Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Como uma ‘fashion week’ literária

Em 1873, Machado de Assis escreveu um dos seus melhores artigos: “O instinto de nacionalidade“. O texto, ainda hoje atualíssimo em seu corpo de ideias, mostra o amadurecimento e a formação da identidade literária brasileira a partir das bases construídas por autores do século 19. Machado indica que é na essência nacional e no domínio do idioma que reside a independência da literatura de qualquer país. A visão de Machado sobre o papel do escritor é de tamanha e paradoxal contemporaneidade que nos permite estabelecer um diálogo atemporal através de comentários.

Machado de Assis – Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há de negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro.

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabelecendo doutrinas absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.

Relendo as considerações de Machado, quase podemos acreditar que a nossa literatura ficou estagnada no estágio da adolescência, poucos passos lançamos à frente, breve foi o leque que se abriu. Não ultrapassaram um punhado de nomes os autores modernos que buscaram refletir nossas raízes e que se tornaram universais por serem genuinamente nacionais no uso da língua que decifra e espelha o ambiente e o seu tempo. A maioria dos jovens escritores brasileiros está empenhada em copiar fórmulas importadas e modismos temporários. Raros são as mudas de criatividade que brotam em terra tão árida. Alguns autores conseguem reverberar a ausência de identidade em pretensos romances existenciais vagos e supérfluos.

Machado de Assis – Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não a temos… A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura.

O velho e bom Machado toca numa ferida aberta. Já houve um período, nos meados do século 20, que cultivamos uma crítica atuante e especializada. Por coincidência, uma das fases mais fecundas da nossa literatura. Mas a crítica morreu e foi sendo substituída por um câncer incurável, o marketing literário. Saíram os críticos, entraram os resenhistas, que nada mais são do que leitores usados por autores e editores como massa de divulgação, não existindo neles critérios ou formação que os qualifiquem.

A violenta difusão dos best-sellers internacionais, acompanhada da redução do livro a um objeto comercial, faz com que iniciantes e jovens autores se subordinem ao que chamam de mercado editorial. A literatura brasileira está sendo colonizada pelos golpes implacáveis de um modelo que dita os temas, a linguagem e as cores que querem fazer predominar. Ao mercado não interessa a identidade, não existe identidade, não buscam a literatura como obra de arte. Na verdade, nem se empenham em formar leitores. O que interessa são as vendas, a necessidade do lucro imediato.

Machado de Assis – Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto; peca na intrepidez às vezes de expressão, na impropriedade das imagens, na obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvairia e se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza.

O que impressiona é que Machado escreveu este artigo em 1873 e se iniciarmos a leitura desconhecendo o nome do autor parecerá que estamos acompanhando uma análise sobre a presente paisagem literária. Novamente, constatamos que pouco evoluímos e estamos aceitando a colonização cultural imposta por um suposto mercado. Alguns escritores contemporâneos estão mais preocupados em ter suas obras traduzidas para o inglês do que receber o abraço dos conterrâneos. Há uma inversão de valores impulsionada pela fome da visibilidade, do sucesso e do dinheiro. Neste trem desgovernado é mais importante ser lido do que ler.

No redemoinho capitalista, os autores neófitos entregam-se à submissão, contratam consultores literários (alguns que vivem fora do Brasil) para aprenderem a escrever e estruturar romances de consumo descartável. Adotam uma linguagem pasteurizada, por ouvirem dizer que será mais fácil atingir maior quantidade de leitores, desprezam a qualidade em nome do alcance de um público mais vasto. O livro vai se transformando numa peça decorativa.

Os badalados jovens autores, lançados por grandes grupos editoriais, fazem questão de se rotularem como “jovens” (como se isso fosse algum selo de genialidade precoce), entregam as capas de seus livros a depoimentos e chancelas de escritores estrangeiros num patético esforço de ostentar prestígio.

No nosso acervo teatral, também parco de bons autores, tivemos na década de 80 um movimento cômico batizado de “Besteirol”. Às vezes, parece que o Besteirol se espalhou tardiamente por todo o campo literário nacional, fincando residência preferencial nos romances. No Besteirol que se estabeleceu nos romances não há humor, somente o eco trágico de quem não mais consegue expressar narrativas com a própria voz.

Machado de Assis – Não se leem os clássicos no Brasil… Não se leem, o que é um mal… Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum. Outra coisa que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso a glória, e não posso negar que é caminho de aplausos… Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.

Quem esteve na 23ª Bienal do Livro em São Paulo, em 2014, se deparou com o caos. Aquilo se parecia, muito mais com um camelódromo sem lei ou talvez com uma fashion week literária de deslumbrados, nunca com um encontro de escritores querendo compartilhar seus trabalhos. Uma calamidade.

Para a Bienal deste ano, só haveria salvação se Jesus a tivesse invadido e expulsado os vendilhões do templo.

Machado de Assis – Aqui termino esta notícia. Viva a imaginação, a delicadeza e força de sentimentos, graça de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro.

Resta-nos rogar que Machado não tenha sido um mero “bruxo” e que o tempo prove que ele também foi o “profeta” do Cosme Velho.

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Alexandre Coslei é jornalista