Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A literatura como feudo de celebridades

A literatura, tal qual a lendária cidade de Troia, foi um dos últimos bastiões que cedeu ao avanço das barbáries da globalização. Resistiu com bravura à vilipendiação dos valores e à corrupção da alma. No entanto, resistir é inútil, já pressagiavam os borgs de Star Trek. A arte literária também está sendo assimilada pelo consumismo hedonista para se enquadrar às normas da indústria cultural do século 21, que é avessa a mergulhos profundos e impõe que as nossas preferências se limitem à epiderme das coisas.

Livros com capas coloridas, chamativas; autor com pose de pop star, patinando deslumbrado sob holofotes e flashes de câmeras digitais. A palavra que renuncia ao conteúdo para se transformar em imagem plástica, mais palpável, palatável e lucrativa. A palavra realocada num mundo onde prevalece o objeto comercial. Book trailers, palcos, escritores-celebridade, feiras literárias como grandes anfiteatros para uma gente bonita mostrar seu valor. É a literatura intimada a ser espetáculo.

O escritor recluso e tímido, que escolheu a solidão para fecundar o pensamento e a visão intimista sobre o mundo, esse está em desuso, perde lugar para o showman e para as faces conhecidas da TV (que também decidiram enveredar pelas letras). Há poucos dias ouvi uma definição bem humorada sobre isso, estamos na era dos globe trotters literários. Não, definitivamente não existe lugar ao sol para o misantropo. Ou ele se metamorfoseia em pavão ou que apodreça nos porões do anonimato.

Território devastado

O que se ganha com a literatura midiática? Sem dúvida, arrebanham-se mais leitores, fortalecem-se alguns grupos editoriais, aumentam as tiragens. E o que se perde? A qualidade endógena das obras entrou em decadência, a estética foi depreciada pelo objetivo de atingir leitores menos qualificados e leitores desqualificados geram escritores medíocres. O resultado que se observa é um vácuo na literatura brasileira que inunda as livrarias com títulos estrangeiros, traduções capengas e o cultivo de um gosto duvidoso. Estamos recolonizando a nossa literatura, esse é o preço do estrelato individual. Não é à toa que uma pesquisa recente, realizada em 2014 pelo jornal O Globo nas principais bibliotecas públicas cariocas, constatou que o interesse dos leitores pelos best-sellers internacionais supera com larga vantagem a consulta por autores nacionais, inclusive os clássicos.

Algumas poucas trincheiras tentam preservar a literatura como arte, editoras como a Patuá e Confraria do Vento semearam e colheram autores valorosos que emplacaram como finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2014.

Infelizmente, o caráter desta literatura nacional recolonizada, feudo de celebridades, movida por nichos e modismos, não aparenta vontade de reverter seus passos em direção ao lucro e nem exibe remorso pela depredação estética que promove. Quando tentamos prever um cenário futuro, o panorama que se esboça é nebuloso, imprevisível. Quem sabe, lá na frente, deparemos somente com as ruínas de um território devastado e saqueado pela sanha dos ególatras. Uma Troia incendiada. Porém, mesmo diante do trágico desfecho da Ilíada, Aquiles e Heitor, os dois heróis épicos, ainda inspiram o que é eterno. Aos que amam literatura, resta a fé. Acreditar é sobreviver.

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Alexandre Coslei é jornalista