Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Boa crônica, uma fisgada dupla

Desde que não espirre sangue e não haja gravidade para a saúde de ninguém, adianto logo a ressalva para uma maldade que confessarei após os dois pontos: quando estou perto de político em qualquer evento público, sempre torço para que algo escape ao planejado e cause algum embaraço a ele.

Desfile de aniversário da cidade, por exemplo. Fico a rezar, fininho, mas com a fé de dona Zenaide, para surgir um bêbado e lançar ao palco, aos brados, pelo menos metade daquilo que sobre os políticos é dito lá no Bar do Tatado.

Minha súplica não é tanto pelo prazer de ver cerimonialistas em correria pânica, é mais para testar a reação dos políticos ao inesperado. A rotina deles, definida pelo pessoal do marketing, está muito esquematizada, falsa, sem graça. Segundinhos de espontaneidade podem nos dar a chance de conhecer mais um homem público que horas e horas de aparições protocolares. Vejo um político e meu terno coração pede logo: vida real, vida real, vida real… Ademais, se o tal for sagaz, pode se beneficiar com lances imprevistos.

“Efeito Caramuru”

Sancti Spíritus, Cuba, 26 de julho, data-mor da revolução lá na ilha. Numa praça lotada, falava Fidel Castro. Falava, não, entorpecia o povo com sua hipnótica lábia anticapitalista. Tudo era silêncio e concentração, até o mar procurava jeito menos ruidoso de bater nas pedras, mas o relógio de uma igreja ousou interromper o Comandante, inundando o lugar com um potente blém, blém, blém. Fidel Castro vacilou um segundo e retomou o discurso, faturando com as badaladas: “É chegada para os povos a hora de tomar nas mãos o seu destino”.

Eu não estava lá, não vi nem escutei. Quem diz ter presenciado essa cena é o escritor Humberto Werneck, mineiro em São Paulo radicado. O caso está em “Nas Barbas da Multidão”, uma das 54 crônicas que compõem Sonhos Rebobinados, que ele acaba de lançar pela Arquipélago Editorial – e mui cortesmente me presenteou com um exemplar, já lido, gostado e agora recomendado.

Cronista bom de ler, dominador da arte de bem dosar o humor, Humberto Werneck nos enfia com tal competência em seus textos que, depois do ponto derradeiro de suas melhores crônicas, continuamos no assunto dele, buscando acréscimos, fazendo comparações, sondando outras possibilidades.

Em “Xará de Coisa”, do citado livro, ele discorre sobre pessoas cujo nome significa algo: Lúcio e Beatriz são peixes; Guilherme, ferramenta; Mônica, variedade de mandioca. São muitos os exemplos dados pelo autor, aos quais somo Belchior, que dá nome ao cantor bigodudo, a um dos reis magos e também significa mercador de objetos velhos.

Na crônica “O Nhenhenhém dos Funhanhados”, o assunto de Humberto Werneck é o que ele chama de Efeito Caramuru, “recurso diabólico que consiste em sacar esquisitices verbais para acuar o adversário numa discussão”. Todos os exemplos citados são da política. “Anfótero” e “hotentote”, disparou Itamar Franco contra Fernando Henrique Cardoso. Ulysses Guimarães é um “bonifrate”, acusou Fernando Collor. “Boquirroto”, disse do paraibano José Américo de Almeida o mineiro Benedicto Valladares.

Fim de papo

Essa prosa me trouxe à memória a inusual e saborosa palavra que Getúlio Vargas lançou ao conhecer o conteúdo do Manifesto dos Mineiros, documento de oposição ao Estado Novo assinado por 92 mineiros, entre os quais três itabiranos: Luiz Camillo de Oliveira Netto, Feliciano Penna e Daniel de Carvalho. “Coisa de leguleios em férias”, disse o gaúcho. Desdenhou verbalmente do protesto, com jeito de nem ligo, mas depois, registra a história, mandou demitir dos postos públicos os leguleios, digo, signatários.

Em “Suíte Tabagística”, Humberto Werneck confessa o fracasso de jamais ter conseguido fazer bolinhas com a fumaça que soltava da boca, quando fumava, e tenta nos convencer de uma façanha incrível até para um roteirista de filme de faroeste. Ele afirma que já deu um teco num toco de cigarro, para descartá-lo, e a guimba, após ricochetear num muro, caiu em pé na calçada.

Após ler essa marra, convoco dois homens para o fim de papo. Fernando Sabino: para quem, crônica é a “busca do pitoresco e do irrisório no cotidiano de cada um”; e Geraldo Caldeira, ou Diabo Louro: meu tio, famoso pescador em Santa Maria de Itabira, que vive tentando convencer todo mundo de que já tirou do outrora piscoso rio Tanque, simultaneamente, com um anzol só, uma traíra e um mandi, numa mágica fisgada dupla.

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Marcos Caldeira Mendonça é jornalista, editor d’O TREM Itabirano