ajudam a recordar. Entre as primeiras a atender, houve a “queridíssima” Sylvia Orthof (1932-1997), com quem falava diariamente. Para encontrá-la quase sempre ia até Petrópolis, cidade da autora. De Rachel de Queiroz (1910-2003), destaca a memória prodigiosa aos 80 anos de idade. Acompanhou a escrita de “Memorial de Maria Moura” (1992) nas visitas para um café. A cearense se chatearia com a adaptação do romance para a TV. Fizera exaustiva pesquisa para só se referir a utensílios que existiam na época do livro, mas a minissérie embaralhou tudo. Desistiu de assistir. Com Mario Quintana (1906-1994) não conviveu, foi um dos clássicos que vieram para a agência por iniciativa de herdeiros. A sobrinha do poeta gaúcho, Helena, sabe de cor todos os versos do tio desde uma brincadeira de infância – ele começava um poema, ela continuava.

O relacionamento se tornou mais estreito com alguns. Luis Fernando Verissimo e a mulher, Lucia, são parceiros de viagens. Como Verissimo não usa celular, tampouco Zuenir Ventura, é o número de suas mulheres que disca em urgências. Adélia Prado responde pelo endereço eletrônico do marido. Com outros, tem comunicação instantânea pois estão sempre on-line. Assim era Moacyr Scliar (1937-2011), que respondia mesmo em trânsito, das salas de aeroporto. Assim são Claudia Tajes, Leticia Wierzchowski e Marina Colasanti. A habilidade com a internet, cada vez mais exigida nos escritores, faz diferença hoje na divulgação dos livros. A agente aconselha seus autores a não esquecer as redes sociais, mas reconhece que não devem ser obrigatórias. Rubem Fonseca, gentil e solícito no trato, é conhecido pela aversão a aparições públicas.

“Quem começa a trabalhar com livros nunca larga”, lhe repetia a chefe catalã. A brasileira, diante de sua lista de 81 nomes, diz uma frase que pode servir como variação da primeira: “São a minha vida”.

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Joselia Aguiar, para o Valor Econômico