Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A economia, explicada aos jornalistas (e outros curiosos)

Nos dicionários – exatamente como nos jornais –, espaço é tudo. O espaço disponível – que é, por definição, o elemento sempre escasso em toda e qualquer redação – condiciona e limita a possibilidades do jornalista, que precisa, assim, dizer o essencial em poucas linhas. Se possível, ele precisa responder às cinco perguntas clássicas já no primeiro parágrafo. Para isso, ele precisa manipular conceitos essenciais e precisos, saber exatamente o que cada palavra quer dizer. Se houver alguma referência histórica ou consideração teórica a serem feitas, elas precisam ser econômicas ao extremo, mas adequadas ao contexto descrito. É justamente aí que a economicidade de espaço dos jornais se encontra com a essencialidade dos dicionários.

A ‘centimetragem’ dos verbetes num dicionário costuma refletir a importância relativa de cada um. Por isso, pode parecer bizarro que, neste magnífico dicionário, agora publicado em nova edição por Paulo Sandroni, o espaço ocupado pelo ‘mágico de Oz’ (yes, o famoso personagem de Frank Baum) represente duas vezes o alocado ao verbete ‘capitalismo’: duas páginas inteiras (de duas colunas) para o ‘mágico’, contra, apenas, 3/4 de uma única página para o capitalismo, sendo que seu ex-inimigo, o defunto ‘comunismo’, ganha uma página e meia. Esta é uma das peculiaridades desta, ainda assim, utilíssima ferramenta de consulta que não deixa de refletir os gostos e preferências de seu autor, um bem sucedido professor de economia, hoje convertido em sinônimo de obra de referência.

Sim, a partir da quinta edição de uma obra publicada originalmente em 1985, para acompanhar a coleção ‘Os Economistas’ (da Editora Abril), já se pode falar do ‘Sandroni’, como hoje usualmente se fala do ‘Aurélio’, com algumas diferenças, no entanto. Se o ‘primo’ da língua portuguesa procura seguir o cânon da Academia Brasileira de Letras, Sandroni não segue nenhum padrão consagrado, a não ser o seu próprio. Será por isso que o verbete ‘protecionismo’ ostenta o dobro do espaço dado ao ‘livre-comércio’? Não parece estranho, novamente, que o Mercosul ocupe menos da metade do espaço atribuído ao Nafta, ao passo que um acordo que ainda nem existe, a Alca, tem mais do dobro deste último? Infelizmente, o verbete Mercosul não é apenas insuficiente, mas claramente inadequado, inclusive conceitualmente. Se o Mercosul dependesse do ‘Sandroni’ para validar sua relevância, já estaria condenado ao museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar, como previa Engels para o destino do Estado.

Não existe…

Esse tipo de inconsistência não passaria por uma academia de economia, se esta servisse para dar chancela a dicionários do gênero. Não que Sandroni tenha trabalhado inteiramente sozinho: os créditos consignam pelo menos três dúzias de consultores, mais três dezenas de pesquisadores. Mas ele certamente exerceu o direito de ir aumentando, aqui e ali, as fichas individuais, cada vez que um tema crescia em importância em sua mente. Daí o caráter irregular de algumas informações, bem como erros primários de revisão (o verbete ‘monocultura’, por exemplo, é repetido na imediata seqüência). Não se trata apenas de espaço desigual, mas, também, de insuficiências notórias ou deslizes clamorosos. Assim como certos verbetes – ‘Escola Clássica’, por exemplo – apresentam quase uma aula sobre o assunto, outros induzem a erro: Hayek nunca foi ‘neoliberal’, pela simples razão que ele sempre foi um liberal clássico, tout court.

Mas, por que a ‘interpretação econômica’ do ‘mágico de Oz’ valeria duas vezes e meia a descrição do capitalismo? Sem cair novamente nas preferências do autor, digamos que a fábula de Baum ilustre os dilemas da transição do bimetalismo (ouro e prata) ao monometalismo do padrão-ouro na construção dos sistemas monetários nacionais, durante a segunda onda da globalização (final do século 19 e início do seguinte). Ainda assim, há um notório exagero na dimensão do verbete (que, aliás, está bem escrito). Ou seja, nenhum jornalista recorreria a Frank Baum para contar a história do padrão-ouro nos EUA. Por esse critério, o verbete em questão do ‘Sandroni’ não passaria pela porta estreita das redações. Mas, digamos, que o jornalista poderia levar para ler no metrô, ainda que o peso do livro não recomende.

A atualização de alguns verbetes também deixa a desejar, considerando-se a data do ‘fechamento’: julho de 2005. Como os jornalistas trabalham com fatos atualíssimos, sob esse critério o ‘Sandroni’ peca por conservar teias de aranha. Por exemplo: mesmo dando-se desconto de um ano naquela data, é inexplicável que o verbete consagrado ao Mercado Comum Europeu diga que a entidade ‘congrega’ (assim, no presente) doze membros, quando o MCE já se tinha diluído na Comunidade Econômica Européia desde 1967, sendo esta substituída pela expressão Comunidades Européias na década seguinte. A União Européia, por sua vez, existe desde 1993, tendo passado de doze a quinze membros dois anos mais tarde; ela admitiu dez membros adicionais em 2004, levando-a aos 25 membros atuais (encore plus em negociações).

Mais surpreendente ainda, MCE remete ao verbete ‘União Européia’, que simplesmente não existe, esquecido entre a União Escandinava (uma união monetária que funcionou entre 1873 e 1905) e a União Européia de Pagamentos (um sistema de pagamentos compensados que deixou de existir em 1958). Surpreendente ou inexplicável, esse tipo de omissão é imperdoável num dicionário do ‘século 21’.

Concessões equivalentes

Na verdade, pouca coisa pertence ao século 21, a maior parte vinda dos séculos 19 e 20, mas o verbete FMI já traz Rodrigo Rato como seu diretor, a partir de 2004. Os temas recentes estão registrados, como o ‘índice Big Mac’ do The Economist – que todos os jornalistas precisam conhecer –, o ‘consenso de Washington’ que todos os jornalistas pretendem conhecer, mas que eles erroneamente definem como sendo a defesa do ‘Estado mínimo’ – e os acordos de Basiléia 1 e 2 (normas prudenciais para atividades bancárias). Mas, para um dicionário do século XXI, o verbete ‘globalização’ não poderia ser mais anêmico: escassas dez linhas (em meia coluna, recorde-se), ainda assim voltado mais para o fenômeno do ‘global sourcing’ do que para os processos de integração de mercados. Talvez alguns jornalistas não gostem da globalização, mas ela ainda assim existe e incomoda muita gente, sobretudo os antiglobalizadores, que vivem repetindo bobagens a cada encontro do FSM. Como os jornalistas não são versados em economia, eles acabam repetindo as bobagens dos antiglobalizadores e nisso o ‘Sandroni’ não lhes ajudará muito no esclarecimento dos ingênuos.

Interessantes e úteis são os verbetes dedicados às idiossincrasias econômicas brasileiras, como o jogo do bicho – cálculos de probabilidade indicam que os banqueiros ficam com 60 a 70% das receitas –, as mordomias, tais como oficialmente definidas pela administração, ou os diversos planos brasileiros de desenvolvimento e de estabilização econômica. Comparecem sínteses históricas sobre a legislação e os padrões monetários, sobre os valores do salário mínimo, bem como listas de ministérios e de ministros da Fazenda do Brasil: Itamar foi um campeão de ministros!

Alguns erros precisam ser corrigidos numa futura edição. Assim, o Gatt não foi substituído pela OMC, em 1995 – como a gente cansa de ler na imprensa –, mas sim incorporado à rede de acordos administrados por ela; ele tampouco tem por princípio básico o livre-comércio, apenas visa a mais ampla liberalização comercial possível. O economista André Gunder Frank, identificado com o ‘desenvolvimento do subdesenvolvimento’, aparece duas vezes, nas letras F e G, sendo que Gunder é mais ‘desenvolvido’ do que Frank. Os GAB são mais comumente referidos como General Arrangements to Borrow, e não como Agreements, uma vez que eles não derivam de tratados formais e sim de esquemas especiais. Dizer que Hobbes era um ‘mercantilista’ e acrescentar, em seguida, que ele considerava a liberdade de comércio uma ‘lei natural’ parece uma contradição nos termos. Ou seja: jornalistas que confiarem muito no ‘Sandroni’ podem ser desmentidos por algum interlocutor mais atilado.

Outros erros são apenas detectáveis por especialistas. Assim, Keynes não foi o primeiro ‘presidente’ do FMI como está no ‘Sandroni’, tanto porque esse ‘cargo’ nunca existiu, mas apenas o representante britânico (governor) na primeira assembléia-geral das duas organizações de Bretton Woods (em Savannah, na Georgia, em 1946), ocasião na qual ele indicou o belga Camille Gutt como para ser o primeiro ‘diretor-gerente’ do FMI. Bilateralismo e multilateralismo estão definidos de forma restrita, vinculados apenas ao comércio, quando esses conceitos pertencem ao direito e as relações internacionais de modo geral. Da mesma forma, reciprocidade em comércio não quer dizer fair trade e sim concessões equivalentes, não necessariamente simétricas. Em regimes cambiais, o abandono do acordo de Bretton Woods pelos EUA se deu, de fato, em 1971, mas o fim da jurisdição do FMI sobre esses regimes só foi alcançado em 1973. Esses pequenos erros não empanam, contudo, o valor de uma obra grandiosa.

Caracteres com espaço…

No terreno do humor econômico, ele incorpora um verbete para a conhecida lei de Murphy, mas se esquece da lei de Parkinson, altamente relevante para a ‘produtividade’ na administração pública: o total de empregados numa burocracia cresce 5 a 7% ao ano, independentemente de qualquer variação no volume de trabalho que deve ser feito. Parafraseando, digamos que o tamanho de um dicionário como este aumenta entre 20 e 30% a cada edição, independentemente da importância relativa dos verbetes. Mas, pela ‘lei de Gresham’ dos dicionários, volumes menores e de menor qualidade começarão a fazer concorrência implacável ao ‘Sandroni’.

Ele deve sustentar a competição, mas caberia pensar, numa próxima edição, em adaptá-lo aos tempos modernos: não é possível que um dicionário que se pretenda do ‘século 21’ dedique mais de uma página à ‘revolução socialista’ e escassas 14 linhas (de meia coluna) aos verbetes ‘pobreza’ e ‘riqueza’, que constituem o próprio âmago da ciência econômica. Mesmo numa concepção tradicional, alguns desequilíbrios devem ser corrigidos: hoje, Raúl Prebisch vence Adam Smith por meia coluna; o socialismo deixa longe o capitalismo e a definição deste último é basicamente marxista; que Stalin receba a mesma ‘centimetragem’ de Keynes indica uma desproporção inaceitável numa obra de economia. Estou de acordo em que a ‘teoria da dependência’ não mereça mesmo mais de 13 linhas, mas que ‘trabalho alienado’ supere em quatro vezes ‘vantagens comparativas’ revela uma inclinação hoje démodée.

Proponho uma revisão ‘bibliométrica’ nos 6 mil verbetes do Dicionário, tendo como critério o velho preceito marxista (aliás emprestado ao economista britânico anterior a Marx, William Goodwin, e isso está no ‘Sandroni’): a cada um segundo as suas necessidades. Os jornalistas devem saber disso, pois eles só conseguem ‘emplacar’ um texto que não ultrapasse a ‘centimetragem’ – hoje caracteres com espaço – que lhe foi alocada pelo diretor de redação: de cada um segundo sua capacidade…

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Doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata