Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A década das grandes mudanças

A década de 1950 é normalmente apontada pela historiografia da imprensa como um momento de profundas transformações do jornalismo nacional, sobretudo carioca. As reformas redacionais, gráficas e editoriais do Diário Carioca em 1950 e do Jornal do Brasil em 1956, assim como o surgimento de jornais inovadores, como a Tribuna da Imprensa em 1949 e a Última Hora em 1951, são considerados marcos inaugurais de uma nova fase da imprensa brasileira.

Foi nesse período que o modelo norte-americano se implantou definitivamente no jornalismo nacional, provocando não só a modernização das empresas e dos textos, mas também a profissionalização dos jornalistas e a constituição de todo um ideário sobre o que era o jornalismo e qual era a sua função social.

As reformas dos anos 1950 assinalaram a passagem do jornalismo político-literário para o empresarial. A imprensa abandonou definitivamente a tradição de polêmica, de crítica e de doutrina e a substituiu por um jornalismo que privilegiava a informação (transmitida ‘objetiva’ e ‘imparcialmente’ na forma de notícia) e que a separava (editorial e graficamente) do comentário pessoal e da opinião.

No seu conjunto, essas mudanças parecem apontar para o processo de autonomização do campo jornalístico, sobretudo em relação às esferas políticas e literárias, que até então o dominaram. Até que ponto, no entanto, essas transformações representaram, de fato, uma ruptura radical com o modo anterior de fazer jornalismo? O que traziam de estruturalmente novo e o que representavam de continuidade em relação ao período anterior? Qual é o significado do conjunto dessas reformas (administrativas, redacionais, editoriais, gráficas e profissionais)? O que as impulsionou? Será que elas respondiam à mesma lógica de transformação do jornalismo nos países capitalistas avançados? Será que a racionalização da produção apontava para a implantação de um jornalismo de massa no país, para a incorporação da imprensa na esfera da indústria cultural? Ou será que a modernização do jornalismo nacional obedeceu a impulsos de outra ordem?

Segundo a hipótese central deste livro, foi ancorada no modelo norte-americano – centrado nos conceitos de objetividade e imparcialidade – que a imprensa (e a mídia jornalística em geral) se constituiu como um dos principais campos discursivos do nosso tempo, fundando sua legitimidade social e sua deontologia.

Imaginário da objetividade

A modernização – gráfica, editorial, lingüística e empresarial – da década de 1950 representou para a imprensa a construção de um lugar institucional que lhe permitiu, a partir de então, enunciar ‘oficialmente’ as verdades dos acontecimentos e se constituir como o registro factual por excelência. Essas mudanças constituíram um momento fundador, a partir do qual o jornalismo se afirmou enquanto fala autorizada em relação à semantização do real.

O discurso jornalístico passou a se revestir de uma aura de fidelidade aos fatos, que lhe conferiu um considerável poder social. Hoje, é principalmente por meio das suas operações discursivas que se realiza o trabalho de investimento de sentido sobre as transformações da realidade.

Isso só foi possível a partir do momento em que o jornalismo se constitui como um campo específico, com um certo grau de autonomia em relação ao campo literário e ao político. Quando se transformou numa comunidade discursiva própria, o jornalismo assegurou as condições sociais da sua eficácia.

Acreditamos que o efeito de objetividade e neutralidade do discurso jornalístico – produzido a partir das novas técnicas redacionais – foi um dos grandes responsáveis pela acolhida que ele passou a ter. A própria intenção (ou presunção) de objetividade – constantemente reafirmada nos espaços de auto-referenciação – se tornou, para quem consumia notícia, uma certa garantia. [Chamamos de lugares de auto-referenciação, os discursos através dos quais os jornalistas como profissionais ou os diferentes jornais como empresas de comunicação constróem uma imagem de si mesmo e, através deles, procuram se legitimar. Esses lugares podem se localizar no interior do próprio jornal (nos editoriais, nas cartas de leitores, nas edições comemorativas, nas retrospectivas de fim de ano ou mesmo no noticiário) ou podem estar ‘fora’ (nas propagandas institucionais, nos livros de memória dos jornalistas, em biografias etc.).]

Além disso, mesmo que se critique a objetividade jornalística como um efeito ilusório, não se pode negar a sua ancoragem factual. Normalmente, não costuma haver deformação ou mentira cabal em relação aos fatos concretos: nomes, datas, acontecimentos, não são criados ou inventados. Mas a ancoragem nos fatos, que confere ao discurso jornalístico legitimidade, também não é transparente e palpável. Baseia-se essencialmente na confiança, posto que raramente os leitores podem verificar in loco a veracidade dos acontecimentos relatados. De onde vem essa credibilidade do jornalismo? Como ele a construiu e reconstrói quotidianamente?

A objetividade e a ancoragem factual conferem ao texto jornalístico eficácia simbólica, não há dúvida, mas não se pode esquecer que o poder das manifestações lingüísticas não é apenas lingüístico. A autoridade com que se reveste a linguagem vem de fora dela, do contexto extra-verbal. O seu poder reside nas condições sociais de sua produção e de sua recepção. No caso, reside no próprio campo jornalístico e nas suas relações com a sociedade global. E é exatamente a configuração desse campo discursivo-institucional, com seus embates internos e externos, o tema deste livro.

O seu objetivo é pensar como o jornalismo carioca (e, por extensão, o brasileiro) criou, nos anos 1950, o imaginário da objetividade e da referencialidade e como construiu a expectativa dos seus leitores em torno dessas idéias. Partimos da mesma pergunta que Michael Schudson se fez ao estudar o caso dos jornais norte-americanos: ‘Que tipo de mundo é o nosso e que tipo de instituição é o jornalismo para sustentar esses ideais?’.

Procedimentos da contemporaneidade

Antes das reformas jornalísticas, ninguém esperava que os jornais fossem neutros e objetivos. A sua função era comentar os acontecimentos e, nesse movimento, era considerado normal que expressassem pontos de vista particulares. Por que isso mudou? Como os princípios norte-americanos se impuseram no interior do campo jornalístico carioca? E a que lógica e interesses eles respondiam?

Procuramos perceber também como, ao se tornar hegemônico, o modelo norte-americano sofreu um processo de adaptação e naturalização. Formalizado como técnica em manuais de redação e em livros didáticos, passou a ser ensinado nas faculdades como instrumento necessário para o exercício da profissão. Seus procedimentos discursivos deixaram de ser vistos como arbitrários, no sentido de ser um entre outros possíveis. Tenderam a ser percebidos, não como os valores de um grupo particular no interior da instituição jornalística, mas como os valores da própria instituição. A técnica aparecia como neutra. Aprender as práticas do discurso dominante passou a ser visto simplesmente como uma questão de adquirir as habilidades necessárias para operar no campo.

Na década de 1950, como o jornalismo estava em transição, essas idéias ainda não estavam naturalizadas e apareciam claramente como fazendo parte do discurso de um grupo particular, que travava embates com grupos divergentes no interior da instituição e também fora dela. E, por isto, esse período foi o escolhido para a pesquisa.

É interessante observar, além disso, que esse paradigma de jornalismo, implantado na década de 1950, tem dado, nos últimos anos, evidentes mostras de esgotamento. O fazer jornalístico, impulsionado pela ética do consumo e da sedução, guia-se atualmente por regras diferenciadas daquelas. Muitos dos critérios, métodos e formas de se fazer notícia têm sido abandonados, em prol de um outro tipo de produção. A imprensa diária tem retomado antigas fórmulas narrativas. Além de apelar à técnica literária dos diálogos e da descrição de cenas do cotidiano, tem promovido a intensificação do comentário.

O mito da objetividade, além disso, parece profundamente abalado com a crise da modernidade. A sua hegemonia já foi exaustivamente criticada pelos teóricos da comunicação e pelos próprios jornalistas.

Acreditamos, no entanto, que a idéia de objetividade ainda é uma das grandes responsáveis pela acolhida que o jornalismo tem. A mídia espetaculariza, fragmenta, pulveriza – profundamente marcada que está pelos procedimentos da contemporaneidade – mas também resguarda a legitimidade da representação objetiva.

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Parte da historiografia da imprensa costuma dividir o século XX em duas etapas bem definidas: antes e depois dos anos 1950. O primeiro capítulo deste livro começa discutindo essa periodização, tentando pensar as rupturas e as continuidades que marcaram a trajetória do jornalismo nesses anos. Nossa intenção foi levantar a discussão (que será aprofundada no terceiro capítulo) sobre os limites do conceito de indústria cultural para se pensar o jornalismo carioca. Tentamos mostrar que os jornais, com as reformas da década de 1950, apesar das profundas transformações por que passaram, não deixaram de ser políticos, mas passaram a atuar na arena política de uma outra forma. Depois de localizada essa questão, fizemos uma breve contextualização das condições macroestruturais – tanto econômicas, quanto políticas e culturais – que permitiram a superação do jornalismo literário e político e o ingresso definitivo da imprensa na fase industrial.

O significado das reformas, no entanto, só é possível de se entender a partir de uma compreensão do mercado jornalístico. Os veículos disputavam espaço, legitimidade, vendas. E isso implicava em enfrentamentos, não apenas entre jornais no interior de um mesmo universo de concorrência, mas também entre a mídia informativa e outros campos discursivos. Por isso, buscamos delinear os contornos desse universo discursivo-institucional de concorrência. Procuramos definir o capital ‘real’ e simbólico de cada um dos principais jornais, apresentando algumas de suas características internas e algumas das conjunturas mais importantes de suas histórias institucionais. O estudo se deteve, com mais cuidado, naqueles que foram pioneiros na reformulação do jornalismo: o Diário Carioca, a Última Hora, a Tribuna da Imprensa e o Jornal do Brasil.

Tentamos, sempre que possível, resgatar a dimensão interna dos jornais, não apenas no que diz respeito à sua lógica empresarial e administrativa, mas também em relação ao funcionamento cotidiano da atividade noticiosa: as práticas, os modos de pensar e agir dos jornalistas, a lógica de seu raciocínio, os mecanismos de funcionamento das diferentes redações etc.

Estilo padronizado

O segundo capítulo foi dedicado à dimensão empresarial do jornalismo carioca. A primeira questão fundamental diz respeito às suas fontes de renda: a venda avulsa ou por assinatura, o clientelismo e a chantagem, os empréstimos e privilégios públicos, o apoio de grupos privados e a publicidade. Procuramos avaliar o peso que cada um desses elementos tinha na imprensa carioca dos anos 1950. Como funcionavam as suas relações com o poder público (o sistema de concessões; o controle oficial das quotas de papel e outros insumos; os financiamentos e subsídios etc.)? Será que o desenvolvimento da publicidade, sobretudo no período JK, possibilitou a autonomização do campo jornalístico em relação à esfera política?

Foram analisadas ainda, nesse capítulo, a crise do papel de imprensa e a concentração empresarial, que começou a se processar em meados dos anos 1950 e que se acirrou na década seguinte, vindo a transformar totalmente o mercado jornalístico carioca. Buscou-se perceber qual foi o papel das reformas administrativas nesse processo. Ou seja, até que ponto elas foram decisivas para a concentração das empresas jornalísticas.

No terceiro capítulo, foi abordada a dimensão propriamente discursiva das reformas. Em primeiro lugar, analisamos as normas e valores que passaram a pautar a construção dos textos noticiosos e que apontavam para um processo de padronização estilística e construção do anonimato dos redatores. Buscamos perceber como o processo se deu diferentemente nos quatro veículos estudados (UH, DC, JB e Tribuna), como resultado de diferentes condições de produção. Também foi nosso objetivo analisar a formalização das novas normas redacionais nos ‘manuais de redação e estilo’. Pensamos esses manuais como uma dimensão importante de uma ética disciplinar que se instaurava naquele momento nas redações.

Jornais, no entanto, não se faziam apenas com palavras. Os textos propriamente ditos formavam com as imagens (fotografias, ilustrações, caricaturas, charges, quadrinhos, gráficos etc.) e com outros recursos visuais (como diagramação, paginação, editoração) um pacote significante, que deve ser pensado como um sistema integrado. Por isso, fizemos uma análise, ainda que breve, de todos esses elementos, buscando perceber como foram constituindo suas próprias normas e valores e como foram tornando o jornalismo um campo de produção discursiva especializado e mais autônomo.

No último capítulo, trabalhamos com o processo de profissionalização do campo. O jornalista como membro de uma categoria profissional já havia surgido nos anos 1930, mas foi apenas na década de 1950 que ocorreu sua profissionalização de forma ampliada nos principais jornais cariocas. Buscamos responder a uma série de questões: como se deu a transição de um jornalismo personalizado (de grandes nomes, grandes vedetes) para um jornalismo anônimo, com estilo padronizado? Quais eram as características exigidas do novo profissional? Qual era o perfil sócio-econômico e intelectual dos novos jornalistas? Qual era a posição e situação de classe desse grupo profissional? Qual era o seu status social? Como eram as suas formas de organização sindical? Quais as formas e o grau de sua remuneração nesse novo mercado que estava se criando? Qual era a hierarquia que havia entre as diferentes funções (repórter, redator, cronista etc.)?

Grau de adesão

A criação dos cursos de jornalismo teve um papel importante no processo de profissionalização. Como era o ensino de jornalismo nas primeiras faculdades? De que forma contribuiu na formação do habitus, na criação de valores e modelos de conduta profissional? Que disputas perpassaram a sua constituição e consolidação? Quais eram os embates que havia entre os novos profissionais que se formavam nas universidades e os ‘velhos homens de imprensa’?

Por fim, desenvolvemos uma discussão sobre a construção de um novo ideário, de uma nova deontologia para o jornalismo. Partimos da análise dos lugares de auto-referenciação, nos quais esse campo discursivo construía uma imagem de si próprio e de sua ‘missão’ e procurava através dela se legitimar como prática social. Como os jornalistas definiam o seu papel no jogo político? Como eles percebiam as novas exigências criadas pelas modernizações administrativas e pelas novas técnicas textuais?

Buscamos delimitar o conjunto das regularidades que passou a definir a atividade jornalística a partir desse período, tanto aquelas explícitas, codificadas nos manuais (como as regras de redação e estilo) quanto aquelas inconscientes (os esquemas práticos). Ou seja, procuramos analisar o conjunto das normas, das coações, dos princípios de classificação que configuravam o sistema de valores do campo jornalístico e que fundamentavam a conduta dos profissionais no cotidiano das redações.

Abordamos neste item a questão da objetividade. Mas nosso objetivo não foi fazer uma crítica a esta idéia. Não quisemos mostrar como o texto jornalístico era parcial, como se posicionava frente aos fatos e como existiam condicionantes históricos, ideológicos que determinavam a produção das mensagens. O mito da objetividade já foi amplamente discutido, não só no campo da teoria do jornalismo, mas – diga-se de passagem – em todas as ciências sociais. Hoje, quase ninguém mais acredita na objetividade total, sequer os jornalistas, o que nos dispensa entrar nesse debate.

Não pretendemos, portanto, discutir a questão de que o estilo (técnica do lead, da pirâmide invertida etc.) era uma forma de falsa consciência, uma forma de ‘encobrir’ as verdadeiras relações do texto com o real que ele descrevia. É evidente que se tratava de uma ideologia de jornalismo e isso será dado como um pressuposto. A preocupação que orientou a nossa pesquisa diz respeito aos efeitos dessa ideologia sobre o mundo real. Ou seja, como ela construía lugares, instituições, instaurava papéis e distribuía poderes. É interessante pensar como a idéia da objetividade – mesmo tendo sido amplamente criticada e questionada – ainda hoje condiciona as práticas dos jornalistas.

Por fim, não se deve perder de vista que o consenso no interior de um campo (seja ele qual for) é sempre uma construção provisória e que pressupõe contradições e lutas internas, constantemente reatualizadas. O desenvolvimento de uma certa forma de pensamento e a construção de um certo consenso em torno dela no interior do campo jornalístico nos anos 1950 pressupuseram, é claro, embates e disputas, que nos interessou observar. Qual era o grau de adesão dos jornalistas brasileiros aos princípios do modelo norte-americano de jornalismo? Havia, na década de 1950, muitas oposições – como a de Nelson Rodrigues – ao conceito de objetividade? Como a polêmica da ‘mediocritização’ do trabalho pela técnica se colocava então?

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Doutora em Comunicação, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro