Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Jornalista investiga exemplos de ‘narcisocracia’

No Brasil, Narciso acha feio o que não é espelho e o que não reverte popularidade nem votos. A análise do jornalista e colunista do Estado Eugênio Bucci sobre a comunicação pública no país, fruto de pesquisas acadêmicas e da experiência profissional, é dura e concreta: o que deveria ser uma ferramenta da democracia, ao dispor do cidadão e do interesse coletivo, tornou-se um negócio profissional de conquista e manutenção de poder, “uma passarela para a vaidade particular e, sem exagero nenhum, uma arma a serviço da guerra eleitoral”, como o autor do livro O Estado de Narciso – A comunicação pública a serviço da vaidade particular, logo escancara ao leitor.

A obra traz a tese de livre-docência defendida por Bucci na USP em novembro de 2014, ano cheio de exemplos do que o autor chama de “narcisocracia”. Estão lá referências sobre o modo como a Sabesp lidou com a crise hídrica – “enquanto as condições de abastecimento pioravam copiosamente, em desabrida evaporação, a Sabesp foi aos meios de comunicação de massa para falar bem de si mesma” – e a contínua ampliação dos veículos “presenteados com dinheiro federal” vindo da publicidade, que ano passado beirava os 10 mil, ante 499 em 2003, fenômeno que se repetiu em outras instâncias, como o governo do Rio de Janeiro, o mais atingido pela queda generalizada da aprovação das gestões públicas pós-junho de 2013.

No primeiro caso, a justificativa era orientar a população sobre a necessidade de se economizar água; no segundo, democratizar a propaganda federal; e no terceiro, a prestação de contas da gestão. Em todos, para Bucci, o objetivo fundamental e final é o benefício eleitoral. E pelo que os exemplos mostram, a postura é suprapartidária e envolve não só os governantes de plantão, mas também parlamentares que se beneficiam do mesmo sistema – em não poucos casos, contemplados também pelo lucro de concessões de rádio e TV onde são veiculadas as propagandas estatais.

O Estado em busca de um espelho

De 2003 a 2007, Bucci foi presidente da Radiobrás e participou das discussões para a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), além de conselheiro da Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura. O jornalista não comete indiscrições nem faz acusações pessoais contra políticos ou outros agentes públicos cuja atuação desvirtua o conceito de comunicação pública, um tema controverso mesmo no meio acadêmico, como o próprio jornalista descreve. No entanto, deixa claro o quanto as tentativas de mudar práticas da estatal federal foram barradas por ingerência político-partidária e como sua aceitação no colegiado da fundação paulista, após a passagem na gestão petista, dependeu do aval pessoal do governador tucano da época.

Na análise dos dois aparatos que Bucci conheceu por dentro, a descrição dos problemas difere, mas a essência – a ameaça do governismo e da falta de independência administrativa e financeira sobre TVs e rádios a eles vinculados – é praticamente a mesma.

Num misto de resignação e ceticismo, Bucci conclui seu estudo com seis medidas para se “pensar a elaboração de projetos de lei com o objetivo de sepultar o patrimonialismo que usurpa a comunicação pública no Brasil”, mas reconhece que são “poucos e improváveis” os interessados em mexer nesse vespeiro.

Se havia alguma dúvida a esse respeito, o documento interno da Secretaria de Comunicação Social da Presidência revelado pelo Estado na semana passada não poderia ser mais eloquente como exemplo de que o Estado brasileiro é um Narciso em busca de um espelho, desde que ele reflita o que os políticos, e não a sociedade, querem ver.

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Iuri Pitta, do Estado de S.Paulo