Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Luís Carlos Prestes só se tornava popular na derrota

Ele nadou na contracorrente e marcou a história do Brasil. Sonhou com uma revolução socialista e viveu longos períodos na prisão, clandestino ou no exílio. Homem íntegro e de convicções, pagou caro por elas.

Assim o historiador Daniel Aarão Reis, 68, define o líder comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990), tema de seu novo livro, “Luís Carlos Prestes – Um Revolucionário entre Dois Mundos” (Companhia das Letras).

“Tentei fazer uma análise equilibrada, evitando a demonização e a hagiografia”, diz o professor da Universidade Federal Fluminense.

Autor de “A Revolução Faltou ao Encontro – Os Comunistas no Brasil” (1990), Aarão Reis critica atuais lideranças de esquerda e nota a crescente insatisfação na juventude. “Num futuro próximo, e de um modo oblíquo, a figura de Prestes pode ter chance de ganhar uma reatualização”, defende.

Qual é o legado de Luís Carlos Prestes?

Daniel Aarão Reis – Prestes associou sua vida a uma sonhada revolução socialista no Brasil, mesmo que tivesse que passar por caminhos reformistas. Nos anos 1980, última década de sua vida, passou clamando no deserto por uma revolução em que muito poucos pareciam acreditar ou desejar. Por outro lado, Prestes sempre foi um homem de convicções, pagando caro por elas, quando foi o caso, e quase sempre “foi o caso”.

No momento atual brasileiro, não apenas a revolução social está fora dos radares, como também a maioria das lideranças de esquerda tendem mais a seguir os marqueteiros do que as suas próprias ideias, se é que ainda conservam ideias.

Se neste quadro há um grão de verdade, Prestes parece muito desatualizado. No entanto, a história, sempre em movimento, dá voltas e reviravoltas. Quem sabe, num futuro próximo, voltem a se reatualizar as expectativas que foram as dele e as virtudes que procurou cultivar?

No livro, o sr. afirma que ele levou a vida dando cabeçadas. Como o sr. define o personagem histórico Prestes?

D.A.R. – Meu personagem, quase sempre, pareceu inadequado, na contracorrente. Estranhamente, só se tornava popular na derrota. Seus momentos de glória foram fugazes.

Os tempos de prisão, clandestinidade e exílio, longos. Apesar disso, como todos os líderes de tendências “marginais” ou “marginalizadas”, marcou a história do país, como portador de opções alternativas, de uma história a contrário, fonte inesgotável para a imaginação nãoconformista, o que é sempre um fermento indispensável para a sobrevivência de uma sociedade, mesmo conservadora.
Destacaria, finalmente, sua integridade. Quero referir-me à correspondência entre convicções e práticas, para além da adequação de suas concepções. Se é fato que as principais lideranças de esquerda em nosso país, hoje, não parecem ter mais convicções, é também fato que tal situação suscita uma grande e crescente, insatisfação, sobretudo entre os mais jovens. De sorte que, num futuro próximo, e de um modo oblíquo, a figura de Prestes pode ter chance de ganhar uma reatualização.

Qual foi o maior erro e o maior acerto de Prestes na sua trajetória pública?

D.A.R. – Entre os que conhecem e estudam a trajetória do personagem, será difícil encontrar um consenso para esta resposta. O maior erro foi ter imaginado que o país passaria por uma revolução social. O maior acerto foi ter mantido, contra ventos e marés, suas ideias. Como disse o poeta, o que mais importa é lançar a flecha e não que ela atinja o alvo.

Qual a importância da vida militar na formação do político Prestes?

D.A.R. – Na pesquisa que empreendi para escrever esta biografia, coloquei em dúvida este lugar comum, que a vida militar de Prestes o teria profundamente condicionado. Exceção feita a alguns arroubos juvenis, Prestes desenvolveu cedo uma certa repugnância pelo exército, suas convenções, sua rotina e sua monotonia.

Penso que sua rigidez foi erroneamente atribuída à caserna. Ela vem mais da formação familiar e do movimento comunista internacional.

Prestes liderou uma inédita coluna nos anos 1920. Esse feito deixou frutos?

D.A.R. – É importante ressaltar, justiça feita pela biografia, que a coluna foi comandada por Miguel Costa e Luiz Carlos Prestes, aspecto, aliás, sempre enfatizado pelo próprio Prestes.
A marcha da Coluna foi um tremendo feito.

Uma de suas consequências mais importantes, mas não imediata, foi o movimento de 1930, mal chamado de “revolução de 30”, que deu início a um processo molecular de mudanças que transformaria, a longo prazo, o país. Miguel Costa, embora criticamente, dele participou.

Mas Prestes, o outro comandante, ficou de fora. Já então tendo se convertido ao movimento comunista, passou a desejar uma revolução social para o Brasil. E continuaria com esta perspectiva até à morte.

Por esses anos, Prestes defendeu que não havia saída possível dentro dos marcos legais vigentes. Décadas depois, condenou a luta armada. Prestes mudou ou não se pode fazer uma comparação dessa ordem dadas as diferenças históricas?

D.A.R. – Só não muda de ideias quem não tem ideias. Gosto desse bordão. Dadas as circunstâncias, as propostas políticas não podem ser as mesmas. Para além das formas de luta, porém, Prestes sempre se manteve fiel a certa ideia de revolução social. Ela viria, inevitável, segundo suas concepções, e as do movimento comunista internacional no qual se inseria. Em fins dos anos 1920, Prestes já apostava numa revolução social. Tentou a aventura em 1935 e foi derrotado.

Nos anos 1960, não foi favorável à luta armada contra a ditadura por uma avaliação da correlação de forças. Não descartava o princípio da luta armada. Mas a possibilidade de ser vitoriosa. Mas nunca regateou elogios aos revolucionários que se empenhavam nela, ao tempo que criticava os que cruzavam os braços à espera de melhores tempos.

Estava certo. Depois, na transição da ditadura à democracia, nos anos 1980, imaginou o desenho de uma conjuntura revolucionária no país. Errou feio. Pregou no deserto. Entretanto, preferiu ficar com as próprias convicções a ser arrastado num processo em que não acreditava.

Muito se fala sobre o erro de avaliação de Prestes e do PC em 1964. Na sua avaliação, o que provocou esse equívoco, que resultou numa “derrota histórica catastrófica”, conforme o sr. anota?

D.A.R. – Nos atuais debates sobre os 50 anos da ditadura, a derrota catastrófica de 1964 voltou a interessar. Era ela inevitável, como gosta de afirmar a história retrospectiva (“se aconteceu, tinha mesmo que acontecer”)?
Penso que é preciso pesquisar mais e melhor o assunto. Ao que tudo indica, Prestes acreditava num enfrentamento. Estava empolgado. Apostava num desdobramento revolucionário. Mas houve um impensável desmoronamento.

Nem as direitas acreditavam naquilo que estava acontecendo. Para além da inegável responsabilidade de João Goulart, potencializada pela força da cultura política nacional-estatista arraigada nos movimentos populares, que sempre olham para o Estado e para a cúpula do Estado, cabe mencionar a falta de autonomia das organizações populares, muito dependentes do Estado.

Tenho ainda proposto duas hipóteses de estudo: o elitismo das lideranças de esquerda, políticas e militares, que teriam também receado um enfrentamento que as poderia levar de roldão. E, mais importante, a desconfiança, entre as camadas populares, de que ali estava se jogando algo de realmente decisivo para suas vidas (não seria mais uma “briga de brancos”?).

A verdade é que ainda há muito a fazer e a pesquisar para uma compreensão melhor da derrocada de 1964.

O sr. diria que o PCB nunca mais se recuperou desse erro?

D.A.R. – O PCB, como outras forças de esquerda, foi corresponsável por aquela derrota. E, de fato, nunca mais se recuperou, mas isto não estava inscrito na derrota. O declínio do PCB está inscrito nas opções que foi assumindo ao longo do tempo, que o levaram a posições excessivamente moderadas e elitistas.

Prestes denunciou estas derivas, mas não é certo que tivesse boas propostas para lidar com a dificílima situação. De fato, a partir da segunda metade dos anos 1970, ele se deixaria empolgar por avaliações delirantes a propósito de uma reatualização das possibilidades revolucionárias no Brasil.

Um erro que o deixaria ainda mais isolado do que os dirigentes comunistas que criticava.

O sr, afirma que Prestes nunca mais teve a mesma influência e prestígio depois de 1964. Por quê?

D.A.R. – A política é muito personalizada e Prestes personalizava o PCB e sua incapacidade de lidar com o golpe. Como Jango, tornou-se uma espécie de bode expiatório. No entanto, insisto, os dados ainda não estavam definitivamente jogados. Havia margens de recuperação.

Prestes procurou uma terceira margem entre o revolucionarismo da luta armada e a “passividade” da maioria do Comitê Central. Não a encontrou e não é certo que ela existisse, mas o fato é que não a encontrou. E dela ainda mais se distanciaria, nos anos 1980, ao abraçar teses revolucionárias para uma sociedade que delas não queria saber.

Prestes e o PC falharam na análise sobre o Brasil e o caráter que deveria ter a revolução brasileira? Faltou identificar de forma mais profunda e independente a situação nacional? A visão sobre a economia simplificou o quadro e turvou as opções políticas?

D.A.R. – Na análise dos processos sociais, é preciso não exagerar a importância do que pensam as elites de esquerda. Claro, as organizações autodenominadas de vanguarda sempre imaginam que delas é que sai a “orientação” para a revolução social. Mas as evidências estão longe de comprovar esta ilusão.

Prestes e o PC compartilhavam com muitas outras forças de esquerda do que chamei de “utopia do impasse”. Ou as reformas de base viriam, ou o país se transformaria num barril de pólvora. Ou num imenso cárcere. O processo histórico, contudo, tomou outros rumos. O mais importante, no entanto, é compreender como os homens e as mulheres comuns brasileiros viram as coisas acontecendo?

O que, para eles, representou aquela derrota? Por que, afinal, eles não lutaram? E como foram lidando com a ditadura? Todas estas questões ainda permanecem muito obscuras e uma boa resposta para cada uma delas ajudaria a pensar melhor a derrota de 1964 do que “as posições” do PCB.

O sr. afirma que Prestes resistia a fazer autocríticas e trata de seu caráter conciliador nas discussões internas do partido. Como essas características influenciaram no seu isolamento político no final de sua vida? Ou o isolamento foi fruto de sua visão política?

D.A.R. – Resistir a fazer autocríticas é uma característica comum às lideranças políticas de qualquer orientação. Os comunistas não constituem exceção à regra. Prestes, ni mucho menos. Não creio, no entanto, que isto tenha sido determinante para o isolamento político do personagem. O que determinou seu isolamento, sobretudo na última década da sua vida, foi a insistência em manter uma proposta revolucionária numa sociedade que não estava nem um pouco entusiasmada com esta orientação.

Prestes deve ter percebido o isolamento em que se encontrava. Mas parecia mais confortável com suas convicções. Devia estar semeando para o futuro…

O sr. diria que Prestes teve uma trajetória política coerente? Fez concessões? Mudou de posição?

D.A.R. – Prestes mudou muito de posições, fez muitas concessões. Mas isto é o be-a-bá de qualquer liderança política, de esquerda ou de direita. É possível, contudo, perceber uma certa coerência: a defesa de uma certa ideia de revolução social e a defesa intransigente da URSS. É isto que fez dele “um revolucionário entre dois mundos”.

O sr. considera que Prestes morreu frustrado com suas conquistas políticas? Que balanço ele próprio faria?

D.A.R. – Nas concepções que vigoravam no movimento comunista internacional, os comunistas deveriam devotar-se à revolução. Como dizia um comunista alemão: os revolucionários são mortos com sursis. Prestes deu tudo o que tinha e o que não tinha pela revolução social. Este era o critério que importava e ele o preencheu.

A vitória era uma questão de tempo, e o tempo contava a favor do comunismo. No fim dos anos 1980, havia sinais se acumulando em sentido contrário, mas não tenho evidências para dizer que Prestes tivesse perdido a confiança o futuro, uma convicção, digamos, “pétrea” do imaginário comunista. Se há um grão de verdade nesses esclarecimentos, creio que Prestes morreu em paz com sua consciência.

O que o levou a escrever a biografia de Prestes?

D.A.R. – Fui convidado pela Lili Schwarcz, da Companhia das Letras, para escrever a biografia do Prestes no quadro de uma coleção da editora, Perfis Biográficos. Contudo, como nunca me faltaram encorajamento e estímulo, o livro acabou crescendo demais para os limites da coleção e se tornou uma biografia no sentido pleno da palavra.

Embora tendo feito outras coisas no período, passei cerca de cinco anos e meio na companhia de Prestes e suas aventuras.

Qual foi a maior dificuldade que o sr. encontrou para realizar a biografia?

D.A.R. – Não foi possível acessar os arquivos do Estado soviético, com exceção dos da Internacional Comunista, claro, já abertos há muito aos pesquisadores. Os arquivos do Estado soviético permitiriam ter informações sobre o primeiro exílio de Prestes na URSS, entre 1931 e 1934 e, ao longo de sua vida, uma visão melhor do que pensavam os soviéticos do nosso personagem.

Que os próximos biógrafos lidem e superem esta dificuldade são os meus votos.

Em relação a outros livros sobre o dirigente comunista, no que o seu trabalho se destaca?

D.A.R. – Tentei fazer desta biografia uma análise equilibrada, evitando a demonização e a hagiografia. Se conseguir alcançar este objetivo, os leitores e os críticos o dirão, ficarei em paz com minha consciência.

Quanto tempo o sr. levou para escrever o livro? Houve alguma descoberta inesperada, uma surpresa?

D.A.R. – Levei algo em torno de cinco anos e meio. Houve muitas descobertas inesperadas. As principais: a colossal aventura da coluna guerrilheira pelos Brasis em fins dos anos 1920; o amadorismo da Internacional Comunista e da aventura revolucionária de 1935; as reuniões do Comitê Central, realizadas em Moscou e Praga, na segunda metade dos anos 1970, cujas gravações, inéditas, oferecem material para inúmeras pesquisas sobre concepções e práticas dos comunistas brasileiros.

Finalmente, mas não por último lugar, as imensas mulheres de Prestes: Leocádia, a mãe, Olga e Maria, que viveram com ele. Seguraram todas. Desesperadas e esperançosas. Fiéis. Altas. Profundas. Incríveis. E mais os encontros e desencontros familiares e extrafamiliares.

A história de Prestes, para além da política, daria um excelente folhetim ou uma soberba novela. Totalmente improvável.

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Eleonora de Lucena, da Folha de S.Paulo