Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A arte de sujar os sapatos

O livro que você tem nas mãos foi, durante muitos anos, provavelmente a raridade bibliográfica mais procurada por jornalistas brasileiros. Em outra tradução, com o título Aos olhos da multidão, sem prefácio e dois textos que agora vieram torná-la ainda mais rica, essa jóia foi lançada em 1973, pela editora carioca Expressão e Cultura – e nunca mais reeditada.

Por falta de leitores interessados não terá sido. Tão logo desapareceram das livrarias, aqueles feios exemplares com capa laranja tornaram-se objeto de caça nos sebos, onde, ao longo de três décadas, eram arrematados a preço de livro recém-saído da impressora. Muitos deles, propriedade de felizardos, se esfrangalharam de tanto entrar em máquinas de xerox, para que o texto pudesse alcançar outras mãos, outras gerações – e não apenas de jornalistas.

Depois de atravessar as páginas que precedem este posfácio, você já não terá dúvidas a respeito do que faz de Fama e anonimato um livro tão especial. Terá entendido por que esta coletânea de textos jornalísticos, alguns deles escritos há mais de quarenta anos, guarda ainda o frescor de coisa nova. Não tem data de validade. Números e idades, é óbvio, caducaram; os 34 quilômetros de fio dental que a população de Nova York desenrolava todos os dias no início da década de 1960, por exemplo, estarão hoje várias vezes multiplicados, assim como os 150 mil olhos de vidro que naquela época fingiam ver a cidade.

Nem por isso, contudo, se esmaeceram as histórias e seus personagens, cobrindo-se da sépia das velhas fotografias. São textos que falam ao leitor de hoje, sem rouquidão, com a mesma voz límpida com que falavam ao das revistas para as quais foram originalmente escritos, tanto tempo atrás. São notícia que continua sendo notícia, poderia dizer quem quisesse recorrer à fórmula célebre do poeta Ezra Pound para definir literatura.

Mas não se trata, fique claro, de literatura, esse território onde o escritor está autorizado a se mover com a ilimitada liberdade de um deus que espalhasse galáxias no vazio do Universo. Não há, no que escreve Gay Talese, nada que não tenha sido pinçado da realidade e exaustivamente checado e conferido antes de baixar ao papel. É jornalismo. Mas não o jornalismo usual, predominante, esse em que o repórter, em nome da imprescindível busca da objetividade, se sente desobrigado de servir ao leitor mais que uma pilha de informações descarnadas – como se fosse isso a realidade. Como se a informação devesse ser, goela abaixo do leitor, uma espécie de pílula para astronauta, que nutre sem a obrigação de ser palatável. Como se, provindos da mesma raiz latina, saber e sabor não pudessem andar juntos.

Não é esse, decididamente, o jornalismo de Gay Talese, que no final dos anos 50 resolveu pegar uma contramão na mesmice quase unânime da imprensa americana. No rastro de pioneiros como John Hersey e Joseph Mitchell, já publicados nesta coleção da Companhia das Letras, o jovem Talese ajudou a abrir a picada do que veio a chamar-se New Journalism, no Brasil mais conhecido como jornalismo literário – aquele que, sem se afastar do trilho da informação, busca torná-la também saborosa, enriquecendo-a com recursos da narrativa de ficção.

‘Reportagem externa’

Pois não basta que a informação seja bem apurada: é preciso que ela – e, portanto, o leitor – seja bem tratada. Não como atitude de alguém que, no fundo, preferisse estar fazendo literatura. Nada disso. Ao se valer de instrumentos da narrativa de ficção, o bom jornalista, longe de querer embonitar seu texto, está empenhado numa indispensável empreitada de sedução – sem a qual corre o risco de simplesmente não ser lido.

No que se refere à busca da informação, para começar, Gay Talese pertence ao time dos repórteres que saem à rua. O rótulo, que em outros tempos soaria galhofeiro, acabou por se converter em amarga ironia, à medida que se foi tornando rarefeita a categoria dos repórteres que se põem em campo à cata da notícia.

Entrou-se, a certa altura, por um lamentável desvio. Novas e bem-vindas tecnologias, como a internet, que deveriam ser manejadas como ferramentas adicionais, têm sido freqüentemente usadas, nessa busca, como ferramentas preferenciais, quando não únicas, dispensando o jornalista de respirar outro ar que não seja o condicionado das redações. Tudo, ou quase tudo, se resolve ali, por telefone ou diante da tela do computador – e aí está, conjugada aos cortes cada vez mais brutais nos quadros e borderôs das empresas, uma explicação para o conteúdo monocórdio que nivelou, por baixo, boa parte dos jornais e revistas. Se as fontes são iguais, por que também os frutos não o seriam?

Distorções dessa natureza só podem acabar mal, e não apenas para o pobre leitor – e foi o que aconteceu, por exemplo, no primeiro semestre de 2003, quando veio à tona o grande escândalo Jayson Blair, o repórter que, por anos a fio, encheu páginas de um dos mais respeitáveis jornais do mundo, The New York Times, com ‘reportagens’ plagiadas, quando não despudoradamente inventadas.

A imprensa em todo o mundo se ocupou da história de Blair – o mais das vezes, curiosamente, como se se tratasse de um fato isolado, circunscrito ao centenário jornalão nova-iorquino, e não de algo que poderia acontecer em qualquer publicação na qual a prática jornalística tivesse, como ali, se afastado do bom caminho.

Ex-funcionário do New York Times, cuja história não-autorizada contou num livro imediatamente clássico – O reino e o poder, de 1969 –, Gay Talese fez então um diagnóstico certeiro das circunstâncias que tornaram possível o aberrante episódio Jayson Blair. Uma das causas, disse ele numa entrevista à Folha de S.Paulo, seria a quase total ausência de contato entre chefes e chefiados, como se vivessem, uns e outros, em distintos planetas.

Num universo em que um jovem repórter dificilmente terá ocasião de trocar duas palavras com o distante, inacessível diretor de redação – como tantas vezes acontece, e não apenas na redação do New York Times –, era previsível que o chefe de Jayson Blair não tivesse mais que uma tênue idéia a respeito do profissional que ele próprio havia contratado. Entre eles reinava não a troca, mas a impessoalidade das estruturas rigidamente hierarquizadas. Esse distanciamento entre repórter e chefias acabou por conferir a Blair uma desmedida autonomia, precipitando-o num vácuo onde ele se sentiu autorizado a fazer o que bem entendesse – inclusive plagiar e inventar matérias.

Mais grave do que isso, no entanto, tem sido a já citada cristalização do hábito preguiçoso de tentar fazer jornalismo apenas no fundo das redações. Em muitas delas – no Brasil, inclusive – as saídas à rua destinam-se não mais à garimpagem de novidades, à investigação de hipóteses, razão de ser do jornalismo, mas a confirmar teses e suposições, e até mesmo a conformar a realidade, se essa não colaborar, a pautas olimpicamente concebidas por chefias iluminadas.

Fotos podem ganhar legendas antes de existirem, e redações há em que a rotina do repórter inclui o absurdo pirandelliano das aspas à procura de um autor: ‘Precisamos de alguém que diga o seguinte, dois pontos’, prescrevem editores com receitas prontas, desvirtuando o que deve ser esse serviço público chamado jornalismo. Houve mesmo o caso do redator que, solicitado por um colega a opinar sobre matéria em andamento, não se conteve ao topar com uma declaração entusiástica de Jorge Amado sobre o médium Chico Xavier: ‘Puxa, ele disse isso!’. ‘Não’, pigarreou o autor da matéria, ‘estamos negociando.’

A tal ponto se enfurnaram os profissionais no fundo das redações que alguns anos atrás, na sucursal paulistana do Jornal do Brasil (onde, justiça seja feita, isso não acontecia), o repórter Ricardo Kotscho criou o que, infelizmente, não era só uma piada: a expressão ‘reportagem externa’. Hiperbólico, Kotscho chegava a pregar o corte das linhas telefônicas, única forma, argumentava ele, de desentocar os jornalistas de gabinete – pois se chegou a cobrir enchente por telefone. Hoje, mesmo no espaço nobre de publicações graúdas, longas entrevistas são feitas sem que o jornalista veja a cara do entrevistado.

A um colega, intrigado ao vê-lo abancado, quase todo dia, numa cadeira de engraxate na alameda Santos, Ricardo Kotscho explicou: ‘É que eu preciso! Repórter que vai à rua suja os sapatos’.

Narizes torcidos

O elegante Gay Talese certamente sujava os dele, sem economia de couro nem tempo, enquanto foi repórter. E pôs os pés no jornalismo ainda muito jovem – aos quinze anos de idade, quando começou a escrever sobre beisebol num semanário de Ocean City, a pequena ilha no estado de Nova Jersey onde nasceu em 7 de fevereiro de 1932.

Não que fosse ligado em esportes. Não tinha sequer o physique du rôle, e provavelmente causava espécie no colégio, por ser o único aluno que assistia às aulas de paletó e gravata. Janota em miniatura, funcionava na verdade como manequim ambulante da alfaiataria do pai, Joseph Talese, italiano que em 1922 tomara o rumo da América e a ela já adaptara seu nome, Giuseppe. Nos modos refinados do garoto certamente pesava também a influência da mãe, Catherine DePaolo, responsável pelo setor de compras de uma loja de departamentos. Dela herdou, ainda, uma característica que muito útil lhe seria no ofício de repórter: a paciência para ouvir os mais arrastados relatos sem interromper o interlocutor.

A coluna de beisebol no Ocean City Sentinel-Ledger caiu no colo do aluno Talese um pouco por acaso – o técnico do time do colégio pediu que lhe quebrasse um galho –, mas não lhe caiu mal: se não chegava a ser fanático por esportes, foi por essa via que veio a descobrir, no jornalismo, uma opção perfeita para quem, como ele, era curioso, porém tímido. A reportagem, contou mais tarde, lhe daria o pretexto para, superando a timidez, atender à curiosidade por aquilo que mais o fascinava: as pessoas e suas histórias.

Na Universidade de Alabama, onde estudou de 1950 a 1953, a escrita jornalística de Talese começou a se tornar também literária, graças à leitura de autores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Carson McCullers.

Foi nessa altura, lembra a biógrafa Barbara Lounsberry em Portrait of an (nonfiction) artist, que Talese atentou para dois diferentes usos da palavra escrita: enquanto os jornalistas escrevem sobre os vitoriosos, os ficcionistas se ocupam, em geral, de gente comum – não raro perdedores. Dirá mais tarde, no prefácio a O reino e o poder:

‘Em cada um de meus livros há um fascínio pelas verdades mais obscuras da natureza humana, um desejo de ir além da fachada e tocar os nervos e as nuances da vida privada. Há muito acredito que o realismo é fantástico, que os sonhos e impulsos da América moderna, se narrados com exatidão, podem ser tão socialmente significantes e historicamente úteis quanto as vidas e situações fictícias criadas por dramaturgos e romancistas.’

O jovem Talese se dispôs a fazer na reportagem o que seus autores preferidos faziam na literatura. Mas não o faria imediatamente. Seu primeiro emprego, na redação do New York Times, recém-saído da universidade, era tão subalterno que não incluía redigir sequer uma linha para publicação. Foi por insistência sua junto aos editores, aos quais oferecia sugestões de pauta, que aquele foca – cuja elegância no vestir-se ressaltava em meio ao desalinho dos colegas – começou, pouco a pouco, a emplacar matérias.

A partir de 1956, Talese trabalhou na editoria de Esportes do jornal. Já punha em prática, então, o hábito de voltar interminavelmente aos personagens que achava mais interessantes. Sobre o boxeador Floyd Patterson, por exemplo, campeão mundial dos pesos pesados (1956-59 e 1960-62), ele escreveu nada menos de 38 artigos. Perdeu a conta das vezes que o viu esmurrar sparrings e sacos de areia nos ginásios onde Patterson treinava. Chegou, arquejante, a correr a seu lado, literalmente suando a camisa para edificar uma intimidade que lhe permitirá dizer: ‘Eu era a sua segunda pele’.

Deslocado, em 1959, para a editoria de Política, Talese deu-se menos bem. Comparados aos atletas, os figurões do meio lhe pareciam desinteressantes. Pior que isso, ele já não dispunha de tanta liberdade para escrever. Os editores mexiam demais no seu texto. Tendo se insurgido contra essas interferências, acabou punido: durante um ano inteiro, esteve exilado na seção de obituários do New York Times, onde, ainda por cima, lhe tocava ocupar-se de defuntos de segunda classe. A experiência ali vivida, no entanto, seria proveitosa, como adiante se verá.

Inconformado, Gay Talese deu um jeito de tirar o pé da cova profissional a que os superiores o haviam condenado. Obstinadamente, apresentava pautas à editoria de Notícias Locais, e, se eram recusadas, ia oferecê-las, com mais sucesso, ao suplemento dominical da casa. Ao mesmo tempo, começou a escrever na prestigiosa revista Esquire. Em meados de 1965, deixou o New York Times – e, para sempre, o jornalismo diário. Ganhou respiros mais largos para produzir não apenas reportagens, várias das quais perpetuadas em coletâneas, entre elas Fama e anonimato, como também livros monotemáticos.

O primeiro dedicado a um só tema foi O reino e o poder, história do New York Times, de seu surgimento, em 1851, até 1968. Para surpresa dos próprios editores, o livro se dependurou nas listas de best-sellers e lá permaneceu por seis meses. Nas duas maiores revistas semanais de informação do país, Time e Newsweek, alcançou o primeiro lugar – mas no New York Times, observa Barbara Lounsberry, onde narizes se torceram para a forma como o jornal foi retratado, não passou da segunda colocação.

Perfil jornalístico

Outros êxitos de vendas e de crítica haveriam de vir, como Honrados mafiosos, história de uma família de imigrantes italianos, os Bonanno, desde a sua chegada aos Estados Unidos, na última década do século 19, a 1971, ano em que o livro foi publicado. Para conhecer as entranhas da máfia, Talese precisou tornar-se amigo do filho do chefão Joe Bonanno, Bill, ao cabo de delicadas e arrastadas manobras de aproximação que se estenderam por vários anos.

Mais trabalho ainda lhe custariam as pesquisas para escrever A mulher do próximo, de 1980, luxuriante (e, eventualmente luxurioso) painel das transformações por que passou a moral sexual americana, de meados do século XX às vésperas do surgimento da aids – revolução em que Talese julgou ver a maior das histórias de seu tempo. Para poder contá-la, foi às últimas (penúltimas, vá lá) conseqüências, entregando-se às mãos de uma calejada masturbadora, numa casa de massagem, cena que descreve no livro sem omitir seu próprio nome e suas impressões. Pôs em risco um casamento que lhe era caro, ao penetrar radicalmente nesse universo, primeiro como cliente, depois como gerente, não remunerado, de uma casa – onde, descoberto por um colega, ganhou incômoda notoriedade na imprensa, não como o aplicado pesquisador que era, mas como ‘um jornalista lúbrico chafurdado em prazeres oleosos’.

As aspas são do próprio Talese, que não hesitou em converter-se em personagem (‘magro, olhos negros, 43 anos e cabelos castanhos começando a ficar grisalhos’) de A mulher do próximo. Sempre em terceira pessoa, não esconde ali o assombro que essa imersão no mundo da libertinagem significou para um homem como ele, nascido e criado na comunidade vitoriana de Ocean City, sob um clima tão repressivo que só no segundo ano da faculdade ousou masturbar-se pela primeira vez.

Como se vê, na feitura de um livro como na de uma reportagem Talese nunca deixou de sujar seus sapatos (e até mais que isso, no caso de A mulher do próximo) na incansável mineração do ouro jornalístico, reluzente em vários dos textos incluídos neste livro.

Lembre-se, por exemplo, de ‘Como não entrevistar Frank Sinatra’, o instrutivo making of da reportagem ‘Frank Sinatra está resfriado’, no qual Talese fala das longas semanas que perdeu, entre aspas, na tentativa de entrevistar ‘The Voice’ para a revista Esquire, em 1965. Tentativa que, embora frustrada, lhe permitiu escrever algo ainda melhor do que teria sido uma simples entrevista: um perfil antológico, ainda hoje destrinchado não só por estudantes de jornalismo como por profissionais já rodados, na esperança de aprender uns truques, e saboreado também por leitores que nada têm a ver com o ofício.

Na leitura desse making of, você ficou sabendo que, na impossibilidade de falar com Sinatra, Talese tratou de ouvir dezenas de pessoas de alguma forma ligadas a ele e capazes de contribuir, com pouco que fosse, para a construção de um retrato vívido, sólido, verossímil e original de uma estrela já exaustivamente enfocada pela mídia. Observou Sinatra em diferentes situações, afiou sua antena para captar detalhes – algo que tantos jornalistas não se preocupam em fazer, atentos que estão exclusivamente às palavras, como se aquela pessoa fosse uma emanação de aspas, e não um ser humano com rosto e roupa, jeitos e gestos, características que o tornam singular, diferente de qualquer outro, e já por isso interessante. Às vezes, nem às palavras o repórter presta atenção: não é sem boas razões que Talese verbera o mau uso do gravador, instrumento que freqüentemente dispensa o repórter de registrar de fato o que lhe é dito, de desenvolver a memória seletiva – uma vez que ‘tudo’ ficará gravado na fita.

A extensa reportagem que a Esquire publicou (e, em 2003, republicou, como encarte, por considerá-la a melhor da revista em seus setenta anos de vida) é primorosa ilustração do que deve ser um perfil jornalístico: um esforço para desvendar o personagem de todos os ângulos, sob diferentes luzes. O que muitas vezes se serve ao leitor sob esse rótulo não passa de uma entrevista em que o repórter meramente põe em texto corrido o que eram perguntas e respostas, sem o cuidado de iluminar o personagem por meio de depoimentos de outras pessoas. Um Procon jornalístico, que talvez fosse o caso de se criar, alertaria o leitor: isto não é um perfil – é, no máximo, um ‘de frente’.

Esconderijo da notícia

Se escreveu sobre gente famosa, como Sinatra, os pugilistas Floyd Patterson e Joe Louis, o ator Peter O’Toole e o astro do beisebol Joe DiMaggio (em cujo pedigree cintilava o feito eventualmente maior de ter sido casado com Marilyn Monroe), Gay Talese sempre pareceu mais atraído por personagens anônimos – não fosse filho de um imigrante que deu duro para se fazer na América, e que ele, aliás, transformou em personagem no livro Unto the sons, de 1992. Homens como Alden Whitman, o ‘Sr. Má Notícia’, redator de necrológios do New York Times, permanentemente assombrado pela hipótese de que algum figurão viesse a morrer sem que ele, tão zeloso quanto perfeccionista, pudesse prontamente exumar um texto de seu arquivo de defuntos em potencial. Ou criaturas ainda mais obscuras, mas sempre interessantes, como as faxineiras, os motoristas e os cobradores de ônibus de Nova York, protagonistas do fascinante feixe de reportagens intitulado ‘A jornada de um serendipitoso’.

Impossível esquecer, nesse capítulo dos anônimos, os operários que, entre 1961 e 1964, trabalharam na construção da formidanda ponte Verrazano-Narrows, ligando os distritos de Brooklyn e Staten Island, em Nova York. Trabalho que, como você viu, Talese, por sua conta e risco, acompanhou passo a passo, rebite por rebite, visitando o canteiro de obras, mesmo em seus dias de folga, com tamanha assiduidade que por pouco não entrou na folha de pagamento da construtora. Tornou-se amigo e freqüentou a casa de alguns daqueles operários.

Mas o radar sensibilíssimo de Talese não se limitou a registrar o que se passava na obra. Fuçador irrefreável, ele se interessou também pelo transtorno que a construção da ponte estava causando entre os moradores dos lugares onde seriam fincadas as extremidades da Verrazano-Narrows. O desespero e a raiva dos que seriam removidos. O temor do agente funerário Joseph V. Sessa, que, mesmo tendo conseguido preservar o seu negócio, via com inquietude a transferência de 25 mil famílias que ele, pragmática ave de mau agouro, já contabilizara como clientes certos.

Nada disso, evidentemente, era aquela notícia imperiosa de que se alimenta o imediatismo da mídia. Nenhuma daquelas histórias exigia ser publicada no dia seguinte. Mas Talese nunca foi um repórter muito ligado no furo jornalístico. Preferia garimpar tesouros que podem estar embaixo do nariz de todo o mundo, mas que quase ninguém vê – até que um repórter de raça, movido por algo mais que a obsessão do furo, vá lá e conte. Quem poderia imaginar a cornucópia de assuntos fascinantes escondida na construção de uma ponte? Pois Gay Talese fez mais. Não só trouxe à tona esses assuntos, escrevendo a saga de grandes heróis miúdos, como a eles retornou, muitos anos depois, pela curiosidade de saber: que fim levaram?

É algo que, na correria das redações, mas também na imaginação rasa de muito jornalista, poucos profissionais se lembram de fazer. A imprensa costuma tratar intensivamente um determinado assunto – para de repente, como um predador, abandoná-lo no caminho. Raros são os que se interessam por essa, digamos, carcaça da notícia.

(Para ficar entre os brasileiros: depois de muito falar nela, a mídia esqueceu D. Leda Collor, internada fazia meses num hospital de São Paulo – até que um repórter da Playboy, Marcos Emílio Gomes, lá se metesse para contar que a mãe do ex-presidente da República continuava viva, em estado vegetativo e praticamente sem receber visitas. Tão abandonada – informa a reportagem, publicada em janeiro de 1994 – que um bolo de aniversário levado por uma filha acabou, por falta de convivas, sendo comido pelas enfermeiras. D. Leda, cujo martírio durou quase novecentos dias, ainda viveria, se assim se pode dizer, mais um ano.)

Em 2002, quatro décadas depois da construção da ponte Verrazano-Narrows, Gay Talese voltou ao lugar e ao tema para rematar velhas histórias na reportagem que se chamaria ‘Na ponte’. Com setenta anos de idade, pique de vinte e a pertinácia de sempre, metido em seus ternos de corte irrepreensível, ele acompanhou uma das reformas por que passa a gigantesca estrutura metálica a cada dez anos. Constatou que O. H. Ammann, engenheiro chefe e autor do projeto, já tinha morrido, e que Robert Tozzi, humilde cobrador de pedágio, era, agora, gerente geral. Talese foi atrás de veteranos da obra – para descobrir que alguns deles haviam participado, também, da construção das torres gêmeas do World Trade Center, àquela altura já postas abaixo pelo ataque terrorista de 11 de setembro de 2001.

A reportagem, publicada na revista The New Yorker e aqui reproduzida, revela que ao agente funerário Joseph V. Sessa acabou não faltando, até o fim de seus dias, em 1977, a quem enterrar – da mesma forma, pode-se acrescentar, como jamais faltará assunto a um repórter que, a exemplo de Gay Talese, se disponha a sujar os sapatos na poeira e na lama onde muitas vezes se esconde a melhor notícia.

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Jornalista