O primeiro esboço da teoria da evolução por seleção natural – talvez a mais influente de todas as teorias científicas – veio a público por meio de uma nota lida em uma reunião da Sociedade Lineana de Londres, em 1/7/1858. Intitulada “Sobre a tendência de espécies formarem variedades; e sobre a perpetuação de variedades e espécies por meios naturais de seleção”, a nota continha material elaborado de modo independente pelos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913).
O impacto e a repercussão das ideias ali contidas – as quais, posteriormente, passariam a caracterizar o que veio a ser chamado de “darwinismo” (para detalhes e comentários adicionais, ver, neste Observatório, o artigo “Um lugar na história”) –, só começaram a ganhar força, no entanto, a partir do ano seguinte, com a publicação do livro A origem das espécies, de Darwin.
Origem e evolução de A origem das espécies
A primeira edição de A origem das espécies foi lançada publicamente em 24/11/1859. Todos os exemplares colocados à venda (ca. 1.170, dos 1.250 que foram impressos) logo foram adquiridos. Dois meses depois foi lançada uma segunda edição; outras quatro apareceriam ao longo dos 12 anos seguintes: 1861 (3ª edição), 1866 (4ª), 1869 (5ª) e 1872 (6ª). Em 1876, foi publicada uma “sexta edição, com acréscimos e correções em relação a 1872”, abrigando aquele que é tido como o texto final da obra. Todas as edições foram publicadas pela centenária editora londrina John Murray.
Darwin fez ajustes em todas as edições, ora introduzindo, ora removendo material. Nesse processo, o conteúdo aumentou e a obra literalmente evoluiu. O texto principal da primeira edição, por exemplo, se estende por aproximadamente 690 parágrafos, arranjados em 14 capítulos e uma introdução; já o material da última edição se estende por cerca de 850 parágrafos, arranjados em 15 capítulos e uma introdução (para uma comparação detalhada, ver PECKHAM 1959; para comentários e detalhes adicionais, ver aqui).
Apesar desse aumento no conteúdo (ca. 23%), a obra “encolheu”. Isso só foi possível porque houve uma redução no tamanho do tipo usado para imprimir o texto, de tal modo que a sexta edição tem menos páginas que a primeira. Para satisfação de Darwin, o livro também se tornou mais acessível: o preço caiu, passando de 15 xelins, em 1859, para pouco mais de 7 xelins, em 1872 (ver DESMOND & MOORE 2000).
Por fim, o título foi ligeiramente alterado. Na última edição, o “Sobre” (“On”, no original) foi trocado por “A” (“The”), de sorte que o título mudou de Sobre a origem das espécies, em 1859, para A origem das espécies, em 1872 – o título completo da primeira edição era Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural, ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida.
A primeira edição brasileira: um mau começo
Edições correspondentes em alemão, francês, neerlandês, russo, italiano e sueco apareceram quase que simultaneamente. Darwin se preocupava com a divulgação de suas ideias e, por conta disso, costumava se corresponder com editores e tradutores. A primeira edição em português, no entanto, só foi publicada depois de sua morte; e, embora a divulgação do darwinismo entre nós tenha sido quase que imediata (e.g., COLLICHIO 1988), os leitores brasileiros tiveram de recorrer a exemplares importados durante mais de um século.
Salvo melhor juízo, a primeira edição brasileira foi publicada pela editora Hemus, em 1973. (Os exemplares impressos antes de 1979 não traziam, ao que parece, uma indicação do ano de publicação.) Não foi um bom começo: como se não bastasse o longo e absurdo atraso, essa primeira edição (a partir da qual surgiriam depois várias derivações) foi o resultado de um ato de pirataria. A editora brasileira simplesmente reproduziu, em meio a uma maquiagem malfeita, o mesmo texto ruim que havia sido originalmente publicado pela centenária editora portuguesa Lello & Irmão, nas primeiras décadas do século 20. A versão da Hemus foi atribuída a “Eduardo [Nunes] Fonseca”, um nome forjado apenas para disfarçar a apropriação do texto da editora portuguesa.
A versão da Lello foi traduzida pelo professor e médico português Joaquim [Marques] Dá Mesquita [Montenegro] Paúl (1875-1946). O trabalho teria sido concluído e publicado em 1913. (Nunca tive acesso a um exemplar dessa obra. Semanas atrás, escrevi a uma funcionária da Lello, na esperança de saber exatamente quando a tradução foi concluída e quando o livro foi publicado, mas ainda não obtive resposta.) O tradutor português, sem poder ou sem querer consultar a sexta edição original (1872), teria usado como fonte uma versão francesa correspondente. Isso ajudaria a explicar a presença de tantos erros, mal-entendidos e escolhas ruins, a ponto de transformar a sua versão em uma caricatura da edição inglesa.
Havia, já naquela época, uma variedade de alternativas. Ainda durante o tempo de vida de Darwin, três diferentes nomes se envolveram com a tradução de A origem das espécies para o francês. A primeira foi Clémence-Auguste Royer (1830-1902), que traduziu a 3ª edição inglesa, publicada em francês sob o título Sobre a origem das espécies, ou das leis do progresso entre os seres organizados (De l’origine des espèces, ou des lois du progès chez les êtres organisés), em 1862 (republicada em 1866 e 1870), acrescentando ao texto original um longo (e polêmico) prefácio de sua autoria, além de inúmeras notas de rodapé. Em seguida, tivemos Jean-Jacques Moulinié (1830-1872), que traduziu a 5ª edição inglesa, publicada agora sob o título A origem das espécies por meio da seleção natural, ou a luta pela existência na natureza (L’Origine des espèces au moyen de la sélection naturelle, ou La lutte pour l’existence dans la nature), em 1873. Por fim, Edmond Barbier (1834-1880), que traduziu a 6ª edição inglesa, publicada com o mesmo título adotado por Moulinié, em 1876. Entre 1862 e 1883, os franceses produziram nada menos do que oito edições do livro de Darwin (para detalhes e comentários adicionais, ver STEBBINS 1988).
A proliferação de um erro
A referida tradução de Joaquim Dá Mesquita Paúl caiu em domínio público e está disponível para captura gratuita em alguns sítios eletrônicos (e.g., aqui) [arquivo com cerca de 2,4 Mb]). A propósito, ainda no âmbito da internet, a editora portuguesa Planeta Vivo recentemente colocou à disposição dos visitantes do seu sítio uma edição própria (ver aqui), ainda que, nesse caso, os interessados tenham também a opção de adquirir o livro impresso. Trata-se de uma edição lançada em 2009, cujo texto corresponde ao da 6ª edição inglesa, com “acréscimos e correções”, de 1876. A tradução é atribuída a Ana Afonso. (Embora a minha pretensão inicial fosse avaliar apenas as edições brasileiras em meio impresso, alguns dos inúmeros problemas encontrados nessas duas versões portuguesas também serão ilustrados e discutidos em um próximo artigo.)
Em meio impresso, a versão da Hemus(ou a própria edição da Lello) deu origem a uma série de derivações, incluindo as seguintes (para detalhes e comentários adicionais, ver postagem “Miséria pouca é bobagem”, de Denise Bottmann, publicada no blogue Não gosto de plágio, em 30/10/2009): Ediouro (1987); Hemus/Novo Século (2000); Martin Claret (2001), em tradução atribuída a “John Green”, nome fictício para um tradutor inexistente (para comentários e detalhes adicionais, ver postagem “João Verde”, de Denise Bottmann, publicada no blogue Não gosto de plágio, em 9/7/2010); Madras(2004), em tradução atribuída a Caroline Kazue Ramos Furakawa, ex-funcionária da editora e que, posteriormente, teria tomado providências judiciais contra o uso indevido de seu nome; Leopardo/Hemus (2009) e, por fim, Levoir/Folha de S.Paulo (2010), esta última muitas vezes atribuída (erradamente) à Publifolha.
Todas ou quase todas essas edições foram recolhidas ou, de algum outro modo, já estão fora do mercado. Cabe, no entanto, a pergunta: como foi possível que edições espúrias, frutos da pilhagem do trabalho de terceiros, permanecessem tantos anos em circulação, não apenas espoliando financeiramente os consumidores, mas, sobretudo, os engabelando intelectualmente? A maior parte da resposta tem a ver, evidentemente, com a má-fé ou o despreparo do pessoal responsável pela publicação das obras (i.e., funcionários e proprietários das editoras), ainda que a inexperiência ou a desinformação de jornalistas que cobrem esse tipo de pauta também possa ter contribuído. Afinal, a imprensa é perfeitamente capaz de induzir (deliberadamente ou não) o leitor a comprar “gato por lebre”. Por exemplo, quando chama o produto de uma pilhagem de “grande novidade editorial” – ver a matéria “Roupa nova para um clássico da ciência”, de Aline Gatto Boueri, publicada na Ciência Hoje On-line, em 6/8/2004.
Os anos 80
Nos últimos trinta anos, diferentes editoras já lançaram por aqui ao menos outras cinco edições da obra. Teríamos, assim, seis versões, uma espúria (a da Hemus, correspondente à 6ª edição original) e cinco legítimas. Das cinco edições legítimas, quatro correspondem à 6ª edição (1872) e uma, à 1ª edição (1859).
Em 1982, foi publicada no país a primeira edição legítima de A origem das espécies. A iniciativa foi da editora Melhoramentos, em uma coedição com a Editora da UnB. O texto foi traduzido para o português por Aulyde Soares [Rodrigues].
Havia, contudo, uma séria limitação: a edição não trazia o texto integral – tratava-se de uma versão condensada da 6ª edição (1872), mas esse, evidentemente, era um problema da obra original. Intitulada The illustrated Origin of Species, a obra foi publicada pela editora londrina The Rainbird Publishing Group, em 1979. O trabalho de condensação ficou a cargo de Richard Leakey (nascido em 1944), filho dos renomados paleoantropólogos britânicos Louis (1903-1972) e Mary Leakey (1913-1996), e ele próprio um nome bastante badalado na época.
Além de selecionar os trechos para publicação, Leakey escreveu uma longa introdução (35 páginas, o equivalente a quase 15% do total) e algumas notas explicativas ao longo do texto. Os cortes e as supressões de frases e parágrafos reduziram o texto a menos de dois terços do tamanho original. (Os 850 parágrafos do texto principal, por exemplo, foram reduzidos a 560. O percentual de parágrafos suprimidos, no entanto, variou de acordo com o capítulo, desde 5% a mais de 60%.)
Em 1985, os leitores brasileiros finalmente foram expostos a uma edição legítima e integral de A origem das espécies. A obra, publicada pela editora Itatiaia/Villa Rica, inicialmente em uma coedição com a Edusp, foi também a primeira e até agora única edição brasileira correspondente à primeira edição inglesa (1859). O livro vem sendo reimpresso e continua disponível para compra (a quinta e mais recente reimpressão, agora apenas pela editora Itatiaia, apareceu em 2012). O texto foi traduzido por Eugênio Amado.
Edições mais recentes
O bicentenário de nascimento de Charles Darwin e os 150 anos de publicação da primeira edição de A origem das espécies foram comemorados em 2009. Em termos acadêmicos, muita coisa aconteceu mundo afora – para ilustrar o que estou dizendo, eis uma pequena lista de obras valiosas (todas ou quase todas voltadas também para o leitor não especializado) que apareceram naquele ano (os nomes antecedidos por um asterisco indicam autores de obras que já foram publicadas no país): *BONNER 2009, BOWLER 2009, COCHRAN & HARPENDING 2009, COYNE 2009, FOSTER & KREITZMAN 2009, FROMM 2009, GODFREY-SMITH 2009, HRDY 2009, LANE 2009, REISS 2009, *RUSE & TRAVIS 2009, SAPP 2009, *WARD 2009, YOON 2009 e *ZIMMER 2009.
Por aqui, naquele ano (coincidente ou deliberadamente), a editora Escala/Larousse publicou uma edição própria de A origem das espécies. Infelizmente, porém, essa obra, correspondente à 6ª edição inglesa (1872), teve uma vida breve e conturbada – ao que parece, por desavenças internas. O livro está fora do mercado, sendo, por isso mesmo, relativamente difícil de encontrar. Para esta pesquisa, eu só tive acesso a uma pequena amostra de páginas, enviadas como imagens pelo correio eletrônico, algumas por uma colega que possui um exemplar, outras por uma funcionária da editora. O texto foi traduzido por André Campos Mesquita.
Mais recentemente, apareceram duas novas edições, ambas publicadas por editoras, Madras e Martin Claret, que já estiveram envolvidas com a publicação de edições espúrias – a primeira, com a sua edição de 2004; a última, com a sua edição de 2001. Dessa vez, porém, não há evidências de plágio.
Em 2011, a Madras lançou uma edição própria, correspondente à 6ª edição inglesa (1872). O texto foi traduzido por Soraya Freitas. Em 2014, a Martin Claret fez a mesma coisa, em tradução atribuída a Carlos e Anna Duarte.
Não custa repetir: a edição (legítima) publicada pela Madras em 2011 (Madras 2) nada tem a ver com a edição (espúria) de 2004; de modo semelhante, a edição (legítima) recém-lançada pela Martin Claret (Martin Claret 2), nada tem a ver com a edição (espúria) de 2001. Nesse sentido, as novas edições são bem-vindas.
Legítimas sim, fidedignas nem tanto
Cabe ressaltar, no entanto, outro aspecto de toda essa história: nem toda tradução legítima (no âmbito deste artigo, uma obra cujo texto foi efetivamente traduzido para o português pelo sujeito cujo nome aparece nos créditos) abriga um conteúdo fidedigno (i.e., um conteúdo que reflita e corresponda ao original).
Mais de um fator pode contribuir para isso. Um deles seria um trabalho de tradução malfeito, sobretudo por causa das escolhas ruins adotadas pelo tradutor, incluindo a introdução de erros e mal-entendidos na versão em português – em artigo neste Observatório (ver “A hélice quebrada”), chamei a atenção para um caso recente que possivelmente se enquadra nessa categoria. Um segundo fator, particularmente comum no caso de obras antigas, é a tentativa feita por alguns tradutores de “atualizar”, “modernizar” ou “interpretar” o texto original. O resultado disso pode ser desastroso.
Em maior ou menor extensão, esses problemas (i.e., proliferação de erros, mal-entendidos e escolhas ruins) afetam (além do aceitável, eu diria) todas as seis edições brasileiras mencionadas neste artigo. Em uma próxima oportunidade, pretendo exemplificar e discutir detalhadamente esta minha afirmativa.
Referências citadas
BONNER, J. T. 2009. The social amoebae. Princeton, Princeton University Press.
BOWLER, P. J. 2009. Evolution: The history of an idea, 20th anniversary edition. Berkeley, University of California Press.
COCHRAN, G. & HARPENDING, H. 2009. The 10,000 year explosion: How civilization accelerated human evolution. New York, Basic Books.
COLLICHIO, T. A. F. 1988. Miranda Ribeiro e o darwinismo no Brasil. Belo Horizonte & São Paulo, Itatiaia & Edusp.
COYNE, J. 2009. Why evolution is true. New York, Viking Press.
DESMOND, A. & MOORE, J. 2000 [1991]. Darwin: A vida de um evolucionista atormentado, 3ª edição. São Paulo, Geração Editorial.
FOSTER, R. & KREITZMAN, L. 2009. Seasons of life: The biological rhythms that enable living things to thrive and survive. New Haven, Yale University Press.
FROMM, H. 2009. The nature of being human: From environmentalism to consciousness. Baltimore, Johns Hopkins University Press.
GODFREY-SMITH, P. 2009. Darwinian populations and natural selection. New York, Oxford University Press.
HRDY, S. B. 2009. Mothers and others: The evolutionary origins of mutual understanding. Cambridge, Belknap Press.
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PECKHAM, M., ed. 1959. The Origin of Species by Charles Darwin: A variorum text. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.
REISS, J. 2009. Not by design: Retiring Darwin’s watchmaker. Berkeley, University of California Press.
RUSE, M. & TRAVIS, J., eds. 2009. Evolution: The first four billion years. Cambridge, Belknap Press.
SAPP, J. 2009. The new foundations of evolution: On the tree of life. New York, Oxford University Press.
STEBBINS, R. E. 1988. France. In: Glick, T. F., ed. The comparative reception of Darwinism. Chicago, The Chicago University Press.
WARD, P. D. 2009. The Medea hypothesis: Is life on Earth ultimately self-destructive? Princeton, Princeton University Press.
YOON, C. K. 2009. Naming nature: The clash between instinct and science. New York, WW Norton.
ZIMMER, C. 2009. The tangled bank: An introduction to evolution. Greenwood Village, Roberts and Company Publishers. (Uma segunda edição foi publicada em 2013.)
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)