Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As crônicas anônimas do escritor

Era para ser uma simples mesa de debates em homenagem a João Ubaldo Ribeiro, escritor e acadêmico da ABL morto em julho deste ano. Mas o evento literário ocorrido há duas semanas no Recôncavo Baiano acabou testemunhando uma “revelação” deliciosa sobre o autor – como se fosse a sua picardia literária, e não ele mesmo, imortal. Durante a mediação de um bate-papo na IV Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), na Bahia, o escritor Fernando Vita dividiu com a plateia um segredo que guardava dos tempos em que era repórter iniciante no Jornal da Bahia, no início dos anos 1960: era Ubaldo o autor de uma das colunas anônimas mais lidas do periódico.

Recém-fundado, o jornal de esquerda tinha na equipe de reportagem, além de Ubaldo, um jovem chamado Glauber Rocha. Considerado progressista, bancava artigos e colunas ousados para a época. Uma delas era a “Nossa cidade”, publicada diariamente, que, entre notícias corriqueiras de Salvador, trazia uma crônica muito bem-humorada, na qual um personagem batizado de Theóphilo ironizava problemas da cidade. Theóphilo inventava palavras, zombava das autoridades, propunha charadas ao leitor. Com muito sarcasmo, observava a eterna falta de troco dos comerciantes, a falta de luz nos postes públicos, a falta de ônibus em dias de chuva. Reclamava da infestação de “lacerdinhas” (mosquitos) e “bacurinhos” (porquinhos, em baianês) que se espalhavam pela capital.

Apesar de tanto estilo, a coluna não levava assinatura. Só quem trabalhava no periódico sabia a verdadeira autoria das cerca de 500 crônicas publicadas entre fevereiro de 1962 até princípios de 1964, tempo que durou a seção: João Ubaldo Ribeiro, nos intervalos entre uma reportagem cultural e outra. “Era uma ilha de excelência em meio a tantas obviedades”, detalha Vita, que fez questão de mostrar algumas à plateia de cerca de 300 pessoas que ocupava o claustro do Convento do Carmo, onde a festa literária acontecia naquela noite quente de sábado, dia 1º de novembro. “Ele recolhia cartas dos leitores, reclamações comezinhas, e transformava em material para aquelas que eram suas primeiras crônicas. Lembro bem: os copidesques ficavam loucos para revisar a página 5, onde eram publicadas, pois era diversão certa. Os leitores adoravam. Já estavam ali o humor, a ironia, o sarcasmo, a veia literária de Ubaldo, e ele não tinha mais de 22 anos!”

Ilustrações de cartunista do Le Monde

Havia outra curiosidade: a coluna era ilustrada, e os traços de Theóphilo foram criados pelo cartunista francês Gérard Lauzier, que à época contava 30 anos e tinha acabado de trocar o Le Monde, onde trabalhava, pelo Jornal da Bahia, depois de se apaixonar por uma baiana e decidir viver no Brasil. Lauzier voltaria à França em 1975, onde publicou o livro Crônica da Ilha Grande, graphic novel inspirada em suas memórias da Ilha de Itaparica. Nos anos 1980, enquanto Ubaldo já era consagrado como um dos mais importantes romancistas brasileiros, o ex-parceiro de coluna começou a trabalhar com cinema e, na década seguinte, assinou o roteiro de Meu pai herói (1994) e do filme animado Astérix e Obélix contra César (1999). Ele morreu em 2008.

– Era bacana porque você acompanhava o personagem como uma novelinha. O Theóphilo tentou virar vegetariano, arrumou uma namorada, mas sempre tinha algum problema na cidade que o atrapalhava – comenta Vita, citando algumas das crônicas.

Filha de Ubaldo, Emília Ribeiro representava o pai no evento em Cachoeira e alegrou-se ao ouvir trechos de uma das crônicas lidas pelo mediador, a que provavelmente tenha sido sua primeira, intitulada “De como Theóphilo, caindo do barranco, ficou extremamente zangado e mandará carta”, datada de 3 de fevereiro de 1962, um sábado de carnaval (o personagem inaugurava a coluna com um estabacão tomado nas ruas de Amaralina, uma ironia com a falta de calçamento das vias do famoso bairro de Salvador): “Era ele quem escrevia, sim, mas conheço a história porque sou filha. São muitas crônicas nesta primeira fase, ele escrevia muito”, assegurou Emília.

Amigo de Fernando Vita e exímio pesquisador, foi o escritor Nivaldo Lariú (autor do Dicionário de baianês, um best-seller na Bahia, entre outros livros) quem debruçou-se sobre os arquivos da Biblioteca Pública da Bahia, onde estão guardados os exemplares do extinto Jornal da Bahia, para encontrar as crônicas. Em alguns dias de pesquisa, catalogou 170 delas, e estima que cheguem a 500 (as crônicas não eram publicadas nos fins de semana). “O Vita me pediu para achar uma ou outra, pela intimidade que já tenho aqui com o acervo da Biblioteca, para a exposição que faria em Cachoeira, mas eu simplesmente não consigo parar, os textos são deliciosos e são uma ótima perspectiva histórica daquela época. Estes primeiros anos já revelam muito do grande autor que ele seria”, observa Lariú, que não esconde o desejo de transformar a pesquisa em livro futuramente.

Além de irônico, meio blasé e muito engraçado, o personagem inventado por Ubaldo era um visionário: numa das colunas, escrita em julho de 1962, ao ironizar a falta d’água que acometia Salvador, Theóphilo resolve tomar banho de chuva (na calha do vizinho) para visitar a namorada e pedi-la em casamento. No caminho, aproveita e passa numa loja de móveis para já ir fazendo orçamentos para o casório. Acha tudo tão caro (“um certo sofá custava tão caro que o dono da loja levou quase meio minuto só para acabar de dizer o preço inteirinho”) que lança a moda: mobiliar a casa com caixotes de feira. Se Theóphilo abrisse um catálogo de decoração em 2014, certamente daria boas risadas. “O mais curioso é que todos os temas são atuais”, observa Nivaldo Lariú. “As cidades continuam caras, com lixo nas ruas, olha São Paulo passando falta d’água, exatamente como Salvador em 1962. É só republicar a coluna, é tudo praticamente igual…”

Numa outra crônica, intitulada “Theóphilo propõe interruptores a fim de estimular os namoros”, o personagem ironiza as lâmpadas quebradas nos postes públicos em Salvador, sugerindo que fossem os próprios casais de namorados, na surdina – e não o descaso do poder público – a manter a cidade às escuras. Noutro texto, o personagem dá aos leitores uma pequena aula de economia. Para isso, partiu de um exemplo ordinário e curioso: a falta de trigo na Bahia, que ocorria à época, diminuindo o tamanho dos pãezinhos nas padarias:

“Contemplando, com o auxílio de um microscópio emprestado, um pão cacetinho, Theóphilo meditou, ontem, a respeito da falta de trigo na Bahia. Assim é que o pão cacetinho, antigamente visível a olho nu, embora com alguma dificuldade, já não é mais enxergável pelo comum dos mortais. Theóphilo observou que as formigas, que carregavam as migalhas, hoje carregam os próprios sacos de pão. Inclusive Esmeralda, a formiguinha mais conhecida, chega a carregar dois pães de uma vez. Ela cochichou a Theóphilo: ‘Coma milho para economizar divisas’. Sim, comer milho, eis a solução. Se houvesse milho, é claro. E se milho pudesse ser comprado. Theóphilo está a bolar algo novo para comer: o problema é que, assim que esse algo novo for bolado, o preço sobe.” Eis que o personagem reflete e bola uma solução: “É verdade que resta o ar, cujas propriedades alimentícias ainda não foram exploradas. Mas Theóphilo tem medo de que, assim que se faça a descoberta, surja logo a ‘Bahiana Brasil-Ar’, com o monopólio da distribuição do ar engarrafado.”

Contos inéditos e edição de luxo

Autor de clássicos como Sargento Getúlio e A casa dos budas ditosos, ocupante da cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras e laureado com uma das maiores honrarias da literatura em língua portuguesa, o Prêmio Camões, além de cronista do Globo, João Ubaldo Ribeiro terminava o livro de contos sobre boemia intitulado Noites lebloninas quando morreu, no último 18 de julho, aos 73 anos. Já levava dez anos escrevendo o livro, como conta o amigo Geraldo Carneiro, que assina o prefácio. O narrador é baiano, e as tramas repletas de porres, festas e esquinas se passam todas no Leblon. Como dois dos contos já tinham ponto final e ocupavam 96 páginas, a Alfaguara decidiu lançá-los mesmo assim, e os volumes chegam esta semana às livrarias.

É um lançamento duplo: com ele, a editora leva às prateleiras também uma edição de luxo de um dos clássicos do autor, Viva o povo brasileiro, em comemoração aos 30 anos de publicação deste que é um dos romances de formação da identidade nacional – ficção que percorre de maneira épica os principais episódios da História do Brasil. Da ocupação holandesa no século 17 à ditadura militar de 1964, passando pela Guerra do Paraguai e Independência, os personagens da narrativa vão reencarnando ao longo da história.

O evento de lançamento terá um bate-papo com o escritor e romancista Rodrigo Lacerda, filho do primeiro editor de Viva…, Sebastião Lacerda, com o poeta e amigo de Ubaldo Geraldo Carneiro e mediação de Cristiane Costa, no Instituto Moreira Salles, em dia 25/11, às 20h [A repórter viajou a convite da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica)].

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Mariana Filgueiras, do Globo