Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Lira Neto encerra sua trilogia

Último volume cobre desde a deposição do ex-presidente em 1945 até sua morte, em 1954; filme também retrata com emoção seus momentos finais Um dos mais famosos disparos de revólver da história do Brasil completa 60 anos no dia 24. Naquela manhã de 1954, às 8h35, um barulho seco ecoou no Palácio do Catete, no Rio, então sede do governo federal. Familiares correram assustados para o quarto do presidente Getúlio Vargas, encontrado deitado, com meio corpo para fora da cama. No pijama, à altura do coração, borbulhava uma mancha vermelha de sangue. Um revólver estava caído próximo à sua mão direita.

“Não foi um suicídio, mas uma autoimolação”, atesta o jornalista Lira Neto, que lança nesta semana o terceiro e último volume da biografia do mais carismático presidente brasileiro, justamente a edição que trata da deposição do ditador, em 1945, até sua morte, nove anos depois, passando pelo ocaso político no Sul e vitória triunfal na eleição de 1950. “Getúlio sabia o impacto que esse gesto extremo provocaria: uma tal comoção popular que anularia os adversários. Foi exatamente o que aconteceu. A desmoralização pública se voltou contra os rivais. O gesto consolidou o mito, construído desde 1930.”

Durante cinco anos, Lira se ocupou da tarefa de reconstituir todos os passos do político gaúcho para um ambicioso projeto que rendeu os três volumes publicados pela Companhia das Letras. Para a dedicação exclusiva, contou com adiantamentos garantidos pela editora, além dos frutos de um contrato com a RT Features, produtora que comprou os direitos para cinema e TV antes mesmo que Lira tivesse escrito a primeira linha. “Foi graças a isso que pude contratar pesquisadores, realizar viagens de trabalho, adquirir material bibliográfico e digitalizar todas as fontes de pesquisa que julguei necessárias”, garante.

A empreitada, de fato, foi enorme – Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) foi um político singular. Filho de uma família típica da oligarquia gaúcha do final do século 19, época marcada pelo caudilhismo, ele desenvolveu uma personalidade política ardilosa, que o levou a comandar a Revolução de 30 até chegar ao poder do País, implantando uma ditadura em 1937. Deposto em 1945, voltou cinco anos depois pelo voto popular, terminando drasticamente seu mandato, sob uma crise que o levou ao suicídio em 1954.

O planejamento seguiu regras bem definidas, que só foram modificadas na pesquisa para o terceiro volume. Felizmente – “Eu já tava com a redação do segundo livro quase toda concluída quando, em conversa com Celina, neta de Getúlio, descobri que havia um imenso volume de cartas trocadas entre o político e sua filha, que se revelou um verdadeiro tesouro”, conta. “Por conta disso, modifiquei meus planos para o terceiro livro.”

De fato, a correspondência trocada entre Getúlio e Alzira Vargas do Amaral Peixoto entre 1945 e 1950, a fase do “retiro” do ex-ditador em São Borja, compreende exatas 1.652 páginas. Era um material que Alzira pretendia utilizar em seu segundo volume de memórias, mas continuou inédito. “Isso mudou meu plano original, pois pensava em passar batido pelos período em São Borja, pela ausência de uma documentação que narrasse os detalhes desse exílio”, comenta Lira.

Com acesso aos documentos, o biógrafo conseguiu destrinchar as articulações políticas que permitiram a Getúlio retornar em 1950 para disputar a eleição presidencial. “O material possibilitou ainda delinear o cotidiano do ex-ditador no Sul, o que lia, comia, a forma como administrava a fazenda, ou seja, sua intimidade.”

É importante lembrar que Alzira não era uma mera confidente. Filha predileta de Vargas, foi eleita sua secretária particular pela apurada visão política que detinha da realidade. “Ela era muito bem articulada – suas análises políticas eram lúcidas e é evidente sua participação intelectual nas atitudes do pai, mesmo quando o contestava.”

É por meio das cartas, por exemplo, que certos fatos são desmistificados. Como a famosa entrevista de Getúlio realizada por Samuel Wainer, repórter dos Diários Associados, em fevereiro de 1949, em São Borja, aquela em que o ex-ditador fez um comentário positivo do brigadeiro Eduardo Gomes – ciente de que qualquer palavra do pai provocava verdadeira ebulição política no Rio de Janeiro às vésperas da eleição, Alzira combinara com membros da UDN, a União Democrática Nacional, partido criado para se opor justamente a Getúlio, a ida de um repórter dos Diários ao Sul, onde o ex-presidente elogiaria o brigadeiro. “Por mais insólito que isso pudesse parecer, a entrevista daria combustível à candidatura de Eduardo Gomes e embaralharia o jogo político, fortalecendo o argumento de que Getúlio seria a melhor opção em um cenário político desestruturado”, observa Lira.

O biógrafo apresenta também outra interessante análise para uma das mais importantes peças políticas da história brasileira: a carta testamento, encontrada em um envelope deixado na mesinha de cabeceira da cama de Getúlio, no Palácio do Catete. Como não sabia escrever à máquina, o presidente fez um esboço à mão, que foi datilografado – e, talvez, reescrito – por um ajudante de ordens, José Soares Maciel Filho.

“Uma leitura atenta comprova que não se trata de uma carta de um suicida, mas de alguém que pretende morrer lutando. Mas Getúlio habilmente deixou a possibilidade de análise para as duas situações, revelando uma frieza até em situações desesperadoras”, sustenta Lira.

O biógrafo não descreve os momentos antes do disparo, pois não havia testemunha, mas descreve, no final do livro, uma cena comovente: agonizante, Getúlio vagueia o olhar até fixar em Alzira. “Apenas um leve sorriso me deu a impressão de que ele havia me reconhecido”, escreveu ela, anos depois.

Linha do tempo – Do queremismo ao suicídio

>> 1945

29 de outubro – Getúlio Vargas é deposto por um movimento militar liderado por generais que compunham o próprio ministério.

2 de dezembro – O general Eurico Gaspar Dutra é eleito presidente. Getúlio já vive autoexilado em São Borja, no Rio Grande do Sul.

>> 1946

2 de fevereiro – Assume cadeira na Assembleia Nacional Constituinte como senador por dois Estados, Rio Grande do Sul e São Paulo.

>> 1950

3 de outubro – Getúlio elege-se presidente da República em 3 de outubro.

>> 1954

5 de agosto – Um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda provoca a morte do major Rubens Vaz. A guarda pessoal de Getúlio é apontada como autora do atentado.

22 de agosto – Generais do Exército elaboram manifesto pedindo a renúncia do presidente.

24 de agosto – Getúlio Vargas se suicida com um tiro no peito.

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Filme retrata emoção dos momentos finais

Luiz Carlos Merten

O terceiro volume da biografia de Getúlio Vargas por Lira Neto chega às livrarias ainda sob o impacto do filme de João Jardim, Getúlio, que chega em DVD no fim do mês. O filme aborda os últimos dias do ex-presidente, sitiado no Palácio do Catete. O livro cobre de 1945 até o suicídio, em 1954. “Saio da vida para entrar na História…” Getúlio entrou. É um dois mais emblemáticos personagens da história do Brasil.

O ex-ditador que voltou ao poder democraticamente repete no filme que rasgou duas Constituições e não rasgaria a terceira. Muitos críticos reclamam do grande tema. Não entenderam nada. Ao concentrar a tragédia de Getúlio em poucos dias, João Jardim retoma seu tema da palavra e tenta iluminar momentos controversos da história do País.

Tanto Lira Neto quanto George Moura, o roteirista de João Jardim, fizeram acurados trabalhos de investigação, mas eles não bastam. Existem relatos contraditórios, do próprio Carlos Lacerda sobre o atentado da Rua Toneleros. E o que dizer do suicídio, que não teve testemunhas? Em ambos os casos, João Jardim preenche com a ficção o que a documentação (incompleta) não lhe permite entender.

Quem leu os dois primeiros volumes da biografia de Getúlio vai concordar que os livros não iluminam só o personagem, mas a própria História do Brasil. E o filme é maravilhoso, um grande thriller político. Quem é mais fiel, Lira Neto ou George Moura/João Jardim? Não importa, ou melhor, o que importa é que ambos tentam decifrar o enigma do homem e do político.

O leitor imagina Getúlio, com base na iconografia oficial. O espectador vê Tony Ramos, tão perfeito no papel, que nem o próprio Getúlio desfaz a mágica. São obras sérias, o filme como o(s) livro(s). Nos permitem entender como 1954 (o suicídio) antecipou 1964 (o golpe). A fórmula “leia o livro, veja o filme” nunca foi mais acurada.

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Ubiratan Brasil e Luiz Carlos Merten, do Estado de S.Paulo