Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A inteligência em forma de jornal

A França é um país sui generis em muitos aspectos, que os franceses destacam como ‘exceção francesa’. Uma dessas exceções é o cinema, de um vigor extraordinário, uma das poucas cinematografias capazes de enfrentar a concorrência maciça da produção de Hollywood. Outra é a indústria editorial, protegida pela lei do preço do livro, criada pelo então ministro da Cultura Jack Lang.


A Quinzaine Littéraire é outra exceção francesa: um jornal literário que trata de livros, mas não apenas de literatura, e que há 43 anos se impôs como indispensável ao mundo intelectual francês. A Quinzaine completou em outubro seu número 1000. Quase um milagre para um jornal que vive sem anunciantes e sem remunerar seus colaboradores, intelectuais de prestígio em diversas áreas do saber, que julgam um verdadeiro privilégio assinar resenhas no jornal do quase centenário Maurice Nadeau.


Ao criar a Quinzaine Littéraire em 1966, o crítico literário e editor Maurice Nadeau se inspirou no Times Literary Supplement e no New York Review of Books. O jornal trata de literatura e também de artes, filosofia, história, economia, política, ciências, psicanálise, enfim, todos os campos do conhecimento.




[Ver, neste Observatório, uma entrevista com Maurice Nadeau, ‘O papa de La Quinzaine Littéraire‘ e ‘Quarenta anos a serviço da inteligência‘]


Reuniões de pauta


No número 1 da Quinzaine, Nadeau resenhava um romance do escritor De Clezio (prêmio Nobel de Literatura de 2008), Roland Barthes resenhava uma biografia de Proust e Samuel Beckett, revelado ao público francês por Nadeau, publicava um texto inédito.


Mil números depois, a Quinzaine festejou com nova diagramação. No caprichado especial número 1000 houve até alguns anunciantes para homenagear o jornal literário que se tornou cult vivendo apenas de assinaturas, além de uma pequena subvenção pública que paga uma edição por ano. A Quinzaine vive mesmo é do prestígio de seu criador, Maurice Nadeau, que aos 98 anos a dirige com autoridade de quem conviveu com os surrealistas, foi o primeiro editor de Roland Barthes e Benjamin Perec e apresentou ao público francês Beckett, Henry Miller e Malcolm Lowry, para citar apenas alguns de uma enorme lista.


Foi também Nadeau quem editou o primeiro romance de Michel Houellebecq, Extension du domaine de la lutte, em 1994, depois que várias editoras haviam recusado o livro. Nas edições Maurice Nadeau, o editor continua a revelar nomes desconhecidos, pois gosta mesmo é de apontar novos talentos.


Nadeau é um monumento não-tombado do patrimônio intelectual francês. Viveu a maior parte do século 20 e participou da vida intelectual por dentro dos acontecimentos, tanto como escritor e crítico literário quanto como editor em diferentes editoras. Trabalhou com Albert Camus no jornal Combat, foi amigo de André Breton e escreveu uma História do Surrealismo que é referência no assunto. Entre suas obras mais conhecidas, Gustave Flaubert écrivain ganhou o prêmio da crítica literária, em 1969, quando foi lançado.


Em politica, o antigo trotskista – que criou com Pierre Naville o jornal trotskista La Vérité – continua um irrequieto homem de esquerda que não tem receio de citar Trotsky como seu herói. O deão dos editores e jornalistas franceses mantém uma atividade febril na editora que tem o seu nome e na Quinzaine, que fundou em 1966. De sua sala, de frente para o Beaubourg, ele comanda a editora, o fechamento do jornal e as reuniões de pauta do comitê de redação, regadas a uísque, suco de laranja e água Perrier. ‘Ser crítico literário e jornalista me dá tanto prazer quanto ser editor’, confessa Nadeau, que nunca teve de escolher uma atividade e ainda acrescentou a de ensaísta às outras.


Literatura e revolução


Há alguns anos, Nadeau escreveu uma autobiografia original (Grâces leur soient rendues, Ed. Albin Michel) na qual conta pouco de sua própria vida. Mas o livro é, na realidade, um pretexto para compor deliciosos perfis de escritores a partir de episódios vividos.


Se não fosse Nadeau, Sade continuaria um autor proibido. Foi ele que teve a iniciativa de publicar os textos do divino marquês, que dormiam no ‘Inferno’, a protegidíssima seção de livros eróticos e pornográficos da Biblioteca Nacional da França. Durante meses, ele foi à BNF copiar os textos, alternando-se com outra pessoa, até ter a obra pronta para a publicação de uma antologia.


Há poucos anos, a marca Louis Vuitton criou juntamente com a Quinzaine Littéraire a coleção ‘Voyager avec’, que logo se tornou cult. No selo ‘Quinzaine Littéraire-Louis Vuitton’ já foram publicados textos de viagem de Joseph Roth, Rainer Maria Rilke, Walter Benjamin, Mário de Andrade, Jacques Derrida, Virginia Woolf, D. H. Lawrence, Paul Morand, Simone de Beauvoir e Le Corbusier, entre outros.


No encontro que festejou o número 1000 do jornal, Gilles Nadeau apresentou seu documentário Maurice Nadeau, Révolution et littérature, que ao mesmo tempo que traça um perfil de seu pai percorre o século 20, época de revoluções que marcaram a história, como a de outubro de 1917, que empolgou a geração de Nadeau.

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Jornalista