Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Impasses na leitura

A rápida disseminação das tecnologias de comunicação com a convergência digital poderá gerar impasses no aprendizado da leitura em algumas regiões do País. Visitei quatro comunidades na Floresta Amazônica e, como satélites levam até lá recursos avançados, como o Whatsapp, vi crianças de apenas quatro anos fazendo uso desse instrumento para se comunicar com parentes que estão distantes. Recorrem à mensagem de voz, pois ainda não estão alfabetizadas.

O problema é que esses meninos e meninas têm pouquíssimas ofertas de livros impressos, o que poderá impedir a maior intimidade com esse objeto e sua função, a leitura, no futuro. O acesso às tecnologias dissemina-se com velocidade – somos o terceiro país do mundo, atrás de Estados Unidos e Índia, com crianças acessando “smartphones” – enquanto a entrega de livros se faz de maneira ainda lenta. Em uma das escolas, no Núcleo Santa Helena do Inglês (foto), os livros de literatura de primeira à quinta série acabam de chegar. E estamos há menos de três meses do final do ano letivo.

A iniciação à leitura deve ser feita de maneira ampla, com os recursos do impresso e do digital compartilhados de maneira simultânea. Caminho para possibilitar maior inclusão digital, essencial para o desenvolvimento, mas sem perder de vista a aquisição do domínio dos atos de ler e escrever pelo viés tradicional, forma de sedimentar o conhecimento. Se o digital predominar, ou for exclusivo, poderemos não conseguir atrair as crianças para o universo impresso, pois, vamos concordar, o poder que a “tela de vidro” exerce – graças à interatividade, recursos de movimento e de voz – é muito maior.

Qualidade

As escolas visitadas localizam-se no Rio Negro. Uma na Área de Proteção Ambiental do rio, na margem esquerda; as outras, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do mesmo rio, à margem direita. Nelas, encontrei poucos livros destinados aos alunos dos primeiros anos do ensino básico. Na que mais oferta tinha, senti grande alegria ao identificar duas obras de qualidade. Uma escrita e ilustrada por Fernando Vilela, “O barqueiro e o canoeiro” (Scipione). A outra, de Octavio Paz, “O ramo, o vento” (Autêntica), com ilustrações de Tetsuo Kitora e tradução de Horácio Costa. Os dois livros tinham marcas de manuseio.

Identifiquei boa oferta de títulos nas escolas da sexta série ao terceiro ano do ensino médio. As bibliotecas – elas existem graças a convênios com a Fundação Amazônia Sustentável – ofereciam obras sofisticadas. Marcel Proust, Jorge Luís Borges, Machado de Assis, Oswald de Andrade, Graham Greene, entre outros. Volumes grossos, apenas com texto verbal. Infelizmente, não percebi marcas de manuseio neles. Sinal de uso rarefeito.

Volto a insistir que, para um livro despertar o interesse dos jovens – das cidades e das florestas – que já estão capturados pelas telas, será necessário insistir no envio/compra de obras em que o visual contenha atratividade. A competição com as telas exige o fortalecimento da junção do verbal com o visual. No caso do livro impresso, isso pode ser resolvido seja com a ilustração, seja com um projeto gráfico inteligente, para ficarmos nos recursos mais tradicionais da indústria editorial. Sem isso, aumenta o risco de deixarmos de consolidar leitores, pois o livro infantil há anos percorre tal caminho e o juvenil ainda não disseminou essa prática. Para enfatizar, conto-lhes que as escolas acima da sexta série são telepresenciais, com mediação em tempo real, portanto, os alunos ganham cada vez mais intimidade com tecnologias audiovisuais.

Intermedialidade

Nas teorias contemporâneas da comunicação, lidamos com o conceito de intermedialidade. Segundo Adalberto Müller, autor de “Linhas imaginárias: poesia, mídia, cinema” (Sulina), a partir dessa concepção, “o importante passa a ser o modo como as diferentes mídias (livro, cinema, tevê, rádio, internet, teatro, etc.) tematizam uma às outras, ou se fundem e/ou se imbricam como mídias isoladas ou como sistemas midiáticos, através de processos de citação, adaptação e hibridização”.

Apresento-lhes livro para crianças bastante inteligente e divertido adquirido há alguns anos, que expressa bem essa conjunção. Trata-se de “O menino que queria ser celular” (Melhoramentos), de Marcelo Pires e Roberto Laurert. Lançado em 2007, a ilustração parodia a forma gráfica de um celular, objeto desenhado na vertical, e conta peripécias de uma família às voltas com esse aparelho, cada vez mais central em nossas vidas. Tudo remete à tecnologia: os números, os sinais de operações matemáticas inseridos nos aparelhos, a tela em cor preta indicativa de pane. Soluções gráficas conjugadas à narrativa envolvente. Nela, os personagens Celula e Seu Lular entram em rede de celulares para ajudar um menino a enviar torpedos a pais de todo o mundo com avisos de que é divertido aproveitar a companhia dos filhos.

Mais do que a abordagem da questão tecnológica (de consequências culturais), o destaque nele se refere à aproximação entre as mídias. Os autores lançam mão da intertextualidade e da paródia ao citarem nos desenhos mecanismos de um celular. A mídia livro aproxima-se, assim, da mídia celular, em diálogo dos mais saudáveis para a leitura e conquista do leitor natural do mundo digitalizado. Penso que, nesse caso, o livro ajuda migrantes digitais tardios a entenderem alguns mecanismos que gerações mais jovens dominam rapidamente.

Paródia

Nos Estados Unidos, em 2011, foi lançado livro impresso adorável. Em formato de “tablet”, isto é, em capa dura cortada na horizontal, ele recebeu o título de “Goodnight iPad” (Blue Rider Press). Ann Droyd assinou o texto. Podemos supor que se trata de uma brincadeira, com o nome sendo traduzido para Andróide. Pois, na ficha catalográfica, apenas David Milgrim assume a autoria. Abaixo do título, um “mouse”, em formato, é claro, de rato, anuncia “uma parodia para a próxima geração”. O título e o balão de diálogo remetem a “Goodnight Moon”, clássico infantil norte-americano, lançado em 1947, por Margaret Wise Brown, com ilustrações de Clement Hurd. O livro, que na década de 1990 já tinha obtido a marca de mais de quatro milhões de exemplares vendidos, tem como personagens coelhos que se assemelham a humanos. E retrata o momento do mais jovem ir dormir. Com texto ritmado, ele se despede de objetos com um “goodnight” (boa noite) acrescido do nome do referido item. Quem ainda não conhece, caso tenha curiosidade, há uma versão animada, que já conquistou mais de um milhão de acessos (https://www.youtube.com/watch?v=9yu_g5x3ZoQ).

No livro atual, a família de coelhos está toda ultraconectada. Profusão de produtos eletrônicos interliga tudo e todos na casa. O coelho-garoto se despede deles com um “goodnight remotes, netfix, digital books, androides, plugs”, estabelecendo louca comunicação com o universo tecnológico que são as casas contemporâneas. Mas, no final, mamãe-coelho põe todos, inclusive os “gadgets”, para dormir e o objeto que serve ao recolhimento do garoto é um bom e tradicional exemplar impresso de “Goodnight Moon”.

Tenho sérias críticas a livros para crianças que terminam por fazer publicidade de algum produto ou companhia comercial. No caso do livro de “Ann Droyd”, contudo, são citados tantos objetos, softwares de diferentes companhias, que esse apelo publicitário perde força e a palavra iPad funciona como metonímia para significar toda a parafernália digital que nos rodeia. Mas, com certeza, em uma tradução para o português, solicitaria autorização para chamá-lo de “Goodnight tablet”. Isso evitaria o caráter de anúncio para a marca do produto.

Citei dois exemplos de livros em que a intermedialidade se faz radical. Eles demonstram que é possível o objeto livro sobreviver nesta era de convergências, desde que, no caso brasileiro, esse produto impresso chegue em quantidade aos mais distantes rincões do país. E, em qualquer lugar do planeta, seja elaborado de maneira atualizada. Isto é, produzido em diálogo com os recursos das diferentes mídias que seduzem leitores e ainda não leitores, habitantes das cidades e das florestas, todos seres conectados ou em via de se conectarem digitalmente.

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Graça Ramos é autora de A imagem nos livros infantis – caminhos para ler o texto visual (Autêntica), que ganhou o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil