Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Dragão do Mar reapareceu

“Há muito tempo nas águas da Guanabara/ o Dragão do Mar reapareceu…” (O Mestre-Sala dos Mares, João Bosco e Aldir Blanc)

No dia 25 de março de 1884, há 150 anos, proclamava-se a Abolição da escravatura no Ceará, quatro anos antes da Lei Áurea. Quem conhece bem os motivos e circunstâncias que levaram a tal acontecimento, que teve repercussão nacional e internacional, com destaque na imprensa, acelerando o fim oficial da escravidão no Brasil?  

Livro pioneiro sobre o assunto foi escrito pelo jornalista Edmar Morel (1912-1989), lançado em 1949: Dragão do Mar – o jangadeiro da Abolição. Posteriormente ampliado e reeditado como Vendaval da Liberdade – a luta do povo pela Abolição. A partir da biografia de Francisco José do Nascimento, caboclo pobre, líder dos jangadeiros em Fortaleza dos anos 1880, Morel traçou a história das lutas sociais e do enfrentamento com o sistema escravista que levaram a este episódio decisivo e obscurecido pela memória coletiva e pela historiografia.

O jornalista e o jangadeiro

Ainda hoje tal publicação é a única biografia do personagem histórico (que se tornou lendário). Uma pergunta: como surgiu este descoberta do jangadeiro pelo jornalista, ambos cearenses? O livro teve duas fontes iniciais: o contato do autor, na infância e juventude, com pescadores, jangadeiros e os remanescentes do movimento abolicionista do Ceará e, depois, com o cineasta Orson Welles que encomendou-lhe pesquisa histórica para o lendário e inacabado filme rodado no Brasil, It’s all true. Publicação gestada, portanto, entre meados dos anos 1920 e fins da década de 1940, em Fortaleza e no Rio de Janeiro.

Esta obra de Edmar Morel tem significado marcante: está para o tema jangada/ jangadeiros, no campo do jornalismo e da historiografia, como o livro etnográfico e folclórico (A Jangada, 1957) de Câmara Cascudo ou as composições praieiras de Dorival Caymmi (Suíte dos Pescadores) no cancioneiro, em suas respectivas dimensões e peculiaridades. Pertencem ao mesmo contexto de afirmação e elaboração de identidades regionais e nacional e situam-se em meio aos dilemas e embates de uma época – que não é tão distante dos tempos atuais, em perspectiva de longa duração.

O livro baseou-se em pesquisa atenta e minuciosa sobre fontes documentais diversas, algumas inéditas até então: relatos orais, imprensa periódica, manuscritos, debates parlamentares, manifestos, acervos pessoais, livros, artigos, textos oficiais, poemas, caricaturas, correspondências privadas e memórias. A esta pesquisa acrescentam-se as análises do autor e seu ponto de vista, sempre explicitado, sem com isso perder as contradições e complexidades do tema tratado.

A publicação, pois, tem perfil próprio. No jornalismo, situa-se no âmago da modernização da imprensa em meados do século XX e, mais particularmente, dos primórdios do jornalismo investigativo no Brasil. Como repórter em destaque nos Diários Associados, então a maior e mais importante empresa de comunicação do país, Edmar acompanhou o raide dos jangadeiros de 1941, marcado de um tom épico, de apropriações da mídia e de instituições culturais conservadoras, mas também pela luta social dos pescadores pobres. Em seguida, o autor fez parte da equipe de Orson Welles que foi ao Ceará para filmar a saga dos jangadeiros, opção que valeria ao cineasta norte-americano cair nas desgraças do Departamento de Estado de seu país e no Índex das grandes produtoras cinematográficas. Enfim, o livro ganha, pela escrita jornalística, agilidade e colorido, narrativa envolvente, sem perder o rigor objetivo e inovador da pesquisa em documentos da época, honestidade intelectual e lúcida paixão militante.

Justamente em fins da década de 1940, período de Pós-Guerra (derrota do nazi-fascismo) marcado pelas durezas da Guerra Fria, surge na área das Ciências Humanas a perspectiva de elaborar histórias de vida de indivíduos das classes populares, protagonistas anônimos ou “pessoas extraordinárias”, na expressão de um dos integrantes desta geração, o historiador inglês Eric Hobsbawm. “Um homem da plebe, em geral, não tem história na História do Brasil”, afirmava Edmar Morel no que seria o mote deste e de outros de seus trabalhos. Estava aí sua visão de mundo, situada na esquerda nacionalista com alguma proximidade do marxismo, marcada pela vivência pessoal entre as camadas pobres, garoto percorrendo ruas e praias de Fortaleza.

Alguns historiadores têm analisado a vida e obra de Edmar. Na compreensão de Mário Maestri, foi um intelectual orgânico das classes populares. Na afirmação de Francisco de Assis Barbosa, Morel foi o historiador dos oprimidos. Josué de Castro, em Geografia da Fome, assinala a relação feita por Edmar entre o movimento abolicionista do Ceará e a Seca de 1877, uma das grandes tragédias (des)humanas da História do Brasil, ainda por ser melhor conhecida e reconhecida.

Com os estudos interrompidos no 3º ano do ensino básico, pela pobreza e necessidade de trabalhar, Edmar Morel notabilizou-se como um dos importantes jornalistas brasileiros do século XX, além de autor de livros que, segundo Jorge Amado, construíram personagens marcados pelo signo da liberdade.

A jangada como símbolo da liberdade já existia no século XIX, antes mesmo da pioneira Abolição no Ceará em 1884. O romance La Jangada – huit cent lieus sur l’Amazone, de Júlio Verne, é de 1881 – por sua vez, inspirado no relato de viagens de Franz Keller-Leuzinger, Voyage d´exploration sur l´Amazone et le Madeira, de 1874. Mas tal simbologia ganhou densidade humana na figura de Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, e seus companheiros, no embate ousado contra o escravismo e os escravocratas donos do poder – armado, político e cultural. Não foi propriamente uma história dos “vencidos”, pois os jangadeiros cearenses, ponta de lança da luta contra a escravidão que envolveu setores ampliados da população, tornaram-se vitoriosos em seus objetivos.

A história de um livro

Livros e autores têm sua própria história. No período da primeira edição, Dragão do Mar – o jangadeiro da Abolição, em 1949, Edmar Morel encontrava-se mergulhado na atividade jornalística e nas lutas sociais. Saíra dos Diários Associados, nos quais se tornara conhecido nacionalmente, e trabalhava em diversos órgãos, sobretudo na imprensa alternativa e de esquerda, como Diretrizes e Panfleto, no Rio de Janeiro, onde seria um dos fundadores de Última Hora em 1952. Atuava no movimento pacifista ao lado do médico e militante comunista Valério Konder (pai do jornalista Rodolfo e do filósofo Leandro), organizando protestos contra a bomba atômica e a presença expansionista dos EUA. Morel tornou-se uma espécie de porta-voz informal do Partido Comunista do Brasil (PCB), colocado na ilegalidade, como atestam os documentos de seu volumoso dossiê nos arquivos referentes ao DOPS. Porém, nunca se filiou a este partido, mas sim, no mesmo período, pela via da chamada Esquerda Democrática, ao nascente Partido Socialista Brasileiro (PSB), do qual sairia no início dos anos 1960, por considerá-lo um “grêmio recreativo”. O livro teve prefácio de Gago Coutinho (o lendário navegador português da primeira travessia aérea do Atlântico Sul) e apresentação de Rubem Braga.

Em sua segunda edição, 1967, este livro passa a se chamar Vendaval da Liberdade, lançado pela Editora Civilização Brasileira, acrescido de novas pesquisas pelo autor, que adicionou os movimentos abolicionistas no Amazonas e Rio Grande do Sul, numa perspectiva nacional, assim como novos trabalhos sobre o Ceará. A mudança de título foi fruto de escolha conjunta do autor e do editor Ênio Silveira, que se destacou na publicação de obras contrárias ao pensamento então (e ainda) dominante, sobretudo contra a ditadura civil-militar implantada. Dois anos antes, Edmar publicara pela mesma editora O golpe começou em Washington, um dos primeiros de crítica à situação recém entronizada – o embaixador dos EUA desmentiria a relação de seu país com o golpe (comprovada com os documentos da Operação Brother Sam, em 1974) e uma bomba explodiu na sede da editora, causando sérios prejuízos. Eram os cães-de-guerra da CIA em ação, auxiliados pelos paramilitares brasileiros.

O Vendaval da Liberdade trazia na capa um solar girassol, desenhado pelo poeta Thiago de Mello: publicado num contexto de ampliação gradual dos protestos contra a ditadura, cujo desfecho, meses depois, seria o aumento da violência institucional (decreto do AI-5, dezembro de 1968). Thiago de Mello continuaria a declamar: “Faz escuro mas eu canto/ porque a manhã vai chegar”.

A terceira edição, de 1988, pela Editora Global, apresentava na capa a gravura realista e alegórica de Ângelo Agostini, que desenhou ao vivo o jangadeiro Nascimento e sua jangada libertadora. A edição saiu no bojo da luta pela ampliação das liberdades democráticas e conquistas sociais, assinaladas pela Assembleia Constituinte de 1987 e pela Constituição de 1988, como na continuidade da luta por eleições diretas para presidente da República que se realizariam no ano seguinte – e no dia do enterro de Edmar Morel.

A criação, em Fortaleza, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e a inauguração, em 2009, de uma estátua (baseada nos desenhos de Ângelo Agostini) do lendário e histórico Chico da Matilde, na entrada da instituição, já foram passos neste sentido.

Surge o Dragão do Mar

O apelido “Dragão do Mar” surgiu nos emocionantes dias de março de 1884, na cidade imperial do Rio de Janeiro: bandeiras, festas e gritos de alegria, colorida esperança, comemoravam a extinção do escravismo no Ceará. A alcunha apareceu nos jornais cariocas: o romancista e teatrólogo Aluísio de Azevedo parece ter sido o primeiro a publicá-la na imprensa, possivelmente foi seu criador. Antes, o tribuno (filho de uma escrava) José do Patrocínio apelidara o “companheiro” (como dizia) Chico da Matilde de “Lobo do Mar” e exaltara o Ceará como “Terra da Luz”.

Passam-se quatro décadas. A festa acabou, as flores murcharam, mas guardaram algumas sementes n’algum canto de jardim. Como que ungindo-o de missão, velhos lutadores cearenses, da outrora gloriosa Sociedade Abolicionista, como Elvira Pinho e Alfredo Salgado, envoltos em névoa de esquecimento e rotina, conversaram longas horas com aquele jovem recém-saído da adolescência, baixinho, magro, curioso, dinâmico, quase elétrico. Apreendia com vivacidade no olhar. Impregnavam-lhe do clima da época, episódios, personagens, cenas que descreviam como se ocorridas na véspera. Entregaram-lhe documentos, tornando-o depositário de suas memórias.

Pouco mais de uma década após estes encontros informais, lá estava o jovem, agora repórter e escritor, percorrendo as mesmas praias e ruas de Fortaleza, em companhia dos jangadeiros Jacaré, Dadá, Jerônimo e Mané Preto e da rumorosa equipe capitaneada por Orson Welles, atrás de locações para filmagens. Edmar Morel apresentara estes pescadores ao diretor de Cidadão Kane (entenderam-se bem, em portunhol, gestos e empatia) e passou a cuidar da pesquisa histórica que poderia alimentar o filme.

Edmar foi pago pelo cineasta em dólares – pela primeira e possivelmente única vez na vida. Acontece que… ao descer do avião de volta ao Rio de Janeiro, batia uma forte chuva com vento, o jornalista colocou o paletó na cabeça para proteger-se e os dólares guardados no bolso da veste voaram… Aurora, esposa de Edmar durante mais de meio século, não ficou convencida da explicação, desconfiando que o dinheiro poderia ter batido asas em momentos não publicáveis. De qualquer modo, esta cena dos dólares voando ficou eternizada no filme O Signo do Caos, o último realizado por Rogério Sganzerla. A película, ambientada em torno da presença de Orson Welles no Brasil, tem por mote o convívio e a peleja de Edmar Morel com o Dr. Amnésio (personagem que parece misturar Assis Chateaubriand, Getúlio Vargas, Roberto Marinho e outros).

A peleja contra o “Dr. Amnésio”

E é este convívio e esta peleja que continuam, em sentido ampliado. Dr. Amnésio e seus correligionários seguem atuantes, se espraiam nos corações e mentes. O Dragão do Mar reapareceu nas revoltas águas da baía da Guanabara em novembro de 1910, na figura de um bravo marinheiro gaúcho, João Cândido Felisberto, líder e expressão de 2.300 marujos que acabaram, na marra, com os castigos corporais na Marinha de Guerra, que permaneciam 22 anos após a Lei Áurea. Foi a Revolta da Chibata, título criado por Edmar Morel para seu livro publicado pela primeira vez em 1959, dez anos depois da obra sobre os jangadeiros e que lhe custaria a cassação dos direitos políticos no golpe de 1964. O Dragão do Mar reinventou-se no Almirante Negro, comparação simbólica elaborada por Edmar e aproveitada na bela canção de João Bosco e Aldir Blanc.

O Dragão do Mar está ameaçado em sua própria terra natal, a oceânica praia de Canoa Quebrada, onde insistem em chamar de Broadway a rua central que leva seu nome. Edmar Morel sequer é nome de rua em sua pátria de nascimento. O Dragão do Mar reaparece nas lutas sociais que renovam esperanças de tornar o mundo melhor a partir dos despossuídos, como pescadores não industriais, os povos indígenas, a população de rua, os sem-teto e os sem-terra, ameaçados pela sanha expansionista e devoradora do grande capital e seus agentes políticos espalhados pelos governos.

Em sua última ida ao Ceará, 1976, Edmar Morel publicou em O Povo um texto curto, sugestivamente chamado “As jangadas dão adeus”. Vivia-se num período da ditadura civil-militar em que era preciso doses de boa vontade e otimismo para enxergar alguma luz-no-fim-do-túnel, como se dizia. E o que se tornava público era escrito em cuidado, alusões. Depois de 13 anos de ausência, o repórter e historiador deparou-se a “um estranho Mucuripe, com tendinhas vendendo uísque escocês e automóveis de marajás desfilando pela ‘Beira Mar’ “. Viu a praia “espremida entre os edifícios e o ancoradouro, cheia de estranhas embarcações”. Anotou: “triste é a ausência das primitivas jangadas que escreveram paginas épicas”. Buscou nos barcos, “em vão, nomes que encheram de poesia a nossa infância”, Nossa Senhora dos Navegantes, Iracema, Deus te guie, Dragão do Mar… Mas só encontrou Esquire, Broadway, Marylin Monroe… Estranhou o “monte de tábuas, um misto de saveiro e bote”, assim como os nomes dos três tripulantes da jangada que escolheu para dar um passeio até a Ponta do Farol: Jacques, Péricles e Tomaz – ao invés de Cachorro Doido, Mané Preto, Tatá, Pé de Chumbo, Jacaré… E arrematou: “Escurecia quando a embarcação voltou à praia e as pobres jangadas, com suas velas enroladas, davam um espetáculo de profunda melancolia. É triste o adeus, para sempre, das jangadas de piúba.”

Aqui encerro este breve texto (entre memória e esperança) lembrando as lutas contra a escravidão e outras que vieram depois. Meu avô Edmar tantas vezes escutou esta música: “Glória a todas as lutas inglórias que através da nossa História não esquecemos jamais!” [Rio de Janeiro, março de 2014]

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Marco Morel é historiador, jornalista, pesquisador do CNPq e professor da UERJ