Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A escritora brasileira que chegou à China

Betty Milan é uma escritora que não existiria sem a imprensa. O jornal deu-lhe ou lhe impôs a disciplina de escrever com regularidade. E foram reuniões de artigos os seus livros de maior aceitação, de que é exemplo Paris não acaba nunca, coletânea de colunas semanais que publicara no Jornal da Tarde, de São Paulo. Teve várias reedições, ultrapassando 25 mil exemplares vendidos. O livro foi saudado por Jacques Chirac e escolhido como brinde pela Air France. Foi traduzido para o inglês e o francês e publicado pela editora online 00h00.com. E agora acaba de ser publicado na China, traduzido pelo poeta Yang Ki, numa edição inicial de 6 mil exemplares, já esgotada, fruto de contatos feitos com o editor Shen Changwen, no Salão do Livro de Pequim, em 2005. 

Ela segue um percurso singular entre escritores brasileiros. Mora metade do ano em São Paulo e metade em Paris. A junção desses dois mirantes faz com que não se afaste de temas e problemas brasileiros, mas os contemple de uma forma original: com o olho armado que a vivência na França lhe dá.

Psicanalista e romancista, Betty Milan estreou com o romance O Sexophuro, assim resumido por Otto Lara Resende: ‘Sucessão de instantes poemáticos, o livro confirma que ainda há quem escreva, quem saiba escrever, quem precise escrever’. Era o alvorecer da década de 1980. A crítica e professora da USP, Walnice Nogueira Galvão, disse que o romance era ‘extraordinariamente bem escrito, que prende a atenção do leitor da primeira à última linha. Afora essa qualidade, a meu ver fundamental em qualquer texto literário, penso que este apresenta um trunfo a mais, qual seja o de abordar um tema de alta atualidade, a condição feminina’.

Mas foi com os romances seguintes – O Papagaio e o Doutor, A Paixão de Lia, Clarão e O Amante Brasileiro – que ela consolidou seu nome como romancista. Vários foram publicados também no exterior e transpostos para o teatro.

O livro que chegou ao chinês não teria existido não fosse a disciplina rígida que se impôs ao escrever para a imprensa semanalmente. Na imprensa, Betty Milan tem presença marcante como colunista. ‘O Século’, que recebeu o prestigioso prêmio da APCA, reúne entrevistas com personalidades que ela fez para a Folha de S.Paulo, ali publicadas entre 1997 e 1999.

Betty Milan inaugurou na mesma Folha de S.Paulo, há pouco mais de um ano, uma nova coluna que intitulou ‘Fale com Ela’, publicada na Revista da Folha. Nova em muitos sentidos, mas principalmente por escrever pautada por cartas dos leitores. Este saudável costume de ouvir o público há de aparecer também em seu próximo romance, para o qual realizou centenas de entrevistas nas ruas de São Paulo.

Esta entrevista da autora para o Observatório da Imprensa foi feita em conversas realizadas em São Paulo, São Carlos e Rio de Janeiro, completadas depois com perguntas enviadas a Paris, que ela respondeu por e-mail.

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Sua coluna ‘Fale com Ela’, na Folha de S. Paulo, publicada há mais de um ano já é uma referência entre escritores-colunistas. A que você atribui a aceitação do projeto?

Betty Milan – Talvez tenha a ver com o fato de que a coluna revela ao leitor a sua singularidade Acho que isso seja uma novidade na imprensa brasileira e talvez mesmo no exterior. Em geral, quem faz consultório sentimental assume a posição de quem aconselha ou cura. Não faço nem uma coisa nem outra. Não acredito na eficácia do conselho e sei que não existe cura pelo jornal. O que me interessa é fazer o método analítico vigorar e levar os leitores a se identificarem com quem enviou o e-mail ao qual eu respondo. Se a psicanálise pública existir, o que eu estou fazendo é psicanálise pública. Nada a ver com o que tem sido feito nos consultórios sentimentais pelos diretores de consciência que ora são psiquiatras, ora psicólogos, ora sociólogos e mesmo psicanalistas.

No Jornal da Tarde, de que você foi colunista há alguns anos, o perfil era revelar Paris aos leitores. Nesta da Folha de S. Paulo, você fala de amor e de sexo. Pode-se dizer que esta coluna está mais de acordo com o seu perfil de intelectual, de psicanalista e romancista?

B.M. – Gostei muito de escrever o Paris não acaba nunca e os leitores também gostaram porque o livro foi best-seller no Brasil e depois foi publicado na França e na China. Tratava-se de uma errância e o meu perfil é a do errante. Mas foi uma época que passou. O ‘Fale com ela’ é diferente porque estou a serviço de quem me consulta e do leitor do jornal. Também gosto porque cada um é um e a coluna não pára de variar. Nenhuma se parece com a outra, embora eu cite muito Octávio Paz e Jacques Lacan, um poeta e um psicanalista que também foi poeta. A exemplo disso o termo parlêtre, introduzido por Lacan na teoria psicanalitica para designar o sujeito, um termo que nos traduzimos por ‘falesser’, palavra que engloba a fala, o ser e o falecer que é o seu destino.

Quais são os temas preferenciais dos leitores que escrevem à coluna? O que eles querem?

B.M. – Os temas são diferentes e eu recebo e-mails dos dois sexos e de todas as camadas sociais. Já respondi inclusive a uma pessoa da favela e proximamente sai uma resposta a um policial que me escreveu perguntando como aplicar a lei sem ser violento. A maioria das pessoas quer uma orientação relativa a uma questão de amor ou sexo e só pelo fato de me escrever o sujeito já dá um passo em relação à compreensão. Ninguém se cura no ‘Fale com ela’ que serve para fazer a psicanálise vigorar, para dar credibilidade à escuta analítica, a única que valoriza a singularidade.

Qual a carta de leitor que mais a surpreendeu?

B.M. – A carta do policial. Não podia imaginar que o ‘Fale com ela’ tivesse sensibilizado a polícia. Isso significa que além de um efeito no plano subjetivo, a coluna tem um efeito social. Justamente porque eu não parto do conhecimento mas do meu não saber. Suspendo o meu conhecimento da teoria para me deixar surpreender pela questão do leitor e vir a saber algo novo graças a ela. Só estou interessada na novidade que o trabalho revela. Com 60 colunas feitas eu já tenho um pequeno repertório do imaginário brasileiro.

Você teve romances adaptados para o teatro. Gostou do que foi feito?

B.M. – Gostei. Mas a grande peça está por vir. Trata-se da adaptação de O Papagaio e o Doutor, com 17 personagens. Antes disso o Marcelo Drummond deve montar Brasileira de Paris, que eu escrevi diretamente para o teatro e é uma sátira da libertinagem e do machismo. A peça foi lida no auditório da Folha de S.Paulo e a platéia riu muito. Quase tanto quanto eu ao escrever esta peça.

Que vantagens e que limitações tem, como intelectual, uma escritora que vive entre Paris e São Paulo?

B.M. – A vantagem da distância. Quando eu estou em Paris, eu escrevo muito mais porque a língua portuguesa me faz falta. Além de escrever mais eu sou mais livre. Não sofro a pressão do meu meio social, que não prima pela liberdade. Paris é hoje um exílio literário. Já tive família em Paris, mas agora não. O meu filho acaba de me mandar um e-mail do Vietnam. A desvantagem de estar em Paris é não ver os amigos brasileiros e não acompanhar o movimento cultural do país.

A Betty, mãe e escritora, já plantou uma árvore? A tríade para o censor seria o inverso: proibir um livro, derrubar uma árvore e fazer um aborto, não é? O que você acha das lutas em defesa do ambiente? 

B.M. – Nunca plantei uma árvore. Até hoje só fiz regar a minha orquídea. Quanto mais nós lutarmos para preservar o ambiente, melhor. A vida em Paris é melhor do que em São Paulo por causa da paisagem. Todo dia eu vou passear no cais do Sena. Se eu morasse perto do Tietê, eu não poderia passear na margem do rio porque as águas são fétidas. Isso desde os tempos de Mário de Andrade que lamentou o fato num grande poema, Tietê:

‘Estas águas são abjetas e barrentas… Dão febre, dão morte… Isso não são águas que se bebam, conhecido, isto são águas do vício da terra… São malditas e dão morte… Por que os governadores não me escutam? Por que não me escutam os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?’

O que mais me impressiona em São Paulo é o quanto São Paulo, a cidade que não pode parar, não muda.

Você foi uma das primeiras escritoras, senão a primeira, a escrever sobre futebol com O País da Bola. O Brasil continua sendo o país da bola?

B.M. – O futebol é a nossa grande referência. Recentemente eu me dei conta de que existe uma analogia entre o modo como os cirurgiões brasileiros operam e o modo como os jogadores de futebol jogam. Pena que não exista analogia entre os políticos e os jogadores.

O que você acha da tumultuada relação entre o governo Lula e a mídia?

B.M. – Não acompanho suficientemente para dar uma resposta interessante. Sorry.

Você está escrevendo novo romance. Fale com eles (os leitores) sobre ele.

B.M. – Estou escrevendo um romance trágico sobre São Paulo, a cidade de adoção dos meus ancestrais e a minha cidade natal. Todos que fazem a apologia de São Paulo não conseguem dizer nada verdadeiramente interessante, dão ponto sem nó. Me dei conta disso ouvindo as músicas feitas para comemorar os 450 anos da cidade. Nenhuma que me tocasse. São Paulo é indissociável da sua tragédia, dos seus miseráveis, a quem eu pretendo dar voz. Tive a pachorra de entrevistar cem moradores e trabalhadores da rua da Avenida Paulista. Foi uma grande errância.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social