Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Breve história do autoritarismo brasileiro

P. contava dezoito anos e cumpria o serviço militar obrigatório, conscrito no Corpo de Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro. Não entendia bem por que dois meses antes teve que tosar os lambidos cabelos negros, “de índio”, e muito menos por que, agora, desconfortável dentro do uniforme, havia sido deslocado para o alto daquele morro, em posição de tiro. P. não sabia como lidar com a arma que lhe entregaram e não fazia ideia do objetivo daquele exercício. Mirava à noite, tenso, a lânguida Baía de Guanabara estendida lá embaixo. Pela manhã, o oficial comunicou que poderia haver confusão, portanto que se mantivessem em alerta máximo. Muito tempo depois, P. descobriu, assustado, que participara do golpe de 1964…

Sob o argumento de “evitar o caos político-econômico-social e a guerra civil, que ameaçava o país”, os militares, liderados pelo general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora (MG), depuseram o presidente João Goulart, na madrugada de 31 de março para 1º de abril, inaugurando um dos períodos mais tenebrosos da história brasileira. Foram vinte e um anos até a eleição indireta de Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, conquistada após um amplo movimento da sociedade civil pelo fim da intervenção das Forças Armadas. O legado deste período de desmandos, repressão e censura foi a desorganização dos sistemas de educação e saúde, a expansão dos círculos de corrupção, o aprofundamento do fosso entre as camadas mais ricas e mais pobres da sociedade, a propagação da violência urbana e, principalmente, a perda de confiança nas instituições.

Embora o general Mourão Filho confesse, em reportagem da revista O Cruzeiro, de 10 de abril de 1964, que conspirava contra o presidente Goulart “desde o dia 6 de janeiro de 1962, quando o plebiscito fez retornar o regime presidencialista”, as raízes do golpe de 1964 podem ser encontradas bem antes, ainda quando da contestação da eleição de Juscelino Kubitschek, em outubro de 1955, cuja posse somente ocorreu garantida por um levante liderado pelo marechal Teixeira Lott contra os políticos ligados à UDN (União Democrática Nacional). O mesmo partido que, nove anos mais tarde, idealizaria o golpe contra Goulart, lastreado no apoio incondicional dos Estados Unidos, que, naqueles anos, auge da Guerra Fria, fomentavam regimes ditatoriais em quase todos os países da América do Sul: Bolívia (1964-1982), Equador (1972-1979), Uruguai (1973-1985), Chile (1973-1990), Peru (1976-1980), Argentina (1976-1983).

República Velha

A verdade é que a história do Brasil no século 20 é a história do autoritarismo, que a literatura nacional, quase sempre avessa à política, acompanhou apenas de maneira lateral. O desaparecimento do Império, retratado magistralmente por Machado de Assis em Esaú e Jacó, verificou-se por meio de um golpe militar em 15 de novembro de 1889, liderado pelo marechal Deodoro da Fonseca, que governou com poderes ditatoriais até 24 de fevereiro de 1891, quando promulgada a nova constituição. Menos de oito meses passados, Deodoro fechou o Congresso e decretou estado de sítio, mas, pressionado por um motim da marinha, renunciou, vinte dias depois, em favor de seu vice, o marechal Floriano Peixoto. Floriano manteve-se no poder, de forma ilegítima, entre 23 de novembro de 1891 e 15 de novembro de 1894, com o país sob estado de sítio, período que Lima Barreto descreve em Triste fim de Policarpo Quaresma.

O pleito de 1º de março de 1894, o primeiro da República, marca o começo de um período de mais de trinta anos em que os governos se sucederam dentro da normalidade constitucional, embora esta tenha sido uma época bastante conturbada do ponto de vista político – apenas 3% da população tinha direito ao voto, facultativo, interdito às mulheres e aos analfabetos. Sob Prudente de Morais (1894-1898), chegou ao fim a sangrenta Revolução Federalista (1893-1895), episódio que ainda hoje rende boa literatura no Rio Grande do Sul (Luiz Antonio de Assis Brasil, Tabajara Ruas, Letícia Wierchowski), e se desenrolou a Guerra de Canudos (1896-1897), acompanhada de perto pelo então jovem repórter Euclides da Cunha, que a imortalizou em Os sertões. Já Rodrigues Alves (1902-1906) comprou o Acre à Bolívia, após sua incorporação de fato por brasileiros liderados por Plácido de Castro – o imbróglio é o centro da narrativa de Márcio Souza, Galvez, imperador do Acre.

Em 1910, o marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), cuja eleição dividiu o país entre civilistas e hermistas, decretou estado de sítio para enfrentar, com violência, a Revolta da Chibata, rebelião contra a prática de castigos físicos na marinha. A humilhante situação dos marujos já havia sido exposta, quinze anos antes, no excelente e corajoso Bom crioulo, de Adolfo Caminha. Ainda sob Hermes da Fonseca, estourou a pouco estudada Guerra do Contestado (1912-1916), quando, pela primeira vez, no governo de seu sucessor, Venceslau Brás (1914-1918), foram usados aviões militares contra a população civil. Este longo período, que vai da consolidação da República até o fim da Primeira Guerra Mundial, está muito bem descrito na obra-prima que é Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade.

O recrudescimento das greves operárias, ao longo da década de 1910, culmina com a fundação do PCB, em 1922, e os comunistas passam a assumir um papel cada vez mais importante no cenário político nacional – 1922 é também o ano em que surge o Movimento Tenentista, cujas ideias de progresso alimentariam a Revolução de 1930. Artur Bernardes governa, durante quase todo o seu mandato (1922-1926), com o país sob estado de sítio, enfrentando insubordinações militares (Revolta do Forte de Copacabana), sedições estaduais (Rio Grande do Sul, em 1923, e São Paulo, em 1924) e a pregação da Coluna Prestes. Seu sucessor, Washington Luís, seria deposto, em 24 de outubro de 1930, por uma junta militar que repassaria o poder ao líder civil da revolução, Getúlio Vargas. A literatura apreende o clima dessa fase final da República Velha em obras como Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade; Moleque Ricardo e Usina, de José Lins do Rego; Cacau e Suor, de Jorge Amado, e na obra-prima de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.

Um manifesto exigindo a renúncia de Vargas

Vargas se torna uma das personagens mais importantes da história do Brasil. Apoiado por civis e militares, ele governa “provisoriamente”, com atribuições excepcionais, até que, pressionado por sublevações, como a de São Paulo, em 1932, é obrigado a acatar uma nova constituição, em vigor a partir de 17 de julho de 1934, data em que é eleito, de forma indireta, presidente da República. Um ano depois, no entanto, com o argumento de combater os radicais de direita e de esquerda, institui uma Lei de Segurança Nacional, novamente concentrando o poder em suas mãos. Esse processo culminaria num outro golpe, em 10 de novembro de 1937, quando Vargas funda o Estado Novo: “É a necessidade que faz a lei: tanto mais complexa se torna a vida no momento que passa, tanto maior há de ser a intervenção do Estado no domínio da atividade privada”, declara, em seu “Manifesto à Nação”.

A justificativa para a implantação da ditadura, Vargas a tomou de um suposto projeto de revolução comunista, o Plano Cohen, na verdade um documento falsificado pelos fascistas ligados a Plínio Salgado, idealizado para forçar um golpe de estado. Já naquele momento surge, como um dos nomes por trás da farsa, o capitão Olímpio Mourão Filho, que, mais tarde, general, lideraria o movimento que derrubou a incipiente democracia, em 1964. Dessa época, agitada e paradoxal, de censura, tortura, privação da liberdade e populismo, dão testemunho livros como Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos; Subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado; O louco do Cati, de Dyonélio Machado, entre outros. E, para além de todos, O tempo e o vento, de Erico Veríssimo, magnífica saga que cobre o largo período que vai de meados do século 18 até 1945.

Finda a Segunda Guerra Mundial, Vargas, premido pelas circunstâncias, extingue a censura prévia, concede anistia geral aos presos políticos, autoriza a criação de novos partidos e marca eleições para o dia 2 de dezembro, naquele que seria o primeiro pleito efetivamente democrático da história do Brasil, já que estendia o direito de voto às mulheres, embora não o permitisse ainda aos analfabetos. Mas, no dia 29 de outubro, o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro depõe Vargas, assumindo o poder o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, que conduz o sufrágio e dá posse, em 31 de janeiro de 1946, ao presidente eleito, o general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra desde 1936.

Senador à Assembleia Nacional Constituinte, Vargas exerceu o mandato até 1947, retirando-se, desencantado, para sua estância no interior do Rio Grande do Sul, de onde saiu apenas para encabeçar a campanha vitoriosa à eleição de 3 de outubro de 1950. Conduzido novamente à Presidência da República, enfrentaria uma forte oposição da UDN, mergulhado em denúncias de corrupção e enfrentando uma grave crise econômica. A situação se deteriorou ao longo de seu mandato e, em 15 de fevereiro de 1954, oficiais divulgaram um Memorial dos Coronéis, documento que teve entre seus signatários Golbery do Couto e Silva, mais tarde ideólogo do governo militar, reclamando de seus superiores hierárquicos uma atitude contra o que chamavam de desmandos do governo. O ápice da crise ocorre no dia 5 de agosto, quando membros da guarda pessoal do presidente praticam um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, voz mais combativa da oposição, que resulta na morte do major da aeronáutica Rubens Florentino Vaz, arma à qual pertencia o candidato derrotado da UDN, o brigadeiro Eduardo Gomes. No dia 22, dezenove generais do exército, entre eles o futuro marechal Castelo Branco, que estaria à frente do golpe de 1964, soltam um manifesto exigindo a renúncia de Vargas, que, num gesto trágico, se mata com um tiro no peito na madrugada do dia 24. Esse conturbado período está assinalado nos romances Armadilha para Lamartine, de Carlos Sussekind; e Agosto, de Rubem Fonseca, entre outros.

A longa noite

Com a morte de Vargas, as frágeis instituições entram em colapso. Café Filho assume a presidência em 24 de agosto de 1954 como garantidor do pleito a ser realizado em 3 de outubro do ano seguinte. No entanto, diante da ameaça de impugnação pela UDN do resultado da votação que elegeu Juscelino Kubitschek, Café Filho afasta-se do cargo, alegando problemas de saúde, em 8 de novembro de 1955, abrindo espaço para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Luz. Este, sob suspeita de que não daria posse ao candidato vitorioso, é destituído do cargo dois dias depois, por um golpe de estado preventivo liderado pelo marechal Teixeira Lott, cedendo lugar ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, que governou, sob estado de sítio, entre 11 de novembro de 1955 e 31 de janeiro de 1956.

No poder, Juscelino enfrentou duas rebeliões militares, a de Jacareacanga, um mês depois de sua posse, e a de Aragarças, em dezembro de 1959, que resultou no primeiro sequestro de um avião brasileiro, ambas rapidamente debeladas. Nas eleições de 3 de outubro de 1960, Jânio Quadros derrota o marechal Teixeira Lott e elege-se presidente da República para o mandato 1961-1965. No entanto, sete meses após sua investidura no cargo, renuncia, num episódio ainda hoje nebuloso, encaminhando o país para um cenário de caos institucional que culminou com a deposição, pelos militares, de João Goulart, na fatídica madrugada de 31 de março de 1964. A serviço del-rei, de Autran Dourado; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga; e Quarup, de Antonio Callado, captam esse momento de transição. Refletir sobre a longa noite que se seguiu então é o propósito desta antologia de contos.

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Luiz Ruffato é escritor