Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A crítica cultural em debate

Mais do que radiografar textos veiculados nos cadernos culturais do país, o colunista do jornal Folha de S.Paulo, Marcelo Coelho, enredou teorias de estudiosos da estética e análises de movimentos vanguardistas a fim de abarcar a atividade crítica no campo da cultura. O livro Crítica Cultural: Teoria e Prática, lançado em maio pela editora Publifolha [ver aqui registro feito neste Observatório], tem como ponto de partida o artigo depreciativo de Monteiro Lobato, escrito em 1917, sobre uma mostra de quadros da pintora Anita Malfatti.

As primeiras páginas estabelecem o embate de idéias entre os representantes do modernismo e os defensores do academicismo artístico. Marcelo Coelho identifica certa tendência conservadora da crítica quando diante de inovações artísticas. Na entrevista, o autor comenta que se trata ainda de erro recorrente dos críticos. ‘O problema é quando se tenta, de posse de determinados critérios imutáveis e rígidos, avaliar obras de arte que correspondem a uma verdadeira mudança de paradigma estético.’

Outras três grandes polêmicas da vida cultural brasileira destacam-se ao longo do livro: os prós e contras da indústria cultural, os adversários e adeptos do nacionalismo estético e as hipóteses lançadas sobre o pós-modernismo. Ao ser questionado acerca deste último tópico, Coelho defende a seguinte tese: ‘Minha idéia básica é que o pós-modernismo resolveu tomar ao pé da letra aquilo que no modernismo era uma metáfora’.

Ao falar sobre as novas formas de texto opinativo e a incorporação de novas tecnologias, Coelho ressalta que ‘a proliferação de blogs e sites é algo semelhante ao que ocorreu no século 18, com a constituição de um espaço público muito caótico e desregulado, onde sequer a questão dos direitos autorais, e mesmo da própria autoria, estavam estabelecidas. Corriam textos apócrifos e anônimos como hoje’. Como medida prática à reformulação dos meios impressos, o autor sugere o desmembramento dos cadernos culturais em pop e erudito. ‘São públicos muito diferentes.’

***

Por que a escolha do texto de Monteiro Lobato, ‘Paranóia ou Mistificação?’, como ponto de partida para a discussão da crítica cultural?

Marcelo Coelho Como o livro se baseou num curso para alunos do 3º ano do jornalismo, achei interessante começar com um texto bastante simples e pouco teórico, como o de Lobato, e que ao mesmo tempo teve grande importância histórica. É exemplo tanto de um erro clássico dos críticos – a incapacidade de se perceber a inovação artística – como também de uma atitude até hoje comum diante de arte contemporânea – a de que aquilo tudo é feito apenas para chocar, não passa de piada.

Você questiona, tendo em base a crítica de Monteiro Lobato, o papel de ‘controlador de qualidade’ e ‘medidor de obras’ do crítico cultural. Por quê?

M.C. Creio que a função de ‘medidor de qualidade’ corresponde a uma prestação de serviço por vezes útil ao leitor de um jornal ou revista, quando se trata de avaliar filmes de entretenimento ou programas de televisão. Nestes casos, estamos diante de uma produção cultural de padrões ‘normais’- um pouco no sentido em que Kuhn falava da ciência normal, aquela que visa apenas a descobrir as peças que faltam num quebra-cabeça.

O problema é quando se tenta, de posse de determinados critérios imutáveis e rígidos, avaliar obras de arte que correspondem a uma verdadeira mudança de paradigma estético, alargando ou iluminando tudo o que se entendia como arte até então.

A obediência a determinadas regras, no caso do academicismo à ‘representação do real’, acaba por simplificar demais e facilitar a análise de uma obra? É como se o que não se encaixasse nos pilares do crítico passasse a ser desprezado?

M.C. É, o crítico não entende que o artista inovador está também fazendo uma crítica inovadora das obras do passado.

Na página 36 de seu livro, você defende que a principal tarefa a que um crítico deve se dedicar é saber se uma ‘infração’ ou ‘transgressão’ dos padrões artísticos é intencional ou não por parte do artista. Como o crítico deve lidar diante de uma obra que rompa com valores tradicionais?

M.C. Creio que deve procurar, não os ‘novos valores’ que a obra de arte está propondo (isso não é claro nunca), mas de que forma a obra nova está, na verdade, reinterpretando o passado, mostrando que tanto as obras antigas quanto as novas na verdade seguiam valores que até aquele momento não eram percebidos pela crítica. 

Você cita o texto escrito pelo jornalista e médico Max Nordau como um exemplo da crítica conservadora que entendeu a arte moderna como obra de ‘insanos’. Ainda é recorrente a crítica tachar o artista como louco numa tentativa de simplificar a análise?

M.C. Creio que não. Ao contrário, muitas obras de loucos é que passaram a ser vistas, também, como formas de arte, perfeitamente apreciáveis nelas mesmas.

Desde a época das vanguardas, a crítica cultural serve muito como fonte de provocação e toma rótulos para defender certos movimentos artísticos. Não é legítima essa tomada de partido?

M.C. No livro, enfatizo muito a idéia de que a crítica, mesmo conservadora, acaba fazendo parte de um sistema, o sistema da arte moderna, se podemos assim dizer, em que escândalo e rotulação não deixavam de ser visados e absorvidos pelos próprios artistas condenados.

A crítica tem esse poder de servir como referência artística?

M.C. Creio que sim, ou pelo menos, que tinha esse poder num ambiente ainda marcado pela hegemonia do academicismo. Hoje em dia, naturalmente, o quadro é outro, e o que chamei de ‘sistema moderno’ não tem mais validade no campo da literatura ou das artes plásticas, por exemplo.

Com a fuga da realidade e a desumanização da obra de arte – o conteúdo deixa de ter importância numa obra de arte – cada vez mais o crítico adota postura elitista, como o discurso de Ortega y Gasset.

M.C. Não acho que a relação entre uma coisa e outra seja imediata. O crítico favorável à arte moderna pode muito bem, ao contrário, ser um explicador, um divulgador dessa arte, como o próprio Ortega y Gasset: elitista, mas acessibilíssimo ao leitor médio.

Uma das funções do crítico não seria tornar popular a obra de arte?

M.C. Concordo, e muitas vezes a crítica falha nesse ponto, tornando-se mais impenetrável do que a obra criticada. E nisso, sou radical: qualquer obra de arte, em princípio, é inteligível, do mesmo modo que toda fechadura tem uma ou mais chaves capazes de abri-la.

Como você enxerga a incorporação de novas formas de texto e novas tecnologias na produção da crítica cultural (blogs, sites de cinema, fórum de discussão)? É curioso notar que Mário de Andrade já falava na década de 30 sobre velocidade e quantidade de informação.

M.C. Muito do nosso espanto diante da velocidade e da quantidade das informações se assemelha ao que se falava no século 19 ou no começo do século 20. A proliferação de blogs e sites é algo semelhante ao que ocorreu no século 18, com a constituição de um espaço público muito caótico e desregulado, onde sequer a questão dos direitos autorais, e mesmo a da própria autoria, estavam estabelecidas.

Corriam textos apócrifos e anônimos, como hoje… De algum modo isso se regula: os blogs terminam sendo ‘empresariados’ por portais e provedores, assim como os autores de panfletos terminaram sendo acolhidos pelo sistema das grandes casas editoras no século 19.

Acho mais inovador, e ainda pouco explorado, o que as novas tecnologias podem fazer no campo da ilustração, do exemplo, quando se faz crítica musical ou cinematográfica. Trechinhos de uma peça poderão ser ouvidos enquanto se lê o texto de um crítico, determinada tomada ou movimento de câmera poderão ser destacados em câmera lenta, ou quadro a quadro, num texto de crítica cinematográfica.

Isso seria o equivalente da reprodução fotográfica em cores no caso da crítica de artes plásticas, que modificou bastante a relação entre descrição do objeto pintado e análise da obra no trabalho dos críticos a partir do século 19.

Ao explicar e condenar o kitsch, Clement Greenberg usa a noção de ‘prefiguração do efeito’ que seria prática recorrente na cultura de massa, ou seja, entregar a obra mastigada ao público, prescrita com todas as reações emotivas possíveis. O crítico cultural não fica num impasse já que tem como objetivo ‘digerir’ a obra ao leitor?

M.C. Creio que não, pois em tese a obra kitsch é justamente aquela que dispensa explicação e análise posterior (por parte do crítico ou do leitor, o que dá no mesmo, uma vez que todo crítico é leitor e vice-versa), trazendo em si mesma a chave e a fechadura, o texto e sua autotradução.

Como abordar a obra sem pré-fabricar ou impor seus efeitos?

M.C. De uma obra feita, não se pode pré-fabricar mais nada. O crítico fala dos efeitos que ela produziu sobre ele. É diferente de uma obra que não produz efeitos em alguém, mas sim já traz dentro dela mesma esses efeitos pré-produzidos, pré-digeridos.

A cultura pop é bastante sintomática do período cultural em que vivemos. Por que foi ignorada no livro? A única hipótese lançada por você a respeito é a de que o pop seria ‘exatamente a cultura de massa destituída de seus aspectos repressivos’.

M.C. Não vou além disso, porque sou totalmente alheio ao universo pop; os Beatles para mim não existiram.

O pós-modernismo, segundo sua visão, seria apenas um artifício retórico sobre a falta de compreensão e regras do momento cultural atual? Você parece sempre reafirmar ao longo do livro os valores do modernismo e chega a dizer que ‘o pós-modernismo seria a consumação do modernismo’.

M.C. Consumação quer dizer não continuidade, mas ao mesmo tempo superação e intensificação. Minha idéia básica é que o pós-modernismo resolveu tomar ao pé da letra aquilo que no modernismo era uma metáfora. Mas os teóricos do pós-modernismo muitas vezes parecem ignorar que tudo o que eles identificam como característico do pós-moderno já estava presente nas formulações do modernismo. O que não quer dizer que moderno e pós-moderno sejam iguais: entre o Guggenheim de Bilbao e um prédio de Mies van der Rohe há tanta diferença quanto entre o século 19 e o século 20.

Qual passa a ser a função do crítico diante do ‘ecletismo da produção cultural’, da ‘volta da pluralidade do conteúdo’ e da ‘variedade estilística’. Onde ele pode se apoiar para dar conta disso?

M.C. A volta do conteúdo facilita muito as coisas, prestando-se a uma análise política e ideológica mais direta, que um quadro de Mondrian, por exemplo, repelia. O ecletismo da produção cultural exige do crítico um olhar mais irônico, menos rígido em suas classificações. Mas a distância entre o pop e o erudito permanece, ainda que o erudito use o pop e o pop use o erudito. Usam-se mutuamente no plano dos conteúdos, do vocabulário, mas os graus de exigência e de dificuldade relativa de uma e outra obra de arte continuam tão variados – ou mais – do que antes.

Mas esse universo não tende a se misturar cada vez mais?

M.C. Creio que não, ou pelo menos não do jeito que se costuma dizer. A diferença entre graus de informação e refinamento no interior do público continua muito grande, e um público com pouca familiaridade com os códigos e com o vocabulário da arte erudita pode, naturalmente, frequentar exposições com mais facilidade, mas não deixa de ser um peixe fora d´água.

Do mesmo modo, um filme que misture referências metalinguísticas e irônicas a um enredo e uma linguagem comercial poderá ser, ele próprio, um produto híbrido, será ao mesmo tempo comercial e erudito, mas será um produto diferente para essas duas camadas de público. O mesmo acontecia com Dickens ou Michelangelo; enquanto houver desníveis culturais entre as pessoas, há desnível no grau de complexidade estético.

Não estaria em curso uma revolução da própria linguagem para se adaptar às novas obras em questão? Uma linguagem pós-moderna para tratar de obras pós-modernas.

M.C. É possível. Considero, entretanto, que a linguagem da boa crítica mudou muito menos nos últimos duzentos anos do que a linguagem das obras. Porque se trata de um esforço de análise, de trazer o ininteligível para o mundo do inteligível e do sensato. Claro que se apostou muito no hermetismo e na tecnicalização da linguagem crítica, mas isso não tem grande interesse a longo prazo.

É interessante quando você argumenta que a ‘habilidade dos críticos está em tornar convincente a mudança, que antes era reprimida… o gosto inconfessável vem mostrar-se interessante’. Agora seria artisticamente correto defender o kitsch e o trash?

M.C. Sem dúvida. É possível ver em obras antes desprezíveis camadas de significado mais ricas do que se pensava quando foram feitas.

Por que isso acontece?

M.C. Por várias razões. Uma delas é o próprio envelhecimento de determinado produto comercial. Os recursos técnicos de que dispunha para impor seus efeitos ao público foram superados com o tempo: a legibilidade, a simplicidade, a reconhecibilidade de seu vocabulário se esmaecem com o passar dos anos. Ele aos poucos vai se tornando menos legível, exigindo novos esforços de decodificação.

Ao mesmo tempo, conteúdos antes reprimidos inconscientemente pelo autor – imagino um filme que, sem saber, estava cheio de sugestões de amor homossexual – se tornam legíveis a uma sensibilidade contemporânea, mais afinada com essa temática. Um filme onde nada havia para descobrir se torna, assim, um tesouro de alusões, ainda que intencionalmente isso não passasse pela cabeça de quem o realizou.

Você conclui o livro dizendo que o ‘jornalismo atual padece de problemas de conteúdo, de forma e de dimensões éticas’. Quais seriam esses problemas?

M.C. Acho que se pressupõe um leitor que seria igual ao do público da cultura de massas, e que se por definição tal filme ou disco vende muito, será do interesse do leitor do jornal. Um filme que vende milhões pode ser interessante, como fenômeno, ao leitor do jornal, mas não do mesmo modo que é interessante para quem vai ver o filme e gosta dele. Os serviços, no jornal, melhoraram muito com guias e dicas para o leitor, mas falta aprofundamento. O didatismo muitas vezes é uma forma de xingar o leitor de burro.

Quais reformulações deveriam ocorrer nos cadernos culturais que circulam atualmente?

M.C. Acho que deveriam ter a nobreza das páginas 2 e 3 do primeiro caderno, com muito comentário e opinião diversificada. Detesto as entrevistas pingue-pongue com atores de cinema. Acho que os cadernos culturais poderiam ser desmembrados em pop e erudito, porque são públicos muito diferentes.

O que entraria, por exemplo, num caderno que seria preterido no outro?

M.C. A resenha de um livro de Merleau-Ponty e sua atualidade diante de uma exposição como a de Cézanne, por exemplo, não estaria no mesmo caderno de uma entrevista com Sandy e Júnior.

Faz sentido hoje falar em crítica cultural. Existe ainda esse tipo de texto nos cadernos culturais?

M.C. Existe, se pensarmos em colunistas como [Arnaldo] Jabor, Matthew Shirts, Contardo Calligaris, Roberto da Matta… são mistos de crítico de arte, de crítico de comportamento, de crítico da sociedade. Acho que falta mais crítica especializada do que crítica cultural propriamente dita, embora sempre se possa estar insatisfeito com o que esses críticos escrevem.

******

Jornalista