Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A função da imprensa
e os sigilos de cada um

O primeiro compromisso de um jornal é com o leitor, não com as autoridades. O episódio do vazamento ilegal da prova do Enem serve de mais uma ilustração preciosa desse princípio, às vezes tão desprezado. Ao ter acesso a uma cópia da prova que estava ilegalmente em poder de intermediários interessados em vendê-la ao jornal, de forma criminosa, por R$ 500 mil, o Estado procurou imediatamente o MEC. Fez o certo.


O objetivo dos repórteres não era ajudar o ministro, mas confirmar a autenticidade das questões. Tratava-se de uma verificação obrigatória. E se tudo não passasse de mais uma dessas encenações conspiratórias que, vez por outra, despencam nas redações? Desta vez, o caso era realmente grave. O ministério concluiu que as questões de fato correspondiam à prova que seria aplicada no domingo e, ato contínuo, adiou o exame. Também o MEC fez o certo.


De sua parte, tendo comprovado o vazamento, o jornal publicou a notícia devidamente checada, já informando o adiamento do Enem. Cumpriu a sua função. E, ao checar a informação, não apenas informou adequadamente a sociedade, como acabou alertando o próprio MEC. Com isso, 4 milhões de jovens foram poupados do desgaste de se submeter a um exame que seria anulado.


Fora isso, jornalistas não são policiais. Não são linha auxiliar de investigações criminais. Prestam contas e informações ao público e apenas ao público. Nenhuma autoridade deve esperar que um profissional de imprensa diga a ela o que não dirá ao leitor. Jornalistas dispõem da garantia constitucional do sigilo da fonte, sem o qual o exercício cotidiano da reportagem seria impraticável.


Atraso democrático


Daqui para a frente, esclarecer como é que uma prova tão importante e sigilosa saiu dos cofres oficiais e foi parar na mão de trambiqueiros é uma tarefa da polícia, do Ministério Público, do Judiciário. Não da imprensa. Esta cumpriu seu papel ao noticiar que um crime foi cometido sob as barbas da administração pública.


As reportagens podem e devem, sim, ajudar a Justiça – mas aqui estamos falando das reportagens efetivamente publicadas, não das informações ainda não confirmadas que os jornais, segundo a melhor tradição ética, preferem reservar. Os sigilos da imprensa – como o sigilo da fonte – são o que o nome já diz: sigilos da imprensa.


Do mesmo modo, o sigilo de uma prova do Enem deve pertencer ao âmbito das autoridades educacionais – e de mais ninguém. Tal seria se a imprensa se visse forçada a guardar um sigilo que não é dela e em vez de noticiar um vazamento criminoso se esforçasse em abafá-lo ou ocultá-lo. Se agisse desse modo, um jornal se voltaria contra os interesses da sociedade. A função da imprensa é contar para todo mundo o que descobre de relevante. Ponto.


Por sorte ou aprendizado democrático, o Poder Executivo não tem pedido a jornalistas que guardem os segredos que descobrem na administração pública. Tal pedido seria um disparate. Por azar ou atraso democrático, o Poder Judiciário, às vezes, age de modo oposto. Ainda há desembargadores que impõem a jornais o dever absurdo de silenciar sobre segredos de Justiça – mesmo quando a imprensa os descobre no exercício legítimo da reportagem e quando esses segredos são de alto interesse público.

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Jornalista e professor da ECA-USP