Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Guerra de interpretações

“Foi a primeira grande calamidade do século 20, a calamidade da qual brotaram todas as outras.” Assim o historiador americano Fritz Stern definiu a Primeira Guerra Mundial. E isso não apenas porque mobilizou 65 milhões de soldados, deixando 20 milhões de mortos e 21 milhões de feridos, mas porque quando ela terminou um outro conflito começou – menos mortal, mas não menos contencioso: a guerra das interpretações. Títulos ou expressões como história completa ou interpretações definitivas são meros artifícios retóricos porque em história não existem. Mais ainda em relação a guerras e outros acontecimentos que resultam em perversidades e genocídios nos quais, como nas mortes de familiares, o processamento do luto e da culpa é sempre pelo tortuoso e difícil caminho do esquecimento e da lembrança.

A guerra de 1914, mesmo centenária, ainda é o exemplo paradigmático dos traumas das lembranças coletivas e, por conseguinte, também do próprio caráter inacabado do conhecimento histórico. E isso não por qualquer defeito inerente à disciplina histórica, mas devido ao fato desta estar sempre atrelada à ambígua bússola moral de nossas sociedades e àquela sempre angustiante questão: nos anos recentes nossa bússola ética perdeu completamente seu norte ou apenas mudou de direção?

Nas duas últimas décadas, estimulados pela revolução documental provocada pelos avanços da informática – que facilitou e ampliou o acesso simultâneo a inúmeros arquivos –, assistimos a uma verdadeira avalanche de novos estudos sobre o conflito. O balanço, porém, não se esgota e agora, um século depois do início do conflito, dezenas de livros foram publicados no país.

Numa síntese atualizada e rigorosa, Max Hastings, em Catástrofe – 1914: A Europa vai à Guerra, procura juntar a descrição da convulsão política e militar que arregimentou os exércitos em agosto de 1914 com a narrativa propriamente militar da guerra. Como todo bom historiador de 1914, Hastings procura situar-se na guerra das interpretações, oferecendo como diferencial não apenas suas próprias análises, mas indicando também as hipóteses contrárias a fim de ajudar os leitores a tirarem suas próprias conclusões.

Mas se a preferência dos leitores for na direção de um panorama global e abrangente, pode-se optar por A Primeira Guerra Mundial – História Completa, de Lawrence Sondhaus. Nele, o historiador americano aborda o conflito enfatizando não apenas a guerra naval, mas também revisitando cenários pouco conhecidos ou estrategicamente esquecidos como o Oriente Médio, a Índia ou o dramático massacre dos armênios.

Já Niall Ferguson, um adepto da história contrafactual, examina, em O Horror da Guerra, os chamados cenários alternativos – analisando como os acontecimentos teriam terminado se as circunstâncias tivessem sido diferentes. Mas não se trata de voltar à célebre questão do nariz de Cleópatra, atribuindo as causas da guerra às contingências pueris ou aos azares na história. Examinando sete das grandes questões historiográficas sobre a Primeira Guerra, Ferguson utiliza os cenários contrafactuais de forma inteligente, recuperando a incerteza dos que tomaram as decisões no passado (para quem o futuro era apenas um conjunto de possibilidades) e avaliando se foram feitas as melhores escolhas possíveis. A vantagem interpretativa neste caso é desviar-se do foco unicamente centrado na sucessão de fatos em 1914, que acabam transformando o célebre assassinato do arquiduque Francisco Fernando num acontecimento-monstro que a tudo explicaria. Segundo Ferguson, não houvesse ocorrido a Primeira Guerra, a pior consequência teria sido algo como uma Primeira Guerra Fria.

Personagem folhetinesco

A vantagem de Christopher Clark em Os Sonâmbulos – Como Eclodiu a Primeira Guerra Mundial é o grande número de fontes impressas sérvias, textos secundários búlgaros e documentos russos que ele amealhou para esclarecer as jornadas dos principais tomadores de decisões. Menos do que responder ao por quê da guerra – no qual a culpa torna-se o ponto principal – Clark sugere uma jornada alternativa por meio de acontecimentos e procura identificar as decisões que acarretaram a guerra e compreender o raciocínio ou as emoções por trás delas.

A questão da culpabilidade marcou – e ainda marca – a guerra de interpretações. Desde o famigerado Tratado de Versalhes, que no seu artigo 231 designou a Alemanha e seus aliados como moralmente responsáveis pela guerra, o jogo de empurra-empurra nunca terminou. Ele ganhou ainda uma espécie de prorrogação quando, em 1961, o historiador alemão Fritz Fischer sustentou que os alemães não tropeçaram ou escorregaram para dentro do conflito – eles o escolheram. Pior: planejaram-na antecipadamente na esperança de superar seu isolamento europeu e tornar-se potência mundial. A maioria dos estudos recentes felizmente tem abandonado esse viés acusatório já que ele redunda num nó metodológico insolúvel, pois pode acabar responsabilizando a turma errada e estimular reiteradamente narrativas conspiratórias.

Decididamente, a eclosão da guerra de 1914 não foi um drama de Agatha Christie ao fim do qual vamos descobrir o culpado nas figuras mais improváveis da trama narrativa. Sua eclosão foi uma tragédia, não um crime – muito embora seja forçoso reconhecer que as narrativas conspiratórias – nas quais uma camarilha de poderosos controla os acontecimento nos bastidores, segundo um plano malévolo – continuem a fascinar os leitores.

O lançamento de O Assassinato do Arquiduque, de Greg King e Sue Woolmans, atende em parte a este fascínio dos leitores por dramas pessoais e narrativas pitorescas, pois narra não apenas a história do romance entre Francisco Fernando e a arquiduquesa Sophie de Hohenberg – as duas primeiras vítimas da Primeira Guerra Mundial –, como também as inúmeras histórias familiares entrelaçadas naquela colcha de retalhos de infinitos conflitos étnicos que foi o império austro-húngaro. Apesar de bem documentada, a narrativa não se livra das miudezas biográficas e nem das suscetibilidades às genealogias aristocráticas.

Tolstoi dizia que acontecimentos históricos como as guerras só seriam explicados a partir da reconstrução das ações de todas as pessoas que delas participaram. Completamente irrealizável para os historiadores, este projeto virou quase que um sonho delirante após a experiência da Primeira Guerra Mundial. Mas e se restringirmos o foco cronológico para apenas algumas vidas e, à maneira de uma reportagem, colecionarmos elementos do cotidiano das pessoas comuns? É o que tenta fazer Peter Englund em A Beleza e a Dor: Uma História Íntima da Primeira Guerra Mundial – uma reconstrução detalhada da vida de 19 indivíduos de diferentes nacionalidades resgatados do anonimato. Englund focaliza o evento que marcou a inauguração do século 20 pelo prisma das pessoas bloqueadas em suas rotinas de simples viventes, constrangidas pelo sofrimento e pelo luto em escala nunca antes imaginada. Não se trata tanto de uma história, mas de quase que uma anti-história da guerra: as impressões, estados de ânimos e experiências pessoais de 19 pessoas muito diferentes em relação aos seus destinos, papéis, sexo e nacionalidade, com apenas uma coisa em comum: a guerra que lhes arrancou a juventude, as ilusões, as esperanças e as vidas.

“As pessoas gostariam de poder esquecer, o sono deslizando com suavidade pelos sulcos da mente, mas os sonhos chegam, rejeitam o sono e preenchem os sulcos com novas imagens. Elas acordam, suspiram e, à luz de velas, bebem a luz do amanhecer como se fosse uma tranquilizante água com açúcar.” Assim Rainer Maria Rilke descreveu de forma presciente o pesadelo e o flagelo da guerra na memória coletiva. Afinal, não foi propriamente a historiografia, mas a ficção que se transformou nos registros mais importantes desta alteração inédita nas sensibilidades coletivas.

Neste campo, a maior novidade é a divertida sátira As Aventuras do Bom Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek. Escrito em 1920, é a narrativa inconclusa e mirabolante das peripécias de Josef Svejk, um soldado trapalhão do exército austro-húngaro. Personagem folhetinesco, após ser preso por alta traição e declarado clinicamente imbecil por uma junta médica, Svejk foge do manicômio e alista-se para combater no front pulando de galho em galho e sofrendo nas mãos dos húngaros, dos austríacos, dos sérvios ou dos russos. Svejk é um autêntico palhaço da guerra, figura única a perfilar aquela humanidade derrisória gerada pelo absurdo da matança coletiva. A leitura deste clássico da literatura humorística, traduzido do original checo, pode atenuar a dramaticidade da história da guerra, pois só o registro humorístico pode nos suprir daquele distanciamento necessário para apostar nos valores mais sublimes da vida.

>> Catástrofe 1914: A Europa vai à guerra, de Autor: Max Hastings. Trad.: Berilo Vargas. Editora: Intrínseca(704 págs., R$ 49,90)

>> As aventuras do bom soldado Svejk, de Jaroslav Hasek. Trad.: Luis Carlos Cabral. Editora: Alfaguara(688 págs.;R$ 69,90)

>> O horror da guerra, de Niall Ferguson. Trad.: Janaína Marcoantonio. Editora: Planeta (768 págs.,R$ 89,90)

>> Os sonâmbulos, de Christopher Clark. Trad.: Laura Berilo Vargas. Editora: Companhia das Letras (680 págs.; R$ 69,50)

>> A Primeira Guerra Mundial, de Laurence Sondhaus. Trad.: Roberto Cataldo Costa. Editora: Contexto (560 págs., R$ 69,90)

>> A beleza e a dor, de Peter Englund. Trad.: Fernanda Akesson. Editora: Companhia das Letras (512 págs., R$ 62,00)

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Caixa de DVDs resgata obra-prima esquecida

Luiz Carlos Merten, A Primeira Guerra no cinema – Seis clássicos sobre o conflito [Distribuidora: Versátil (R$ 69,90)]

Nem Jean Tulard, no Dicionário de Cinema, faz justiça a Raymond Bernard. O crítico e historiador que coloca em perspectiva tantos diretores injustamente considerados menores, praticamente ignora o filho do humorista Tristan Bernard. Limita-se a dizer que ele se tornou, no cinema francês dos anos 1930, especialista em grandes produções – que não enumera. Se o fizesse, teria necessariamente de citar Les Croix de Bois, Cruzes de Madeira, que Bernard adaptou no romance de Roland Dorgelès, memorialista da 1ª Guerra, em 1932.

Cruzes de Madeira é um dos títulos da caixa da Versátil com filmes sobre a 1ª Guerra. O lançamento é do ano passado, comemorativo do centenário do sangrento conflito, e inclui também A Grande Ilusão, de Jean Renoir, de1937; Adeus às Armas, a versão de Frank Borzage, de 1932; O Grande Desfile, de King Vidor, de 1925; Guerra Flagelo de Deus, de G.W. Pabst, de 1930; e O Rei e o Cidadão/King and Country, de Joseph Losey, de 1964. Por uma questão de direitos, ficaram de fora dois títulos fundamentais – Sem Novidade no Front, de Lewis Milestone, de 1930; e Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick, de 1957.

A Grande Ilusão ostenta a fama de ser um dos grandes filmes de todos os tempos, não apenas de guerra. Jean Renoir mostra como a afinidade de classes se estabelece acima das diferenças nacionais – no filme, a neve elimina as fronteiras, que são criações dos homens. O Rei e o Cidadão é o filme mais brechtiano de Losey, que trabalhou com o grande dramaturgo – sua trama, como a de Kubrick, é uma corte-marcial que termina em execução, e que os autores filmam com indignado pacifismo.

Todos os filmes da caixa são marcantes, mas o de Bernard, justamente por ser menos conhecido – uma obra-prima ignorada –, é a sensação do lançamento. Na França, voltou, em novembro, aos cinemas, em versão restaurada, junto com o clássico de Milestone. Cahiers du Cinéma, Positif, todas as publicações importantes sobre cinema do país curvaram-se perante Bernard. A conclusão unânime é de que ele estava muito adiante de seu tempo. Dorgelès publicou Cruzes de Madeira em 1919, logo após o fim da guerra. A estreia do filme ocorreu no cabaré Moulin Rouge, transformado em sala para acolher o presidente da República francesa e uma traumatizada plateia de veteranos.

Na trama de Bernard e Dorgelès, estudante patriota entra para o Exército por puro idealismo, em 1914. Quer defender a França. Logo seu batalhão está imerso no inferno da guerra, que Bernard filma com realismo. O som ainda era uma invenção recente. É um personagem à parte. Antonin Artaud faz o soldado que enlouquece, Charles Vanel o cabo que amaldiçoa a mulher que o trai. Nada impressiona mais que a cena em que os soldados acompanham o som dos alemães que abrem brechas na pedra para colocar explosivos e dinamitar a mina em que se escondem os franceses. Bernard fez um filme visceral.

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Elias Thomé Saliba é historiador e professor da USP