Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A democracia que se cuide da mídia

É do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos um dos melhores livros deste ano: O Paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Referência entre os intelectuais brasileiros, esse professor universitário jamais esteve em silêncio. Seus livros e ensaios atestam que ele tem o que dizer e sabe como fazê-lo, de olho nos leitores.

Esta atenção para com os leitores é recurso estratégico e semelha o cuidado que quem fala deve ter com os ouvintes. O padre Antônio Vieira, cujos 400 anos celebraremos em 2008, estava sempre de olho nos ouvintes de seus célebres sermões. Possivelmente muitos não tinham ontem, como ainda não têm hoje, condições de apreciar os seus volteios barrocos, mas todos sabiam e sabem de que lado estava o padre nas questões decisivas, de que foram exemplos os conflitos entre os colonizadores e os índios. A Inquisição sempre entendeu direitinho os recados dele, tanto que, quando pôde, o encarcerou, ainda que já vivesse os anos finais deste breve intervalo entre o berço e o túmulo, como já foi definida a vida.

Ocorreu algo semelhante nos anos pós-1964. Ontem, como hoje, a mídia, escolas e universidades desconheciam intelectuais que emergiam, mas as chamadas forças de segurança conheciam o que eles escreviam, como ensinavam, onde trabalhavam e onde moravam. E, sempre que acharam necessário, os encontraram para levá-los à prisão ou para proibir escritos ou para afastá-los dos que o ouviam e liam. É verdade que alguns tiros saíam pela culatra, mas só alguns.

Constituição cidadã

Em artigos para a imprensa, o scholar Wanderley Guilherme dos Santos desce da cátedra, o púlpito dos intelectuais, e escreve de modo a que qualquer alfabetizado o entenda. Estes cuidados ao escrever para a mídia, como sabemos, são muito raros. Basta consultar as páginas de artigos assinados por intelectuais na imprensa para avaliarmos o quanto muitos deles disfarçam os que não têm ou não sabem como dizê-lo.

No prólogo de O Paradoxo de Rousseau, o autor diz em conversa clara: ‘A democracia direta é uma idéia sedutora. Sedutora e generosa. Há uma confissão de humildade na prática de consultar o eleitorado sobre questões excessivamente controversas’. Mas adverte que, conquanto relevantes, ‘tanto servem à democracia como podem beneficiar tiranias’. E acrescenta: ‘Há mecanismos que, por malícia de utilização, comprometeriam a operação falível, porquanto humana, das instituições democráticas’.

Os pais de nossa República mantiveram a exigência da alfabetização, afinal derrubada em 1988 pela ‘Constituição cidadã’, como a definiu Ulysses Guimarães. Pois a Constituição cidadã reconhecia, por ínvios caminhos, um dos maiores fracassos republicanos: o analfabetismo grassava solto nos pastos da pátria e os currais eleitorais traziam para o coração do poder representantes que faziam da imunidade parlamentar um recurso para fugir à Justiça.

Manipulação de subjetividades

Mas a história do analfabetismo vem de longe, vem do Império de Pedro II. A aplicação da Lei Saraiva, de 1881, como explica o autor, resultou em paradoxo adicional: os 1.097.698 eleitores registrados em 1872 minguaram para 117.022, em 1886!

Depois de muitas lutas, algumas modificações, antes tão temidas, passaram a ser aceitas. Assim, a barreira da idade dos eleitores diminuiu de 21 para 18 anos, chegando a 16 em 1988. E eis outro paradoxo de lambujem: os jovens podiam dirigir o país, mas não os automóveis, pois a barreira da idade para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação foi mantida. O voto feminino, por não ser expressamente autorizado, continuou proibido até a década de 1930.

Conquanto a modernidade, mais do que a democracia, tenha melhorado a qualidade de vida – a expectativa de vida na França do Iluminismo era de 23 anos e oito meses – avançamos um pouco na resolução dos problemas sociais, embora dois deles sejam destacados pelo autor como estorvos que em algum momento a democracia terá de resolver: a corrupção e o crime organizado.

‘A democracia é a única forma de exercício do poder político que reconhece como legítimas demandas que não pode atender’, afirma o autor (pág. 143). Mas, se ‘a subjetividade humana é como uma impressão digital: não existem duas iguais’, é certo que, para a manipulação de milhões de subjetividades, a mídia tem cumprido um papel que só recentemente vem sendo questionado.

Lugar de destaque

Neste particular, as campanhas eleitorais, embora tratem como iguais eleitores alfabetizados e analfabetos, ricos e pobres, homens e mulheres, rompidas que foram as grandes barreiras ao voto universal, trazem um novo tema à consideração dos intelectuais: a mídia foi aos poucos mudando de lugar.

Deixando de ser fiscalizadora dos três poderes básicos – Executivo, Legislativo, Judiciário – arvorou-se em quarto poder autônomo. Como se sabe, nas eleições presidenciais do ano passado, os grandes poderes midiáticos fizeram de tudo para, se não pudessem impedir a reeleição do presidente Lula, conseguissem ao menos deixá-lo de joelhos, submisso a seus projetos. É verdade que hierarcas do governo Lula fazem das suas para azedar o caldo. E o anúncio, ainda que velado, do terceiro mandato, acenou com a possibilidade do plebiscito no caso de a proposta não passar no Legislativo.

Leitores, vós que sabeis que as listas dos dez livros mais vendidos não são as dos dez mais lidos, saibam também que há razões para que alguns livros sejam proclamados enquanto muitos outros permanecem ocultos. E essas razões não são apenas mercadológicas.

Com gosto, certo de estar mais do que comentando, recomendando um livro, digo que nossos debates teriam mais qualidade e serviriam mais à democracia se fossem alimentados por leituras como a deste novo livro de Wanderley Guilherme dos Santos. Num ano pobre de novos romances, livros de contos e poesias, cabe a um ensaio sobre a democracia um lugar de destaque entre os melhores lançamentos do ano.

******

Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br