Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra nas prateleiras

Um catatau de mil páginas sobre aquele que é visto como o personagem mais maléfico do século 20 se tornou um dos grandes lançamentos do fim de ano. Atípico presente de Natal, Hitler, do historiador inglês Ian Kershaw, saiu pela Companhia das Letras no começo de dezembro com tiragem inicial de 10 mil exemplares. Uma semana depois, com tantos pedidos de livreiros, a biografia foi reimpressa: mais 10 mil foram enviados às prateleiras do país, informa a editora.

Não é surpresa que títulos relacionados à Segunda Guerra ocupem espaço privilegiado nas livrarias. Há quase uma década, obras que abordam o maior conflito bélico do século 20 constituem nicho editorial de leitor cativo e vendas constantes. ‘É claro que se trata de um livro especial, mas diria que nossa tiragem inicial média de títulos sobre o assunto é de 5 mil a 7 mil exemplares, o que é bom para o mercado brasileiro’, diz Otávio Marques da Costa, responsável pela edição de Hitler na Companhia das Letras. Afora best-sellers, livros no mercado brasileiro costumam ser publicados com tiragem entre 2 mil e 3 mil exemplares.

O líder nazista é figura central de muitas das obras lançadas com frequência quase mensal e o interesse por ele não parece se esgotar. Há cinco anos, a clássica biografia de Hitler escrita por Joachim Fest fora relançada por aqui em dois volumes, com cerca de 500 páginas cada um, por ocasião da estreia do filme A Queda, de Oliver Hirschbiegel, que utilizara como fonte as pesquisas do historiador alemão. A primeira edição brasileira é de 1989 e já vendeu mais de 170 mil exemplares, informa a Nova Fronteira. Quando não é o próprio Hitler, vários livros nas vitrines das lojas o tangenciam: tratam de sua biblioteca, sua amante ou seus generais.

Enxurrada de propostas

Ao refletir sobre o sucesso de livros sobre a Segunda Guerra, é inevitável recordar que, como se diz, a história do Brasil está hoje na moda entre os livros de não ficção. Título que, em grande medida, iniciou a onda recente de lançamentos do gênero, 1808, do jornalista Laurentino Gomes, sobre a vinda da família real portuguesa para o Brasil, vendeu meio milhão de exemplares. Seu 1822, sobre a Independência, saiu ano passado com tiragem de 200 mil exemplares. É outro, porém, o percurso dos livros sobre o maior conflito bélico do século 20. ‘No caso de história brasileira, há uma combinação de desconhecimento do leitor pelo tema e livros escritos de modo mais acessível. Quanto à história da Segunda Guerra, temos um público que gosta do assunto, acompanha e sempre procura novos lançamentos’, compara Luciana Villas-Boas, diretora-editorial do grupo Record.

É um mercado que não tem picos de vendas, como o de história do Brasil, mas, há quase uma década, sempre vende. ‘Creio que esse nicho sempre existiu. Os editores é que ainda não sabiam. Com a profissionalização do mercado do livro no país, pudemos identificar melhor essas preferências do leitor’, avalia Luciana.

A maioria dos títulos sobre a Segunda Guerra no mercado brasileiro é, com pouquíssimas exceções, produzida no exterior. As obras são realizadas por pesquisadores que saem tanto do meio acadêmico quanto do jornalístico, principalmente da Inglaterra – em livrarias e sebos ingleses, não raro há seções inteiras reservadas ao tema –, mas também dos Estados Unidos e da França. A Alemanha também se volta cada vez mais, e com menos acanhamento, para essa parte de sua história. ‘A Itália tem títulos muito interessantes, mas ainda pouco conhecidos por aqui, pois os editores italianos se preocupam menos em chegar ao mercado brasileiro’, afirma a diretora-editorial da Record.

A oferta, como se pode imaginar, é grande. ‘Recebemos uma enxurrada de propostas, de agentes literários e editores’, relata Costa, da Companhia das Letras. ‘E é claro que sempre estamos atentos aos lançamentos, pois é um assunto que nos interessa muito e tem boa representatividade no catálogo da editora.’

Títulos bem-sucedidos

Existem nichos dentro do próprio nicho. Há leitores cuja preferência recai, por exemplo, no tema das grandes batalhas e estratégias militares, ocorridas mais na Europa do que no Pacífico, explica Luciana. Livros que abordam aqueles que são considerados os grandes gênios políticos e estratégicos constituem outro grande filão. Além do próprio Hitler, são vendidas com frequência obras sobre Stalin e Churchill e, um pouco menos, Roosevelt. O tema do Holocausto – o drama dos judeus, a sobrevivência nos guetos e campos de concentração, a vida depois da guerra – é outro que tem bastante apelo entre os leitores. ‘Mais recentemente, o sofrimento da sociedade civil alemã tem merecido atenção. Até pouco tempo atrás, era difícil encontrar livros sobre esse tema, era quase proibido’, diz Luciana.

Duas obras do historiador britânico Antony Beevor, Stalingrado e Berlim – 1945, estão entre os sucessos recentes publicados pela Record. Alcançaram vendas de 20 mil exemplares, quando a média do gênero é de 4 mil a 5 mil exemplares, explica a diretora editorial. É também de Beevor um dos grandes lançamentos da Record neste ano: Dia D – A Batalha da Normandia, com tiragem inicial de 15 mil exemplares, que já está nas livrarias. Até março, com mesma tiragem, a editora sediada no Rio põe à venda A Tempestade da Guerra, de outro historiador inglês, Andrew Roberts.

Outros títulos bem-sucedidos em vendas publicados pela Record foram Europa na Guerra, do historiador Norman Davies, também inglês, e O Incêndio – Como os Aliados Destruíram as Cidades Alemãs, do alemão Jörg Friedrich. A Bertrand, que faz parte do mesmo grupo, tem como destaques obras de um historiador americano, Stephen Ambrose: O Dia D, Soldados Cidadãos, Azul sem Fim.

A voz dos anônimos

Obras sobre a Segunda Guerra são tradição também na Companhia das Letras, responsável pelo Hitler, de Ian Kershaw. ‘Não vejo uma tendência, e sim, uma grande diversidade nas abordagens’, avalia Otávio Marques da Costa. Alguns livros que já são ‘clássicos’ na historiografia sobre o assunto, como recorda Costa, foram traduzidos para o português pela editora sediada em São Paulo. Nos últimos dois anos, do mesmo Kershaw, há, por exemplo, Hitler e Dez Decisões Que Mudaram o Mundo. Outros títulos de destaque foram Alemanha, 1945, de Richard Bessel, Fumaça Humana, do escritor e militante pacifista Nicholson Baker, A Biblioteca Esquecida de Hitler, de Timothy W. Ryback, e Quem Escreverá Nossa História – Os Arquivos Secretos do Gueto de Varsóvia, de Samuel D. Kassow.

‘Há ainda aqueles que não são propriamente historiográficos, mas ambientados durante o período ou que tratam da experiência da guerra’, comenta o editor. Como exemplo, há a graphic novel autobiográfica de Will Eisner, Ao Coração da Tempestade, os romances Os Imigrantes e Austerlitz, do escritor alemão W.G. Sebald, e gêneros híbridos, como a biografia com recursos de ficção Hammerstein, de autoria do ensaísta e poeta alemão Hans Magnus Enzensberger.

Na Nova Fonteira, que hoje faz parte do grupo Ediouro, dois grandes destaques recentes tratam de Churchill: a biografia, lançada em dezembro por aqui, feita por Paul Johnson, historiador inglês com mais de 40 obras publicadas, e Churchill, Hitler e ‘A Guerra Desnecessária’, de Patrick J. Buchanan, de 2009. Em agosto, sairá A Guerra, escrito por Geoffrey C. Ward e Ken Burns, que recupera depoimentos e fotos de gente comum que sofreu com a guerra. Se durante muito tempo os grandes personagens ocuparam – e continuam a ocupar – o tempo de pesquisadores e leitores, é cada vez maior a quantidade de títulos que dá voz aos anônimos.

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Jornalista