Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A história do Brasil que precisamos (re)descobrir

A história oficial do Brasil, aquela contada em livros didáticos e bancos escolares, está longe de lidar criticamente com a riqueza de visões e os paradoxos que, em mais de quinhentos anos, ajudaram a construir a ‘mente’ e o ‘corpo’ deste nosso Estado-nação multiétnico e biologicamente megadiverso.

‘Pode-se afirmar que a História do Brasil é a história da destruição da floresta tropical. Aqui os bens naturais nunca foram vistos ou tratados como coisa pública, coletiva e de valor absoluto. O desmatamento é conseqüência da falta de noção do brasileiro sobre o valor intrínseco da mata, pois a terra e tudo que nela existe é visto sob o ponto de vista estrito da exploração econômica. É a herança cultural dos tempos da colonização que se mantém até hoje’, comenta o jornalista e historiador Jorge Caldeira, organizador da obra Brasil: a história contada por quem viu, da editora Mameluco.

O pior é que a história oficial continua dando pouca relevância ao que pensavam – e pensam – os nativos da Terra Brasilis. O livro de Caldeira, é claro, não comete esse erro de percurso. Um dos relatos mais comoventes e de máxima atualidade, feito por um padre calvinista, Jean de Léry, está lá para mostrar o outro lado da moeda.

É surpreendente ver que, em 1556, Léry descreve o que chama de ‘economia indígena de dano mínimo aos frutos da terra’. Em contraste com o pensamento do colonizador europeu, ele registra o modo de pensar dos nossos índios, que achavam tola a mentalidade dos ‘brancos’ de acumular, em vida, fortunas para deixar como herança para seus filhos. Sob a perspectiva dos homens de pele vermelha, nus e rústicos, ‘somente a terra é que deveria nutrir seus filhos’.

Negação do valor da herança

‘Na época, essa visão causou grande impacto no Velho Mundo. Hoje, por necessidades ecológicas de pura sobrevivência, a cultura ocidental moderna tenta seguir nesta trilha. Pouca gente se dá conta, mas a base da filosofia do Protocolo de Kyoto gira em torno do conhecimento da teoria econômica dos nossos índios tupis’, destaca Caldeira.

A proposta do livro Brasil: a história contada por quem viu, patrocinado pelo Itaú BBA por meio da Lei Rouanet, é mostrar nossas muitas e pouco exploradas facetas.

‘A obra retrata nossa história viva e vivida por personagens famosas e também por pessoas anônimas do povo, que em comum foram testemunhas oculares de acontecimentos fundamentais da vida brasileira’, diz o organizador.

Segundo Caldeira, o desconhecimento e até negação de nossas raízes, forjadas desde o século 16 com o descobrimento ou ‘achamento’ do Brasil, compromete a percepção e enfrentamento de fatos que hoje afligem nossa sociedade. A voracidade com que a Amazônia é desmatada, ou o conflito acirrado pela posse da terra como se vê na Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, situação a que o STF acredita ter colocado um ponto final ao determinar a saída definitiva dos arrozeiros do local para que somente os indígenas vivam ali, são exemplos de problemas de origem histórica que, pela complexidade, não se resolvem com simples canetadas.

Entre os últimos textos do livro, está o assassinato do índio pataxó, queimado vivo, em 1997, por jovens da classe média de Brasília. ‘O fato tem forte simbolismo: a dificuldade do brasileiro de perceber a importância dos índios na formação da nossa cultura. São eles que guardam o conhecimento de nossas florestas, a tecnologia de viver nos trópicos, a alimentação que enriqueceu o cardápio dos ocidentais por meio da cultura de produtos como batata, mandioca e tomate. O Brasil e o mundo herdaram tudo isso, mas negamos o valor desta herança’, enfatiza o jornalista Jorge Caldeira.

‘Engenhosas manobras e campanhas’

Outro relato interessante no livro organizado por Caldeira data de 1859. O advogado e professor Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, faz, do Ceará, uma das primeiras descrições da seca que, segundo ele, há tempos assolava o nordeste brasileiro. Brasil afirma que se trata de ‘fenômeno progressivo na região’, ao qual atribui o desmatamento como causa principal, este, por sua vez, provocado pela expansão das culturas de algodão e café.

Ainda no século 19, o livro resgata outros relatos da fome que atingia as populações e as precárias condições sanitárias do país, com registro de centenas de mortes por doenças tropicais que os médicos da época tinham dificuldade em diagnosticar e tratar.

Uma reportagem assinada pelo jornalista Murilo Melo Filho, em 1970, ressalta que fortunas haviam sido ‘tragadas’ pela floresta amazônica, segundo ele uma reação da natureza a empreendimentos equivocados como a estrada Transamazônica e a ambiciosa ferrovia Madeira-Mamoré. Com o passar do tempo, a denúncia feita por Melo não perdeu atualidade, basta adaptá-la aos novos alvos:

‘Começaram a surgir, dentro e fora do Brasil, as mais engenhosas manobras e campanhas contra a construção da estrada [a Transamazônica], a começar por aquela suspeita segundo a qual ela privará a humanidade de muito oxigênio e assim ameaça o equilíbrio ecológico da terra.’

Papel estratégico no cenário global

Um aviso: o livro de Jorge Caldeira é um calhamaço de mais de 600 páginas, mas surpreende pela leveza da leitura. Foram cuidadosamente reunidos 173 depoimentos, curtos e intensos, que cobrem desde a chegada de Cabral ao litoral baiano até fatos marcantes da realidade brasileira que encerraram o século 20. A reação do público mostra o valor da obra: a primeira edição de 8 mil exemplares, lançada em dezembro do ano passado, esgotou em poucos dias. Uma terceira já está sendo cogitada.

‘Queria ver um exemplar do livro em cada biblioteca do país. O fato é que a História do Brasil é uma das mais mal contadas do mundo, pois entre nós a cultura oral sempre foi mais importante que a escrita. É mais do que tempo de conhecermos a nossa história real, pois ela tem muitas soluções e méritos a oferecer. Isso só vai contribuir para que o Brasil assuma seu papel estratégico no cenário global, especialmente nas questões de preservação e geração de energia limpa’, conclui Jorge Caldeira.

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Jornalista