Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A inteligência suicidada

Universidade de Mogi das Cruzes, maio de 2001. Uma sala de aula do 2º ano do curso de Jornalismo. O professor de Cultura Brasileira, Mário Sérgio de Moraes, fala a respeito de quando o marechal Arthur da Costa e Silva ficou incapaz de prosseguir à frente da Presidência da República por ficar doente. Na ocasião, o vice-presidente, Pedro Aleixo, foi impedido de tomar posse pela Junta Militar. Esta não confiava naquele, porque ele era civil e contrário ao AI-5 (Ato Institucional número 5).

A aula, na realidade, é sobre como o regime militar (1964-1985) quebrava as regras do jogo, ao impor suas idiossincrasias e desobedecer aos dispositivos constitucionais. Em determinado momento, uma aluna inquire o docente a propósito da fundação da OBAN (Operação Bandeirante), órgão policial-militar encarregado de exterminar a ‘subversão’. Prisões, torturas e mortes são corriqueiras. Logo vem à cabeça de Mário Sérgio um fato de repercussão nacional e internacional: a morte do jornalista e professor universitário Vlado (ou Vladimir) Herzog. [Originalmente, o nome é Vlado; ao se naturalizar brasileiro, em 12 de julho de 1961, mudou o nome para Vladimir; vide Arquivo Público do Estado de São Paulo. Pasta 30-B-38-650-716.] Este foi suicidado [em análise morfológica, suicidar é verbo pronominal; neste livro, adquire também a função de verbo transitivo direto] nas dependências do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), primogênito da OBAN.

Na época, formulou-se a farsa do suicídio. Mediante a Portaria nº 03-SJ [determinação foi publicada também no Boletim Interno nº 204, de 30 de outubro de 1975, no Comando do Segundo Exército., de 30 de outubro de 1975], o comandante do Segundo Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, determinou a instauração de um IPM (Inquérito Policial-Militar) para ‘apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog’ [HERZOG, Clarice. Ação Declaratória movida contra a União Federal, Processo nº 136/76, 3 volumes, São Paulo: 7ª Vara da Justiça Federal, 1976-1998, pp. 115-144]. É isso mesmo. Suicídio, e não morte. A finalidade do IPM era apenas coonestar a versão oficial. Pelo que se ouvia de presos políticos e pela forma como foi encontrado o cadáver, é irracional supor que Herzog tenha se suicidado. Assim pensava a viúva, Clarice Herzog. Por isso, ela procurou advogados com o objetivo de abrir uma ação contra o governo e preservar a memória do marido. Em 20 de abril de 1976, quatro advogados abraçam a convicção de Clarice e iniciam uma batalha judicial, apelidada pela imprensa de ‘caso Herzog’.

O juiz da 7ª Vara da Justiça Federal, João Gomes Martins Filho, marca a leitura da sentença para o dia 26 de junho de 1978 [HERZOG, Clarice, obra citada, pp. 468- 476 e 508-510]. É impedido de lê-la e terminar a contenda naquela jurisdição em decorrência do mandado de segurança nº 84.603-SP, de 22 de junho. Aquele é o último caso do juiz. Ao completar 70 anos de idade, todos os magistrados são aposentados compulsoriamente. É o que ocorre com João Gomes Martins Filho.

Assume o novato Márcio José de Moraes, irmão do professor Mário Sérgio. Em 67 laudas, o magistrado sentenciou, em 27 de outubro de 1978, que a União Federal foi responsável civil pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. Segundo o professor, seu irmão teria desabafado com ele da seguinte maneira:

– Sei que eu posso ser cassado, mas eu não dei a sentença em nome próprio, e sim em nome do Poder Judiciário.

O autor deste livro-reportagem conhecia superficialmente o acontecimento histórico-político.

– Um dia eu vou escrever sobre Vladimir Herzog – pensou. Não sabia. Nem o docente. Mas começava, ali, este projeto. Então, aquela aula a respeito do regime militar foi o parto de A inteligência suicidada – um perfil de Vlado Herzog [o título alude a uma reportagem referente a presos políticos, vide IstoÉ, 31 de outubro de 1978, pp. 26-31].

Do mesmo modo que em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, de Machado de Assis, esta obra inicia o enredo pela morte do protagonista da história. Neste caso específico, a de Vladimir Herzog. O relato segue até a celebração religiosa em memória dele. Entrementes, o tratamento que a imprensa imprimiu ao ‘caso Herzog’ é registrado. Aí, sim, contar-se-á a trajetória pessoal, profissional e intelectual do jornalista. Desde seu nascimento, na Iugoslávia, em 27 de junho de 1937, até seus últimos momentos na TV Cultura, onde trabalhava.

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Introdução

Em 25 de outubro de 1975, o jornalista e professor Vladimir Herzog, de 38 anos de idade, pai de dois meninos e casado com Clarice Herzog, é suicidado. Seu falecimento desencadeou uma reação contundente da sociedade civil, o que até então não sucedia. Ajudou, involuntariamente, o presidente da República, general Ernesto Geisel, a constranger as ações ilegais dos órgãos de segurança, que cometiam ilícitos penais sem prestar contas à Justiça. Com o óbito do jornalista, a chamada ‘linha dura’ iniciou o recuo paulatino que seria concluído com a exoneração do ministro do Exército, general Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977.

As organizações consideradas de extrema-esquerda já estavam dominadas. As unidades de repressão principiaram um esquema contra o PCB (Partido Comunista Brasileiro). Vlado entrou para o Comitê Estadual do partido para participar da política no âmbito da cultura. Acreditava que a informação transmitida de maneira correta levaria o regime militar à agonia. A participação política deveu-se à sua intolerância quanto à opressão do povo.

Cidadão de classe média, diretor de jornalismo de uma tevê estatal e muito querido. É temerário estabelecer uma receita a respeito do por que Vladimir Herzog se tornou um marco na luta pelos direitos humanos. Só que esses são os ingredientes patentes. Há outros subjacentes que A inteligência suicidada – um perfil de Vlado Herzog procurará identificar e apresentar.

Este projeto visa também transportar a história de morte e vida do protagonista para o jornalismo literário, como conceitua Alceu Amoroso Lima [LIMA, Alceu Amoroso. O jornalismo como gênero literário. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990].

Cenários, lugares e episódios são recriados baseados em documentos, livros, entrevistas e observações pessoais. A inteligência suicidada – um perfil de Vlado Herzog posiciona-se em favor da personagem principal com base em dados que não prescindem dos acontecimentos. O nome de corporações e de lugares aparece no texto somente uma vez por extenso. Depois, é abreviado e há um glossário de siglas para facilitar a consulta e dirimir dúvidas.

Como o próprio subtítulo explicita, o tipo do livro-reportagem é perfil. [De acordo com Edvaldo Pereira Lima, o tipo de obra perfil procura salientar o lado humano de uma personalidade que, por algum motivo, torna-se de interesse público. Vide LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995, p. 45.] A personagem central tornou-se importante para este projeto a partir de sua morte. Preso, torturado e suicidado. Herzog, involuntariamente, ajudou a mudar a história do País. A reação popular em face de sua morte fortaleceu a autoridade do presidente Geisel. Este deu um ultimato aos órgãos de segurança ao ameaçar que não toleraria mais nenhuma morte em dependência do Exército. Aí, quando houve outro ‘suicídio’ [Referência à morte do operário Manoel Fiel Filho, em 17 de janeiro de 1976.], o presidente teve força suficiente para demitir o então comandante do Segundo Exército, Ednardo D’Ávila Mello. E, assim, limitar aos poucos a ação da chamada ‘linha dura’. Esta queria o recrudescimento do regime militar ao invocar sempre o ‘perigo comunista’.

O falecimento de Herzog se insere na política brasileira como um fato histórico que ajudou o governo vigente a continuar com o projeto de abertura política ‘lenta, gradual e segura’. Em razão disso, a obra é também histórica. [LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995, p. 46.] As fotografias utilizadas são reproduções. A da página 91 é o do SJPESP (Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo). A única em duas páginas foi cedida por Rodolfo Osvaldo Konder. Também foi publicada na revista Visão, em 10 de abril de 1972.