Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A expedição João Garcia

Faz um ano este março que o escritor e jornalista João Garcia, ex-jornalista do Jornal do Brasil em São Paulo, atualmente trabalhando na EPTV, em Ribeirão Preto, liderou pequena equipe e refez o trajeto percorrido pelo filho de Anhangüera, apelido dado pelos índios do Brasil ao bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva.

O apelido não foi bem compreendido por séculos: os índios não acreditaram que ele pudesse cumprir a ameaça de tocar fogo nos rios quando acendeu caneca de álcool diante deles. Anhangüera é o diabo que, velho, não tem mais os antigos poderes. Perigosos eram os diabos novos…

O relato da nova expedição, no estilo que revelou o autor do romance Dioguinho, o Matador de Punhos de Renda (Casa Amarela, 325 páginas, R$ 36), marcado pela clareza e a profusão de detalhes bem arrumados, está presente nas caudalosas informações trazidas do novo sertão, acompanhadas da clarividência do jornalista que resumira em pequeno trecho o sucesso do maior bandido caipira de todos os tempos, Diogo da Rocha Figueira:

‘Tava escrito assim, desse jeito: ‘… O terror que o mesmo Dioguinho espalha por esta freguesia, mais é o receio que se tem dos protectores desse assassino que delle mesmo próprio’’.

Em resumo, o nicho de herói ou bandido é a História que fixa para essas personalidades vulcânicas. Dioguinho era útil aos fazendeiros, como Anhangüera foi figura decisiva na expansão brasileira.

Busca do ouro

Eram 3 de julho de 1722 quando Bartolomeu Bueno da Silva deixou São Paulo, então uma vila com menos de dez mil habitantes, e tomou o rumo do sertão de Goiás, em busca de ouro. Os quadros de sua bandeira eram ‘quase todos brancos e filhos de Portugal, apenas um da Bahia e cinco ou seis paulistas’, apoiados por 152 armas, 39 cavalos, 20 índios e três religiosos.

Ao refazer, a cavalo, o célebre percurso de 1.600 km, João Garcia Duarte Neto partiu de São Paulo, agora com 11 milhões de habitantes, liderando uma bandeira de apenas oito homens, cinco cavalos, dois carros, cinco celulares, dois aparelhos de GPS, dois notebooks, 100 ferraduras, 20 sacos de ração, cartões de crédito, talões de cheques, antibióticos, pomadas para assaduras, antitérmicos e nenhum arma!

No lugar de índios farejadores do caminho, levou o são-carlense Jorge Dias Aguiar, 75 anos, garimpeiro, filósofo e amansador de cavalos, e seu irmão Pedro Dias Aguiar, 71 anos, de Dourado, mais conhecido pelo apelido de Búfalo Bill, que entraram para o Guiness Book por terem feito a maior cavalgada do mundo.

Dirceu Martins, viajante novato, mestre em História, também acompanhou a expedição, ao lado de Thiago João Costa, 19 anos, e Eduardo Antonio, 28, encarregados de cuidar dos cavalos. Os cinegrafistas Antonio Luiz, 43, e Wagner Berchelli, 41, completaram a equipe de João Garcia, 57 anos.

Anhangüera II, então pai de nove filhas que queriam casar (talvez tenha sido este um dos motivos da busca de ouro), tinha 67 anos quando repetiu a caminhada que fizera com o pai, na infância, em busca da Serra dos Martírios, o mítico tema do longa-metragem de Geraldo Moraes, No Coração dos Deuses.

Brasil desconhecido

Como caminhar no sertão? ‘Esparramando, como os índios, toda a planta dos pés pelo chão e virando os artelhos um pouco para dentro, o que diminuía o cansaço e facilitava a marcha.’

Que língua falavam os antigos bandeirantes? Não era o português! Outro célebre bandeirante, Domingos Jorge Velho, precisou de intérprete para falar com Dom Francisco de Lima, bispo de Olinda, que anotou:

‘Este homem é um dos maiores selvagens com quem tenho topado: trouxe intérprete, não se diferencia do mais bárbaro tapuia’.

Pouco sobrou da língua geral, além de vocábulos soltos e extraviados. Era falada na rua, no mato, em casa, não tinha escrita que a preservasse.

O que comiam os bandeirantes? Levavam feijão, farinha, toucinho. E galinha para os doentes. Peixe, caça, frutas e mel eram obtidos durante a viagem. Que remédios tomavam? Chás de ervas medicinais. Santa Rita Durão celebrou a verdadeira farmácia da selva brasileira:

‘O filopódio, a malva, o pau da China,/ A caroba, a capeba, e mil que agora/ Conhece a bruta gente e a nossa ignora’.

Os doentes morriam, mas morriam na mais perfeita saúde ou, como ironizou Molière, ‘morriam curados’. Bruta gente, é? Mas ensinou rudimentos de higiene, chazinhos e outros benefícios aos civilizados!

João Garcia semelhou Saint-Hilaire e o Visconde Taunay, entre outros. De 14 de março a 13 de maio de 2004, esse jornalista e escritor generoso, modesto e cheio de talentos, depois de nos dar um dos melhores romances deste alvorecer de milênio, legou-nos também uma reportagem bem narrada, exemplo de jornalismo revelador de um Brasil ainda desconhecido da maioria dos brasileiros. E faz tudo isso em silêncio!

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O Caminho do Ouro, relato de João Garcia, foi publicado pela EPTV, em Campinas, e tem 207 páginas. O presente ensaio saiu em versão resumida no Jornal do Brasil (29/3/2005).