Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Arquivo de Gabo vai para a Universidade do Texas

Gabriel García Márquez, que morreu em abril aos 87 anos, foi um crítico ferrenho do imperialismo norte-americano impedido de entrar nos EUA por décadas, mesmo depois que o livro Cem anos de solidão lhe garantiu fama internacional e, em 1982, um prêmio Nobel de literatura. Mas agora García Márquez, que nasceu na Colômbia e passou boa parte da vida adulta na Cidade do México, terá sua obra abrigada no Texas.

O Centro Harry Ransom, da Universidade do Texas, em Austin, vai anunciar nesta segunda-feira que adquiriu o arquivo de García Márquez, com manuscritos, cadernos de notas, fotografias, correspondências e objetos pessoais, entre eles duas máquinas de escrever Smith Corona e cinco computadores Apple. No Centro Ransom, um dos maiores arquivos literários dos EUA – e o único “na fronteira com a América Latina”, destaca Steve Enniss, seu diretor – a obra literária de García Márquez será preservada ao lado dos trabalhos de escritores como James Joyce, Ernest Hemingway, William Faulkner, Jorge Luis Borges e outras figuras de importância global. “É quase como se James Joyce encontrasse Gabriel García Márquez, cuja influência do romance do século 20 de certa forma se espelha nele”, disse Enniss. “É muito adequado que ele se junte a nossa coleção. É difícil imaginar em escritor com um impacto tão amplo.”

O arquivo, comprado de sua família, inclui material relacionado a todos os principais livros de Garcia Márquez, desde Cem anos de solidão – representado pelo texto datilografado final enviado ao editor com uma carta escrita a mão acompanhando e apenas umas poucas correções – até Em agosto nos vemos, seu romance final (e inacabado), que tem mais de dez versões. Tanto o Centro Ransom quando a família se recusaram a revelar o valor do negócio.

Cem anos de solidão, publicado em espanhol em 1967 e em inglês em 1970, pode ter transformado a literatura mundial e feito de García Márquez uma celebridade mundial, mas é nos rascunhos de seus livros seguintes que está o maior interesse dos estudiosos. “É como uma janela aberta ao laboratório de um alquimista que não gostava que os outros soubessem as receitas de suas poções”, diz Jose Montelongo, especialista em literatura latino-americana da Universidade do Texas que visitou a casa de García Márquez na Cidade do México junto com Enniss para avaliar o material. “Elas mostram as fraquezas, as versões descartadas, as palavras eliminadas. Você realmente vê a luta em busca da criação.”

Família não decidiu se publica romance inédito

García Márquez certamente expressava cautela com a perspectiva de estudiosos acompanhando seus passos. “É como ser pego em sua roupa de baixo”, disse à Playboy em 1983. Ele destruiu suas notas diárias e as árvores genealógicas de Cem anos de solidão, de acordo com uma biografia de 2009.

“Meu pai era um perfeccionista e um perfeccionista não mostra uma obra em progresso”, diz Rodrigo García, um dos dois filhos do escritor. “Ele sempre contava histórias sobre personagens do livro que estava escrevendo, mas só mostrava tudo quando estava 90% pronto.”

O autor não reclamava que a mulher, Mercedes, guardasse manuscritos de seus livros mais recentes, revela o filho, mas era rígido quanto a material privado. No noivado, diz a lenda familiar, teria oferecido comprar de volta as cartas de amor que mandou para Mercedes para poder destruí-las. “Não acho que ele gostaria de deixar um rastro de vida pessoal”, diz Rodrigo, classificando o pai como uma “pessoa de telefone”, que escrevia poucas cartas para a família. “O que ele dizia era, ‘Tudo que eu vivi, tudo que eu pensei está em meus livros’.”

García Márquez, que guardava cópias de algumas poucas cartas enviadas, se correspondia com outros escritores. No arquivo há cartas para Graham Greene, Milan Kundera, Julio Cortázar, Günter Grass e Carlos Fuentes, com quem ele discute, em 1979, preparar um manifesto, junto com Cortázar, “para tratar publicamente as listas negras dos EUA”. A proibição de viagem a García Márquez, por conta de seu envolvimento com o Partido Comunista da Colômbia foi anulada apenas em 1995, pelo presidente Bill Clinton.

O arquivo traz pouco material relacionado à sua amizade com Fidel Castro ou suas atividades políticas. Segundo seu filho, ele preferia tratar esses assuntos em pessoa ou por telefone. Numa visita à Casa Branca, em 1998, García Márquez perguntou a Clinton se ele tinha “algum conselheiro que não fosse fanaticamente anti-Castro”. “Meu pai acreditava em trabalho político feitos nos bastidores. Como nos livros, estava interessado nos resultados, não em que as pessoas soubessem no que foi feito para que se chegasse lá.”

Os mais de 40 álbuns fotográficos trazem imagens de Castro, além de uma crônica visual da vida privada de Gabo, como o escritor era carinhosamente conhecido na América Latina.

Quanto ao romance inédito (e inacabado), a família de García Márquez ainda não decidiu se vai ou não publicá-lo. Um trecho do livro sobre uma mulher casada de meia idade que tem um romance numa ilha tropical já saiu na New Yorker e no jornal espanhol La Vanguardia.

Mas essa certamente não era a última história que o pai gostaria de contar, diz Rodrigo. Ele lembra um comentário de García Márquez pouco antes da morte: “Uma das maiores tristezas em morrer é que será o único evento da minha vida sobre o qual não poderei escrever.”

Colômbia lamenta envio aos EUA

A ministra da Cultura da Colômbia, Mariana Garcés, reforçou não ter sido responsável pela decisão de enviar o acervo do autor para os Estados Unidos. Ela lembrou que o país considerava uma “honra” manter o material, mas que a escolha dependia da família do escritor.