Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Jornalistas são os cães de guarda da democracia”

“Ou você apaga essa matéria ou apagamos você.” Esta foi a sentença que o jornalista americano Jake Adelstein ouviu de um testa de ferro da Yakuza, a temida máfia japonesa. A razão para a ameaça era uma reportagem que Jake estava escrevendo sobre Tadamasa Goto, o chefe da Yamaguchi-gumi, uma das três grandes facções da Yakuza. Durante uma conversa com um mafioso, Jake ouviu, por acaso, que Tadamasa Goto, o Goto-gumi, havia sofrido um transplante de fígado nos Estados Unidos. Como um mafioso desse porte conseguira entrar no país, furar a fila do transplante, ser bem-sucedido na cirurgia e voltar saudável ao Japão?

Jake se deu conta de que tinha um furo e foi atrás. Descobriu que o Goto-gumi vendera ao FBI segredos da Yamaguchi-gumi, com a delação de outros membros da organização, em troca da entrada nos Estados Unidos. Goto-gumi também tinha relações com a Coreia do Norte, fato que interessou aos americanos.

Esta é apenas uma das histórias que Jake Adelstein, 42 anos, conta em seu livro Tóquio proibida – uma viagem perigosa pelo submundo japonês (Companhia das Letras), que acaba de ser lançado no Brasil. O título da edição brasileira é bem adequado às múltiplas peripécias que Jake viveu no império do Sol Nascente.

Em 1992, Jake era apenas um estudante da Universidade Sofia, em Tóquio, mais um americano vivendo de aulas de inglês e outros bicos, entre eles massagem sueca para japonesas ricas. Um dia se viu desempregado e cismou que ia trabalhar como jornalista. Em pleno Japão. Procurou aprimorar o japonês e concorreu a uma vaga no Yomiuri Shimbun, um dos mais prestigiados jornais do país. Conquistou a vaga e, como todo bom foca, foi designado para trabalhar na editoria geral, recebendo broncas e eventuais elogios dos repórteres mais experientes. Não tardou e Jake estava cada vez mais se embrenhando numa realidade que nem sonhava existir – o perigoso submundo do sexo, do crime e da contravenção, o território por excelência da Yakuza e de suas facções criminosas.

Experiências dramáticas

O ápice de sua experiência foi o destacamento para trabalhar na divisão de costumes do jornal, em Tóquio, quando Jake passou a ter contato direto com Kabukicho, zona barra pesada da capital japonesa. “Em matéria de áreas de entretenimento, em 1999 nenhuma ganhava de Kabukicho em sordidez”, escreveu ele. “Drogas, prostituição, escravidão sexual, bares de preços extorsivos, casas de garotas de programa, salões de massagem, salões sadomasoquistas, mais de cem facções da Yakuza, máfia chinesa…”

Para um gaijin, entrar em espaços restritos a japoneses representava situações de alto risco, mas Jake não se intimidava. Em seus contatos com a polícia, acabou se aproximando de fontes importantes para o seu trabalho, tornando-se amigo de algumas delas, como o policial Seikiguchi, que acabou se tornando seu amigo e mentor.

A experiência de Jake Adelstein como repórter do Yomiuri Shimbun durou 12 anos. Casou-se com uma japonesa e teve filhos. As extenuantes jornadas como repórter e a batalha contra o Goto-gumi, que acabou tirando o mafioso de circulação, cobraram um alto preço a Jake. “Segundo um médico, sofro de distúrbio de estresse pós-traumático e não consigo dormir bem à noite, se é que consigo dormir”, revelou nesta entrevista concedida por e-mail.

Vivendo de dois a três terços de cada mês no Japão, Jake diz que ainda não se sente completamente seguro quando vai ao Japão, mesmo sabendo que Tadamasa Goto está fora de circulação, tendo-se transformado num praticante do budismo.

Apesar das experiências dramáticas que viveu como repórter – numa delas, perdeu uma fonte e amiga, a inglesa Lucie Blackman, morta enquanto trabalhava em Tóquio como acompanhante – e de ter sentido na pele o poder da Yakuza, Jake mantém o otimismo: “O crime organizado está perdendo a batalha.” Para ele, o jornalista tem um dever cívico perante a sociedade. “Somos os cães de guarda da democracia”, escreveu ele de Tóquio, onde está no momento fazendo pesquisas para seu segundo livro. Lá escreveu também uma matéria sobre o envolvimento de Shimada Shinsuke, uma celebridade da TV japonesa, com a Yakuza. Shimada Shinsuke acabou se demitindo depois do escândalo. A matéria pode ser lida no site Japan subculture, do qual Jake é editor-assistente.

Em seguida, a entrevista.

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“As regras da Yakuza”

Você tinha uma visão do Japão quando concorreu a uma vaga de repórter do Yomiuri Shimbun. Como vê o país hoje, depois de viver as experiências contadas no livro?

Jake Adelstein – O Japão é um grande país e eu gosto muito dos valores culturais daqui, especialmente entre os mais idosos. É admirável a importância que dão à reciprocidade, à gentileza e também a algum estoicismo. No entanto, o país é empestado pela corrupção endêmica e o desastre nuclear de Fukushima ilustra isso da pior maneira.

Como é seu contato hoje com o Japão? Você continua ligado às fontes descritas no livro?

J.A. – Permaneço no Japão de dois a três terços de cada mês, algumas vezes até mais tempo, no verão. Ainda mantenho contato com muitas fontes. Algumas deixaram a indústria do entretenimento e fizeram bons casamentos. Estou feliz por elas.

“Ou você apaga essa matéria ou apagamos você”, ameaçou o testa de ferro da Yakuza. Esse foi seu pior momento como repórter no Japão?

J.A. – Sim, provavelmente foi meu pior momento como repórter. Houve outro momento ainda pior, mas não gosto de relembrar nem de discutir isso. Acho que aquele momento me fez perceber que minhas escolhas não afetavam apenas a mim, afetavam também meus amigos e pessoas com quem eu me preocupava. Acho que tenho problema para me tornar íntimo de alguém porque sempre chega o ponto em que avalio se essa pessoa poderia sofrer algo terrível porque isso me machucaria.

Eis como funciona o pior da Yakuza: é como se fossem as regras de um compromisso. Regra número 1: algo ou alguém que você ama será usado contra você para destruí-lo e, se não pudermos destruí-lo, destruiremos a pessoa que você ama, ou a reputação de ambos. Regra número 2: para descobrir quem você ama, faremos com que seus amigos fiquem contra você. Nós o tentaremos, usaremos coerção e mentiras, fazendo com que eles o traiam. Eventualmente faremos com que você fique sabendo que ele o traiu, de modo que você não possa confiar em mais ninguém. Regra número 3: quando você está só e isolado, é mais fácil matá-lo. Regra número 4: se não pudermos matá-lo, faremos com que sua vida se torne tão difícil a ponto de você querer se matar, ou pareça ter motivos plausíveis para isso, e então encenaremos seu suicídio. Isso é o que um dos subordinados de Goto me explicou. Ele estava recitando a filosofia de Goto sobre a vida e os inimigos. Explicou isso sem qualquer emoção, da mesma forma que se explicam as regras de um jogo de damas a uma criança. Ele me mostrou como essas regras tinham sido aplicadas a mim. Foi muito assustador.

“Não quero que alguém morra por causa de uma reportagem”

De acordo com seu livro, a Yakuza não é uma organização uniforme, dentro dela existem gradações. É possível dizer algo favorável a essa máfia? Ou a máfia é sempre a máfia?

J.A. – Sabe, há alguns anos eu teria respondido que a Yakuza é um câncer no corpo do Japão que deveria ser erradicado, mas cada organização é diferente e algumas delas realmente mantêm seu código. O código é não roubar, não estuprar, não trapacear e não matar alguém que não seja um yakuza. E deve-se ajudar em casos de emergência nacional. Há chefes yakuzas que mantêm seus códigos e expulsarão qualquer membro que venha a quebrá-los. No entanto, é engraçado que chantagem e extorsão não estejam incluídos nesses tabus. Perguntei a um chefe dessa máfia por que isso acontecia, e ele me respondeu: “Se você está sendo chantageado pela Yakuza é porque você deve ter feito algo muito ruim e, por isso, merece. Isso é justiça social.” Quando vejo o jeito como estão substituindo a velha guarda, fico na dúvida se banir a Yakuza é a melhor política porque as novas gangues não têm código algum, nem pretendem tê-lo. Talvez o Japão esteja certo ao admitir a existência da Yakuza e regulá-la.

Como repórter, você viveu uma situação terrível que pôs em risco sua família e seus amigos. Até onde você seria capaz de ir por uma boa reportagem?

J.A. – Não sei até onde eu poderia ir por uma boa reportagem. Não quero queimar uma fonte. Não quero que alguém morra por isso. Tudo tem um limite. Sempre haverá novas reportagens. As pessoas têm somente uma vida.

“A imprensa pode ser intimidada”

Você se sente seguro quando vai ao Japão, mesmo sabendo que Goto-gumi não representa mais uma ameaça?

J.A. – Não, nunca me sinto seguro. Mesmo assim, vou. Goto ainda está por lá. Ele não gosta de mim. Nem ele, nem alguns companheiros dele. Mas tento lidar com isso da melhor forma possível. Me recuso a levar uma vida dominada pelo medo. Tudo que tem começo, tem fim. Se eu não puder manter minhas obrigações e promessas, farei outra coisa. Mas, até onde for possível, viverei de acordo com o que prego, permanecerei no Japão e continuarei trabalhando como jornalista investigativo.

Seu livro mostra como a Yakuza se espalhou pelo mundo dos negócios, intimidando todos, inclusive a imprensa. Nesses termos, é possível pensar em liberdade de imprensa no Japão?

J.A. – Onde é que existe de fato liberdade de imprensa? Tudo se tornou parte de um monopólio corporativo. Vivemos na era da Corporação da Notícia. Os interesses e as extravagâncias dos donos das corporações triunfam, com frequência, sobre a verdade. A imprensa pode ser intimidada. Às vezes, ela é capaz de exibir coragem, ou pode ocorrer de um repórter inteligente e muito corajoso conseguir publicar suas reportagens.

“Fontes podem se tornar amigas”

Você teve uma experiência rica como repórter do Yomiuri Shimbun. Como compara o estilo da imprensa no Japão e nos Estados Unidos?

J.A. – No Japão, repórteres dos jornais nacionais são mais bem pagos e têm uma segurança melhor no trabalho. Às vezes, dependendo do ritmo, o trabalho consome todo o seu tempo, em especial a ronda policial. Você nunca tem um dia de folga, exceto aos domingos. Você tem seis prazos de fechamento por dia para os jornais matutinos e vespertinos. Sobra pouco tempo para lazer, para fazer exercícios ou simplesmente para dormir.

Sua reportagem sobre o Goto-gumi foi, em parte, um lance de sorte, já que você ouviu a história por acaso, numa conversa com um membro da Yakuza. Você se acha um repórter de sorte? As coisas podiam ter ocorrido de um jeito melhor?

J.A. – Não sei se tive sorte ou se fui um peão numa luta interna pelo poder dentro da Yamaguchi-gumi. Talvez nunca venha a saber. Acho que surpreendi muita gente ao ultrapassar meus limites de peão, jogando como se fosse um bispo. Meu palpite inicial é que tive sorte, mas o fato é que passei mais de três anos trabalhando na reportagem e pesquisando centenas de páginas de documentos para conseguir escrevê-la.

Você foi muito amigo de Sekiguchi, um policial experiente que o ajudou bastante. Até onde vai a proximidade de um repórter com sua fonte?

J.A. – Fontes podem se tornar amigas e, quando se tornam amigas, você deve tratá-las como qualquer outro amigo. Você cuida deles, tenta ajudá-los, dá conselhos, divide alegrias, defende sua reputação e se sacrifica por eles. Às vezes, eles retribuem. Acho que um de meus defeitos como jornalista é muitas vezes ultrapassar o limite entre o repórter e a fonte. Com toda a honestidade, não me arrependo muito.

“A biografia de um antigo chefe da Yakuza”

Um aspecto impressionante de seu livro é mostrar quão difícil é enfrentar a Yakuza. Você se sentiu mais confiante na justiça, depois de tê-lo escrito?

J.A. – Justiça é uma coisa rara neste mundo. As pessoas se livram de seus crimes com mais frequência do que você pode acreditar. A justiça é como o carma. Gostaria de acreditar que existe, mas não estou bem certo. Enquanto escrevia meu livro, aprendi que tinha amigos que podiam arriscar suas vidas e reputações por mim. Eu me emocionava com isso. Nunca me esqueci dessas demonstrações de amabilidade. Somente nos piores momentos é que descobrimos quem são nossos melhores amigos.

Seu novo livro, The last yakuza(O último yakuza), irá abordar a vida de antigos membros da Yakuza, não é? Podia falar um pouco sobre ele?

J.A.O último yakuza é a biografia de um antigo chefe da Yakuza. Nela, examino por que ele deixou a organização. Por meio da história de sua vida, tentarei descrever os últimos trinta anos da história dessa máfia.

“Jornalismo investigativo é uma vocação e um dever”

Seu livro mostra como a Yakuza se tornou uma parte importante da sociedade japonesa. O crime organizado está vencendo a batalha?

J.A. – Acredito que o crime organizado está perdendo a batalha. A Agência Nacional de Polícia, sob a importante liderança de Ando Takaharu, tem obtido avanços extraordinários no combate ao crime organizado. Tenho muito respeito por Ando. Ele fez mais em dois anos do que tudo que se conseguiu realizar nos últimos vinte. Conseguiu incluir na contabilidade de quase todas as prefeituras do Japão cláusulas que excluem e criminalizam subornos, pagamentos e uso de serviços da Yakuza. Isto representará um impacto tremendo. Em Tóquio, as medidas terão efeito a partir de 1º de outubro. Igari Toshiro, meu advogado e mentor, morreu misteriosamente ano passado, provavelmente assassinado. Ele teve grande influência no processo de remoção da Yakuza da sociedade. Foi o pai da cláusula de exclusão do crime organizado, basicamente uma pequena cláusula que hoje é padrão na maioria dos contratos e faz com que o subscritor admita ou negue que está ligado à Yakuza e o notifica que, se ele for da Yakuza ou a ela associado, terá o contrato anulado. Yakuzas que abrem conta em banco e mentem são rotineiramente presos por fraude, com base naquela cláusula.

Fiz algumas boas ações e escrevi artigos que ajudaram a estimular uma mudança positiva no Japão. No entanto, carrego minhas feridas, físicas e mentais, que provavelmente nunca me abandonarão. Segundo um médico, sofro de distúrbio de estresse pós-traumático e não consigo dormir bem à noite, se é que consigo dormir. Einstein disse certa vez: “O mundo é um lugar perigoso, não porque as pessoas são más, mas por causa das pessoas que nada fazem contra o mal.” Faço o que posso. Isso é parte do dever cívico; é parte do que acredito que devemos fazer como jornalistas. Espera-se que busquemos justiça social. Talvez eu pareça um idealista idiota ao dizer isso, mas jornalistas são os cães de guarda da democracia e nossa função é importante. Não acredito que ser jornalista investigativo seja um emprego; é uma vocação e um dever. Geralmente, sinto orgulho do que faço.

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[Paulo Lima é jornalista e escritor, editor da revista eletrônica Balaio de Notícias]