Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Futebol arte

A supercâmara lenta utilizada na transmissão da Copa do Mundo, capaz de dissecar qualquer lance e expor detalhes da movimentação da musculatura dos jogadores, não chega a ser tão impressionante para quem frequentou o cinema entre as décadas de 1960 e 1980, época em que a exibição de um determinado cinejornal era tão (ou mais) aguardado que o filme que viria a seguir – entre 1959 e 1986, o Canal 100 mostrou a construção de uma nova estética no modo de filmar o futebol, aproximando-a da verdadeira arte.

É o que pretende provar Canal 100 – Uma Câmera Lúdica, Explosiva e Dramática, livro fartamente ilustrado, com textos e organização de Claudia Pinheiro e Carla Niemeyer, lançado agora pela DoisUm Produções. Trata-se de um grande apanhado fotográfico de um cinejornal que, no entender de seu editor-chefe, Carlos Leonam, dividiu a história do cinejornalismo no Brasil.

De fato, criado em 1959 por Carlos Niemeyer (1920-1999), o Canal 100 adotou um formato usado por americanos e europeus, mas tornou-o essencialmente brasileiro ao eleger o futebol como seu carro-chefe. Assim, ainda que retratasse momentos decisivos da história contemporânea brasileira (desde a inauguração de Brasília até os comícios pelas Diretas, passando por shows tropicalistas, bossa-novistas e ainda as modificações arquitetônicas do Rio), o ponto alto do Canal 100 era a forma inédita como exibia uma partida de futebol.

Niemeyer não queria aborrecer o espectador, especialmente aquele que havia assistido à partida no estádio. Assim, inovou ao filmar os lances em câmera lenta, o que permitia observar detalhes inacessíveis mesmo para quem tinha visto a reprise do jogo na televisão. Para isso, ele usou câmeras teleobjetivas de 400 a 600 mm, aparelhagem que nenhuma TV então sonhava utilizar.

Como só boas máquinas não bastavam, Niemeyer contou ainda com uma afiada equipe de cinegrafistas, formada por Francisco Torturra, Liercy de Oliveira e João G. Rocha. A princípio, o grupo filmava os principais jogos do campeonato carioca, no início dos anos 1960. Em pouco tempo, já acompanhava também a seleção brasileira.

Em 1966, com o sucesso consolidado, o Canal 100 alargou fronteiras e passou a cobrir Copas, começando naquele ano na Inglaterra. Em 1970, garantindo ao então ministro da Fazenda, Delfim Netto, que o Brasil seria campeão no México, conseguiu patrocínio da Caixa Econômica Federal.

Com o título conquistado (e as contas acertadas), Niemeyer decidiu reunir seu material de arquivo (em preto e branco) com as imagens colhidas no México (coloridas) e produziu o documentário Brasil Bom de Bola, que bateu recorde de bilheteria. Na Copa de 1974, na Alemanha, repetiu a dose e o material captado resultou no documentário Futebol Total, dirigido por Oswaldo Caldeira.

Mas o templo sagrado de Niemeyer era o Maracanã, especialmente nos embates do mais famoso clássico estadual do Brasil: o Fla x Flu. Flamenguista doente, Niemeyer (que era primo do famoso arquiteto) distribuía sua equipe no estádio em pontos estratégicos. Queria ângulos novos e procurava transmitir a emoção das partidas.

Posicionava duas câmeras no fosso do estádio e outra nas cadeiras especiais. O técnico de som ficava na arquibancada. Os cinegrafistas caprichavam no close dos jogadores, pois Niemeyer sabia que o futebol é um drama disfarçado de esporte e as expressões faciais dos atletas tinham tanta importância quanto seus dribles.

"As lentes do Canal 100 eram capazes de salvar um partida. O que em campo não havia empolgado era trabalhado com uma bem-sucedida montagem e sonoplastia, tornando as tomadas significativas e interessantes", observa o jornalista João Luiz de Albuquerque.

Não satisfeito, Niemeyer pedia que também se filmassem os torcedores. "A grande intuição de Niemeyer foi entender que o drama da partida não estava só no campo, mas também no espectador", observa João Moreira Salles, em depoimento publicado no livro. “Ele foi o primeiro a desviar a câmara para o público. Para o torcedor com o radinho vendo o jogo do Flamengo. Ali, ele construía uma pequena narrativa, uma pequena história de alguns minutos."

Logo, o Canal 100 tornou-se obrigatório para fãs. Bastava a tela do cinema se encher de bolinhas coloridas e surgirem os acordes da música “Na Cadência do Samba”, de Luiz Bandeira, para qualquer sala escura se transformar em arquibancada.

As imagens empolgavam também torcedores ilustres, como o tricolor Nelson Rodrigues. "Foi o Canal 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol", escreveu.

Em 1986, com o fim da obrigatoriedade de exibição de cinejornais antes dos filmes, o Canal 100 ouviu o apito final. Ficaram mais de 1.300 edições, cujo exemplo de qualidade pode ser admirado no DVD que acompanha o livro, com dez reportagens.

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'Que Bonito é!' foi a trilha sonora de uma geração

Luiz Carlos Merten

Quem assiste hoje a Galvão Bueno criar frases de efeito nas transmissões da Globo não faz ideia do que era o Canal 100 de Carlos Niemeyer. Espectadores dos mais distantes rincões do Brasil sabiam que era um bon vivant, amante do futebol – 'menguista' doente. Mas, nos anos 1960, foi ele à frente de sua equipe de cinegrafistas, que mudou o olhar de toda uma geração de brasileiros sobre o cinema. O futebol já era o esporte nacional preferido e o fantasma de 1950 – a derrota contra o Uruguai no Maracanã – já fora relegado ao passado. O Brasil ganhara as Copas de 1958 e 60, mas o futebol-arte, efêmero nas jogadas de Pelé e Garrincha, só era eternizado pelo cinema, e pelo Canal 100.

Nos anos 1960, quando a TV começava a conquistar o Brasil, ninguém conhecia as emissoras pelo nome. Era pelos números, e por isso mesmo surgiu a ideia de batizar o cinejornal como Canal 100.

Todo domingo, nas matinês de todo o País, garotos e adultos esperavam pelo noticiário de Carlos Niemeyer, que, às vezes, parecia mais importante que o próprio filme. E não era só noticiário esportivo. Canal 100 passeava pela sociedade carioca. Mostrava inaugurações de galerias, documentava exposições importantes.

Como você não sabe quem eram Teresa Souza Campos e Lourdes Catão? Eram as grandes socialites da época, mas ninguém olhava direito para o noticiário – que durava em torno de 11 minutos – senão quando se ouviam os acordes de Na Cadência do Samba, de Luiz Bandeira. Teve gente que nunca soube o nome da música nem do compositor, porque os acordes eram conhecidos como Que Bonito É! E que bonito era o futebol do Canal 100. Qualidade da imagem, plasticidade do esporte – e muita inventividade.

Normalmente, Carlos Niemeyer explicou depois, os jogos eram filmados com três câmeras, mas dependendo da importância elas chegavam a oito. E havia a equipe de cinegrafistas, que era sempre engrossada em jogos decisivos, como as Copas. Jorge Aguiar foi quem criou a tomada que virou a marca registrada do Canal 100. Ele teve a ideia de colocar a câmera atrás do gol e usar a teleobjetiva para seguir a dança das pernas dos jogadores. Viam-se somente as pernas, em jogadas que invariavelmente resultavam em gols. As pernas tortas de Garrincha eram, obviamente, as mais fáceis de identificar.

Canal 100 abastecia o Brasil inteiro com cinejornais, e Carlinhos dizia que não foi, como se pode pensar, o início das transmissões de jogos pela TV que matou o seu programa. A disputa pelo espaço nos cinemas, envolvendo produtores e até diretores, acabou com o Que Bonito É. Mas foi bonito, e como!, enquanto durou. Carlos Niemeyer calculava haver filmado cerca de 1.500 jogos.

E, claro, todo mundo lhe perguntava sempre qual o mais belo gol do Canal 100. Sua resposta sempre a mesma – foi um gol que não houve, de Pelé. Na Copa de 70, no México, Pelé driblou o goleiro do Uruguai, a bola veio, ele girou o corpo, o goleiro veio em cima dele, a bola passou. Teria sido um gol prodigioso, mas não faz mal. As centenas, milhares de gols do Canal 100 até hoje são eternos para quem teve o privilégio de vê-los. Que bonito foi!

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Ubiratan Brasil e Luiz Carlos Merten, do Estado de S.Paulo