Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalista disseca mercado de jogadores mirins em livro

“O que quer ser quando crescer?” “Jogador de futebol.” “Posição em campo?” “Atacante.” “Em que time gostaria de jogar?” “Barcelona.” “O que faria com seu primeiro salário no Barcelona?” “Compraria coisas para minha família. Um táxi para o meu pai, uma casa para minha avó, um cabeleireiro para minha mãe e móveis.”

O questionário acima é um diálogo recorrente no livro Dente de Leite S.A., que o jornalista chileno Juan Pablo Meneses lança no Brasil às vésperas da Copa.

O autor descreve a empreitada de dois anos em que visitou dezenas de campos de futebol na América Latina para narrar como foi sua procura por um menino promissor cujo passe pudesse vender a um time de futebol europeu.

Na busca, ouviu casos como o de um homem de Callao, no Peru, que, sem querer, ofereceu frango assado estragado a um menino das divisões de base chamado Lionel Messi. A despeito da intoxicação alimentar, o garoto arrebentou na manhã seguinte em seu primeiro campeonato fora da Argentina, em 1996.

Meneses consultou representantes, advogados, agentes que falam de seus meninos como um cafetão, olheiros, donos de escolas de futebol, treinadores, empresários de estrelas mundiais, prostitutas de boates luxuosas frequentadas por ídolos, membros de federações e potenciais compradores europeus.

Ouviu relatos sobre a precificação dos pequenos e as duras regras a que são submetidos para treinar nas categorias de oito anos de idade, ou menos, quando a bola mal chega à altura do joelho.

Para achar seu jogador mirim, o autor percorreu bairros violentos e as rotas de compra e venda em países como Argentina, Colômbia e Brasil com o intuito de entender o mercado dos jovens astros.

Trata-se de uma experiência narrativa que ele chama de jornalismo cash, em que a estrutura se constrói a partir de uma troca monetária.

A fórmula de consumir e de relatar já fora usada por Meneses em sua obra anterior, La Vida de Una Vaca (2008), quando o jornalista comprou um bezerro e por três anos descreveu as etapas comerciais pelas quais o animal passou até chegar ao prato.

Há mais por vir. “Estou trabalhando em uma trilogia. O próximo livro vai abordar uma questão espiritual também no jornalismo cash”, disse Meneses à Folha.

Joia rara

O negócio de representar meninos em troca de uma participação é árduo. “É difícil achar um garoto que já não esteja ligado a um clube, por mais novo que seja”, diz Meneses. E embute um risco cujo retorno é uma fantasia.

O jogador pode ser comprado por US$ 200 e vendido por US$ 1 milhão em poucos anos. Mas Messis e Neymares são tão raros como bilhetes premiados de loteria.

No capítulo do Brasil, origem dos meninos mais caros nesse setor, ele explica que quando um grupo de garotos batendo bola na praia com aparente despretensão está sendo vigiado por um adulto, é porque ali há uma joia.

Sem afeto

Futebol mirim é um negócio da pobreza. A maioria das crianças que existem no mundo é pobre e a maior parte dos meninos que jogam em campinhos de terra também vive na miséria, diz o autor.

Enquanto a classe média prefere enviar seus filhos para a universidade, os negociadores dos jogadores mirins preocupam-se com três problemas que podem arruinar o triunfo de um goleador: drogas, mulheres ou estudos.

Diferentemente da relação entre um bezerro e seu comprador, cujo laço deve ser muito próximo a ponto de reconhecê-lo em meio a um mar de vacas no pasto, quando se compra um jogador mirim para vendê-lo na Espanha, recomenda-se que o elo seja o mais frágil possível, reduzido a papéis e cartórios.

Nesse mercado, a ideia de apegar-se a um fracassado e vir a sustentá-lo é prejuízo.

Para o autor, a distância tem uma razão a mais: evitar que a narrativa se desviasse para a precariedade doméstica do garoto e caísse na descrição de sua cama fria, da fome e da miséria crônica.

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Joana Cunha, da Folha de S.Paulo